OS PORTUGUESES TÊM DE PRONUNCIAR-SE SOBRE OS CORTES NA DESPESA
Tudo começa com a ambígua,
propositadamente ambígua, declaração de Passos Coelho sobre a “Refundação do memorando da Troika” e o
subsequente convite ao PS para o acompanhar na concretização dessa tarefa.
Ambígua e desonesta porque logo se percebeu que o convite nada tinha a ver, como
ingenuamente alguns poderiam supor, com uma acção partidária conjunta destinada
a negociar uma atenuação das condições draconianas impostas aos portugueses por
aquele Memorando, mas, bem pelo contrário, visava aliciar o PS para uma
alteração radical do modelo de sociedade consagrado na Constituição.
Para que não houvesse dúvidas,
dias mais tarde, Marques Mendes num programa partidário de propaganda e
intoxicação política, que a TVI 24 semanalmente lhe concede, veio tornar
público que o Governo tinha recorrido à “assessoria técnica” do FMI para o
ajudar a cortar cerca de 850 milhões de euros na Defesa e na segurança interna,
mais três mil e quinhentos milhões de euros nas despesas sociais do Estado.
Perante estes factos nenhuma
dúvida pode existir sobre as reais intenções do Governo. O Governo quer reduzir
drasticamente a despesa na Educação, na Saúde e na Segurança Social,
descaracterizando assim o modelo de Estado Social consagrado na Constituição, mediante
o ataque ao princípio da universalidade e simultaneamente garantir que não
falte aos credores o pagamento integral dos juros usurários que incomportavelmente
sobrecarregam a despesa, a ponto de este ano já representarem uma das verbas
mais onerosas inscritas no Orçamento.
Este corte brutal na despesa,
porventura insuficiente para os fins em vista dadas as mais que óbvias
consequências resultantes da execução do Orçamento de 2013, a verificar-se, não
constituirá uma simples mudança de política, comportada pelo texto
constitucional, mas antes uma verdadeira alteração do paradigma constitucional.
Assim sendo, e não há
infelizmente qualquer espécie de dúvidas sobre isto (o Primeiro Ministro até já
disse que não adianta a Constituição consagrar direitos se o Estado não tiver
dinheiro para os fazer respeitar), a primeira conclusão que em democracia se impõe
tirar é a de que alteração do paradigma constitucional exige uma revisão
constitucional. E uma revisão constitucional desta envergadura, e com estas
consequências, só pode ter lugar depois da realização de eleições na disputa
das quais esta e todas demais questões com ela conexas sejam abertamente
discutidas.
O mais normal, em regime
democrático, nomeadamente num regime constitucional como o nosso,
semi-presidencialista de base parlamentar, seria o Presidente da República impor
as regras do jogo decorrentes da Constituição. Acontece que o Presidente da República
está refugiado, ausente, em Belém, sendo convicção generalizada dos portugueses
que ele lhes virou as costas num momento em que mais necessitavam de uma voz
que os defendesse e que, acima de tudo, os não deixasse enganar. Seja por incapacidade
temporária ou definitiva, como alvitra José Vítor Malheiros, seja por receio de
exposição pública em virtude de a identidade ideológica com o Governo o obrigar,
tal como este, a refugiar-se longe das vistas do povo, a verdade é que com o
Presidente não se pode contar, se é que o seu silêncio não visa exactamente
deixar passar o tempo na esperança de que a proposta do Governo, apoiada por uma
poderosa campanha de desinformação, acabe por ficar aparentemente
consensualizada.
Acontece que não será um simples
debate público, sistematicamente enviesado pela reserva mental do Governo, que
vai legitimar a tomada de uma decisão sobre o tema que está em discussão, por
maior que fosse – e não é – o apoio que ele pudesse merecer no plano
estritamente político-partidário.
O povo português tem de ser
consultado. O povo português tem de ser devidamente esclarecido para poder
decidir livremente.
Não passa de uma vigarice a
afirmação posta a circular pelo Governo e propagandeada pelos seus habituais
defensores (Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Mendes e outros comentadores da
mesma linha) de que os cortes na despesa que "estão sendo estudados" em
colaboração com o FMI não precisam de qualquer revisão constitucional.
Precisam: a alteração substancial das funções do Estado, tal como estão
consagradas na Constituição, não pode ser posta em prática sem revisão
constitucional, sob pena de inconstitucionalidade.
Aliás, o programa que o Governo
pretende pôr em prática tem em vista, como tantas vezes aqui se tem dito, “refundar
radicalmente o modelo sócio-económico português”. O desemprego e as falências,
embora sejam consequência das políticas recessivas que o Governo tão
esmeradamente tem posto em prática, são mais do que isso: são objectivos
intencionalmente procurados com vista à substituição do modelo económico existente.
O Governo quer acabar, quer destruir, a maior parte da oferta interna, mediante
a limitação drástica da procura (desemprego, corte nos salários e nas pensões,
aumento de impostos), por entender que ela absorve recursos que poderiam ser
mais vantajosamente orientados para a actividade exportadora ou por entender
que essa oferta representa um peso desnecessário no agravamento do défice
externo do país. Neste contexto, a substancial redução da despesa nas funções
sociais do Estado traduzir-se-ia, na estratégia do Governo, num passo
irreversível com vista ao posterior desmantelamento do Estado Social. E é por
esta ser a política do Governo que este não está disponível para qualquer negociação
séria com a Troika e muito menos disposto, no seio da União Europeia, a fazer
frente comum com outros Estados intervencionados ou com dificuldades semelhantes com vista à superação dos constrangimentos
existentes. O Governo quer que as coisas com a Troika fiquem como estão, porque
só ficando como estão terá o Governo possibilidade de pôr em prática o seu
programa em toda a sua amplitude.
O Governo e os seus defensores na
ausência de outros argumentos apresentam como razão decisiva para o
prosseguimento do caminho que tem vindo a trilhar a ausência de alternativa. Acontece que há
alternativa, embora, tem de reconhecer-se, nem todas propostas que têm sido
apresentadas por contraposição ao caminho defendido pelo Governo representem
verdadeiras alternativas.
Falando claro: todas as propostas
que pressuponham uma outra política monetária deparam-se com um obstáculo
intransponível – o de o proponente não poder garantir a sua viabilização. De facto, a
reestruturação da dívida ou a “reapreciação” dos juros e dos prazos da dívida
bem como a obtenção de financiamentos a preços consideravelmente mais baixos representam
alterações políticas de monta que pressupõem, no seio da união monetária, a
concordância dos respectivos Estados, nomeadamente da Alemanha. E é improvável
que isso aconteça.
Assim sendo, a verdadeira
alternativa somente poderá ser aquela cuja implementação dependa em grande
medida da vontade nacional, sem com isto se escamotear a interdependência que hoje existe entre os vários Estados.
Veremos o que dentro de pouco
tempo vai suceder aos gregos e aprendamos com eles pelo menos isto: não devemos
deixar chegar o país ao estado em que a Grécia se encontra. E tenhamos presente
que é a isso que necessariamente leva a ausência de uma real alternativa.
3 comentários:
Pois,mas não se vê o que seja essa real alternativa, ou quais as suas linhas gerais. Retomar a "soberania monetária"!, quer dizer sair do Euro. Estão inventariadas as consequências? Mesmo que se repudiasse a dívida (qual? toda? apenas a "infâme")o défice lá estaria. Sem possibilidade de mexer na pauta (ou também se saía da CEE?)como controlar as importações? Subida do IVA com maior divergência face a Espanha? Em qualquer caso uma razia brutal nos rendimentos reais, não haveria milagre inflaccionista que a amenizasse. No caso daquele repúdio haveria retaliações para além da perda total, por tempo inderterminado, de crédito externo? Nesse caso como comprar a pronto trigo, soja, cereais, combustíveis royalties vitais etc etc etc? E a fuga de capitais como se controlava, com um curralito com os tubarões já longe da cerca? Estas e muitas outras dúvidas, ainda não minimamente explicitadas pelos defensores da saída do Euro,estão, penso, na cabeça de muitos, cada vez mais, portugueses que, como eu, apesar da percepção de que este caminho (o do ajustamento troikano) leva ao abismo.
É sintomático que muitas das ideias da esquerda, consideradas há pouco como agoirentes e motivadas ideologicamnete (tudo que morda o capitalismo é positivo), vêm sendo adoptadas por quem as assim considerava.
Também as previsões "tremendistas" do medina Carreira foram confirmadas e ultrapassadas pela realidade pelo que agora já nem tem matéria para as arengas que produzia e recorre a "especialistas" para enriquecer o programa que tem na TVI.
Não haja dúvida, a coisa está a ficar preta!
Ninguém tem coragem para reformar o Estado, somos todos amigos uns dos outros ou conhecemo-nos e nesta parvónia ninguém quer ficar como o mau da fita. Os 4.000 milhões têm de ser retirados não ao social (serviço de saúde e assistência), não aos reformados porque entregaram mensalmente ao Estado para gerir e reforçar o seu pecúlio para a reforma (o Estado nada deu!) e também não à educação que é aquilo que nos eleva. O Estado não pode ter tantos serviços/departamentos/direcções -gerais, tantos institutos, tanta burocracia, tantas atribuições e pergaminhos. Por ex.º, se tiverem uma polícia que fiscalize a poluição e a construção clandestina, precisam de toda essa trapalhada do “ambiente e da biodiversidade” para quê, para regar as plantinhas, para fazer estudos dos bichos e plantas raros? Bolas, se fiscalizarem a poluição, a natureza sabe defender-se muito bem! No Min da Agricultura o antigo ministro fez uma boa poda. E se forem por outros ministérios e dir. Gerais da treta vão encontrar o desperdício. Não querem ir por aí? Querem ter a estrutura de um país rico, então está tudo muito preto. Faltam leis claras e não a panóplia que permite que os corruptos se safem. O Mº Pº e os Juízes têm de levar uma volta em geral, sem justiça a tempo e com impostos confiscadores jamais teremos investimento nem daqui nem de fora.
Se sairmos do Euro também teremos de sair da CE e nessa hipótese, não vai haver dinheiro para pagar os combustíveis e tudo o resto que dá suporte ao turismo. Teremos de ir buscar os arados aos museus, reproduzir à pressa burros e mulas em extinção e regressar uns 60 anos atrás. Haverá um meio-termo, mas para isso, teremos de transformar em amigos e solidários os nossos parceiros usurários. Como?
É claro que a alternativa - sair do euro - não é uma alternativa radiante. E a austeridade da Troika, é? A decisão que se impõe é a que represente o mal menor e apresente mais hipóteses de melhorias futuras.
Essa dos arados e do museu não parece aceitável. Então era essa a situação no tempo do escudo?
O ideal seria certamente uma politica diferente da União Europeia. Mas quem acredita nisso? A situação com que Portugal se debate é muito particular e sem antecedentes: nunca como hoje dependemos tão pouco das nossas decisões e nunca como hoje estivemos tão dependentes de decisões que nos são estranhas. A isto acresce um Governo subserviente, que além do mais está de acordo com os ditames impostos de fora.
Tudo muito difícil...
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