TEXTO PUBLICADO NO FACEBOOK EM NOVEMBRO
Não posso fazer de conta que a leitura dos comentários de apoiantes do Chega me não preocupa muito mais do que poderia supor há uns meses atrás.
Ao ler esses comentários, sem entrar em linha de conta com os de natureza provocatória escritos já de acordo com a linha oficial do partido, usando um estilo semelhante ao do “chefe”, verifica-se que há entre aqueles apoiantes oriundos das classes populares um assinalável descontentamento pela situação em que se encontram, sentindo-se seduzidos pela natureza dos temas tratados pelo Chega e pelo estilo desassombrado das propostas apresentadas, que levam essas pessoas, tanto pela linguagem muito próxima da que elas próprias usam nas suas conversas informais, como pelas matérias sobre que incidem, a ver na concretização dessas propostas um começo de solução dos problemas com que se defrontam.
Essas propostas incidem recorrentemente sobre as vantagens concedidas a quem é diferente (políticos, por exemplo) ou minoritário (ciganos, preguiçosos profissionais, marginais e outras minorias como homossexuais, transsexuais, portugueses de origem africana, imigrantes, etc.), de modo a suscitarem a inveja dos que delas não beneficiam, dando sempre a entender que são os que nada fazem ou os que têm um comportamento reprovável os que mais beneficiam da acção do Estado. Depois, vem em lugar de destaque a corrupção erigida em mal maior do sistema, acompanhada da mensagem subliminar de que os corruptos gozam da protecção de quem manda e de que a corrupção penetra por todos os interstícios da vida nacional, sendo responsável por tudo o que corre mal, justificando assim a aceitação da utilização de qualquer meio para lhe fazer frente. Nesta matéria, o Chega beneficia de uma aliança objectiva poderosa constituída pela acção do Ministério Público, de certos sectores da Polícia Judiciária bem como da maior parte da comunicação social (comentadores incluídos), embora com intensidades diferentes, liderando este processo os meios do grupo Correio da Manhã. Todas estas actuações contribuem para o julgamento dos suspeitos na praça pública, algumas vezes sem sequer terem sido constituídos arguidos, quer pelo anúncio prévio à comunicação social de buscas e investigações que vão ser levadas a cabo, devidamente amplificadas de modo a que o efeito vexatório do investigado seja alcançado, quer pelas fugas cirúrgica de partes de processos em instrução, que depois levam anos e anos a ser julgados, quando o são, mas que vão alimentando aquele tipo de julgamentos populares, criando em muitas pessoas a profunda convicção de que existe uma corrupção generalizada que só não é punida pela oposição dos que a protegem, tudo isto à revelia da presunção de inocência e do segredo de justiça, deixando sempre completamente ilibada e esquecida a incompetência de quem não é capaz de fazer uma investigação consistente, depois de ter avançado publicamente com suspeitas que se não confirmam ou que se não conseguem provar.
Finalmente, são apresentadas propostas que sempre beneficiam de um enorme grau de adesão popular quando apresentadas numa perspectiva meramente unilateral, logo demagógica, como a drástica diminuição da carga fiscal, sendo este, a nosso ver, o ponto-chave da acção política do Chega.
O modo como o Chega tem sido combatido por todos os defensores dos princípios e valores inscritos na nossa Constituição, ou seja, o modo como o sistema saído da Revolução de 25 de Abril tem reagido ao ataque do Chega não parece, do nosso ponto de vista, o mais adequado por os factos já conhecidos indiciarem que ele está a falhar nos objectivos que se propõe atingir. A luta contra o Chega tem sido travada numa perspectiva da luta contra um “partido fora do sistema” por ousar pôr em causa princípios fundamentais do Estado democrático, que se julgam fortemente consolidados na sociedade portuguesa pela prática política destas últimas quatro décadas da nossa vida colectiva. Esta luta tem-se traduzido, como sabemos, na acusação de que o Chega é um partido fora do sistema, de natureza fascista, por ter propostas políticas de carácter manifestamente racista, homofóbicas ou por defender soluções que ofendem a dignidade do ser humano, como a castração química dos pedófilos, a extracção dos ovários das mulheres que recorram ao aborto, ou a prisão perpétua para certo tipo de crimes.
Ora, embora seja indisfarçavelmente esta uma das naturezas do Chega, é exactamente no facto de ele ser um partido fora do sistema que reside o seu fascínio para aqueles que o apoiam ou podem vir a apoiar em próximas eleições. Por isso, de nada tem adiantado continuar a esgrimir contra ele acusações que não o atingem na perspectiva dos que o apoiam, quando a nossa luta deveria exactamente consistir em impedir que a simpatia popular pelas propostas do Chega cresça. Que adianta continuar a afirmar que é inaceitável que um partido político ouse na Assembleia da República ou fora dela pôr em causa o que de mais intocável saiu do 25 de Abril e tente ressuscitar métodos e processos vindos do fascismo tidos como definitivamente extirpados da vida política e social portuguesa, se ele continua a crescer apesar de permanentemente confrontado com essas acusações?
Se o nosso objectivo, mais que denunciar a natureza do Chega, é impedir que ele cresça, obstando a que ele venha a ser uma força a ter em conta na vida política portuguesa, então ele não estará a ser atingido por se estar permanentemente a desqualificá-lo como fascista, racista, homofóbico, demagógico, etc., porque estas qualificações pejorativas às pessoas potencialmente atingíveis pela mensagem do Chega não lhes dizem nada ou, pior ainda, até podem estar de acordo com a maior parte delas.
E por aqui também se fica a perceber que é um erro supor que a sociedade se muda por via da legalização de matérias englobadas nas chamadas “questões fracturantes” ou pela repetição de fórmulas abstractas de que as pessoas com muita facilidade se afastam mal a vida lhes começa a correr mal e não vêem maneira de a endireitar. Daí que muita gente entenda, entre a qual me incluo, que a mais duradoira causa que pode mudar ou ajudar a consolidar as conquistas sociais é a luta por uma distribuição equitativa dos rendimentos que é exactamente o contrário do que tem sido levado à prática nestes últimos 30 anos.
Deverá ser nesta vertente relacionada com o dia-a-dia das pessoas que a luta contra o Chega tem de ser travada. É preciso insistir e explicar às pessoas que o Chega quer destruir o Estado social, ou seja, quer pôr as pessoas a pagar a saúde, entregando-a aos privados e degradando o Serviço Nacional de Saúde, de modo a que haja uma saúde para pobres e outra para ricos; quer pôr as famílias a pagar o ensino, degradando o ensino público; quer baixar as reformas e as contribuições para segurança social, dispensando os patrões da maior parte dos encargos que agora os oneram e pondo os que ganham mais e os que ganham menos a pagar o mesmo; quer acabar com os subsídios, sejam eles de inserção social, de desemprego, da apoio à velhice, à natalidade ou às crianças, bem como eliminar as medidas de protecção do arrendamento e onerar o arrendamento social. Tem de se explicar às pessoas que ao votarem Chega estão a aceitar a diminuição dos seus rendimentos presentes e a pôr em causa o pagamento das suas reformas futuras.
Porque em política, como na vida de todos nós, não há milagres. Se temos menos receita teremos de diminuir a despesa. Ora, o Chega quer diminuir drasticamente a receita do Estado, aumentando o rendimento dos ricos e das empresas em geral, para retirar à generalidade das pessoas todas as vantagens que uma maior receita do Estado lhes pode proporcionar.
Ao sublinhar com certa intensidade esta faceta da luta contra o Chega, que tem sido descurada, não é certamente por não atribuir a máxima importância à luta antifascista nem por descrer da perversidade da maior parte das suas propostas. Bem pelo contrário. Eu até penso que o Chega pretende conjugar o pior de dois mundos: recolhe do nazi-fascismo, o racismo, a xenofobia, o desprezo por certas categorias de pessoas com as suas propostas atentatórias da dignidade humana; e recolhe do liberalismo económico a aplicação pura e dura das doutrinas neoliberais, como seja a liquidação do estado social embalada numa capa demagógica de redução drástica da carga fiscal, tomando por igual o que é diferente, fazendo crescer inevitavelmente a desigualdade social e ostracizando, pela eliminação ou redução dos subsídios, um grupo cada vez mais numeroso de pessoas rejeitadas pelo sistema. Verdadeiramente, o modelo de Ventura até se assemelha mais ao de Pinochet (sem militares) do que ao dos seus compinchas de extrema-direita que vão despontando por essa Europa fora. Exactamente por tudo isto é que os meios de luta têm de ser submetidos à dura prova da sua eficácia para se perceber os que devem ser preferentemente utilizados e não andar a “dar tiros de pólvora seca” que podem fazer muito barulho quando são disparados mas não causam nenhum prejuízo no alvo a que se destinam.
19/11/2020
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