quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

AS ILUSÕES DO EQUILÍBRIO ORÇAMENTAL NA LUTA CONTRA AS CRISES



INSISTINDO NO ÓBVIO
Comprendre les théories économiques



Desde há muito que se sabe que não é pela via do equilíbrio orçamental que se debelam as crises do capitalismo. No entanto, esta velha receita está outra vez na moda. Na União Europeia muitos países, entre os quais Portugal, estão a sofrer as consequências de políticas económicas restritivas que levam, como levaram no passado, a consequências recessivas altamente prejudiciais para largos estratos da população.

Escusado será dizer – mas é conveniente frisá-lo numa época em que o óbvio tende a ficar permanentemente obscurecido – que aquelas políticas estão sempre associadas a um preconceito ideológico que tem por base o papel do Estado na economia.

Ou seja, quem pretende um capitalismo sem entraves – e hoje até já se chama a isso “democratização da economia” – não quer o Estado na economia. Não o quer nem como produtor de bens nem de serviços seja nas áreas económicas propriamente ditas, seja também nas áreas sociais. E também não o quer como regulador da actividade económica porque o "mercado encarrega-se disso muito melhor do que os burocratas".

E há quem infelizmente acredite nisto, inclusive contra os seus próprios interesses. Dizendo melhor: hoje quase toda a gente acredita nisto tal o domínio ideológico do neoliberalismo.

Talvez por isso valha a pena transcrever um texto de um livro que hoje já se pode considerar um clássico da literatura económica – “Pour comprendre les théories économiques”, pags. 266/267, de Jean-Marie Albertini e Ahmed Silem.

Nos Estados Unidos, quando a crise de 1929 se desencadeou, a Administração Hoover não viu nela senão o rebentamento de uma bolha especulativa. Como a crise da bolsa se propagou à economia, afundando-a, a Administração foi forçada a intervir. Em 1929 as políticas são directamente inspiradas pelas teorias liberais. Estas políticas tentam diminuir o custo de produção das empresas para restabelecer as margens de lucro e encorajam a poupança para fazer baixar as taxas de juro.

Concentram-se na baixa de salários. Assim, a empresa pode fazer mais lucros, baixar os preços, vender mais e ter mais oferta de emprego. Todavia, a baixa de salários, para ser eficaz e aceitável, deve ser acompanhada de uma luta contra as violações da concorrência que impeçam a descida dos preços e contra os custos de produção inimigos do lucro e do abaixamento dos preços. Para fazer baixar a taxa de juro, a fim de permitir às empresas contrair empréstimos em melhores condições, as doutrinas económicas liberais encorajam a poupança. Para alcançar este objectivo e para voltar a ganhar a confiança dos aforradores, incentivando-os a poupar mais graças à baixa de impostos, elas diminuem as despesas públicas e preconizam o equilíbrio orçamental. Colocando-se no plano microeconómico sem atender aos efeitos macroeconómicos, estas políticas levaram a um tremendo fracasso.

Enquanto na maior parte das grandes potências industriais estas políticas eram abandonadas, em França, os governos, para dar confiança aos detentores do capital, ligaram-se ao “bloco-ouro” (O "bloco ouro" é constituído pelos países que querem manter uma certa paridade da moeda nacional com o ouro - França, Itália, Bélgica, Holanda, Polónia e Suiça) e à defesa do franco Poincaré (O “franco Poincaré” é o novo valor do franco decidido em 1928 depois da desvalorização em 80% do franco “Germinal” – o franco aprovado em 7 do Germinal do ano XI, ou seja, 27 de Março de 1803). Pior ainda, em 1934 o Governo Laval cortou as despesas públicas e baixou os salários dos funcionários bem como as pensões de guerra. Os funcionários deveriam dar o exemplo, favorecendo, assim, a aceitação de uma diminuição do rendimento de todos os assalariados. Em 1935, o orçamento do Estado é um dos raros que na Europa está equilibrado. Contudo, esta política deflacionista acabará por ter um efeito inverso ao esperado. Pouco exposta ao exterior, a França que, por força da sua agricultura e do seu império colonial, tinha sido menos atingida do que outros países pela crise, sofreu então um brutal aumento do desemprego. O economista Jacques Rueff, autor do “Subsídio de desemprego – causa do desemprego permanente” era um dos inspiradores desta política. (…) O governo Laval e Jacques Rueff são de certo modo os pais adulterinos da “Frente popular”.  

Como se vê, estas teorias neoliberais que passam por ser a grande novidade da política económica são velhas e com “provas dadas”. A única diferença, aliás, abissal diferença, é que noutras épocas havia uma força proletária organizada com capacidade para se opor a estes desmandos sociais e hoje, infelizmente, a capacidade de reacção é muito menor.

Hoje mandam “os mercados”, ou seja, os Vampiros, cuja letra de Zeca Afonso, mais do que a realidade que pretendeu retratar, acaba por ser premonitória do que estava para vir…”São os mordomos do universo todo/senhores à força, mandadores sem lei…Se alguém se engana com o seu ar sisudo/ e lhes franqueia as portas à chegada/ eles comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada

UMA EUROPA DOS CIDADÃOS?






UMA OUTRA ANÁLISE ALEMÃ



Para quem se insurgiu contra o texto “As alternativas com que Portugal se defronta” por ter perigosamente exagerado o “problema alemão” na Europa de hoje, talvez seja interessante ler a análise que Ulrich Beck acaba de fazer em artigo ontem publicado no jornal “Le Monde”.

Ulrich Beck começa por dizer que a Europa, depois de um primeiro milagre – transformar os inimigos em vizinhos -, para fazer face à avalanche de riscos de um mundo globalizado, garantir a paz, a liberdade e a segurança dos seus cidadãos, precisa de um segundo milagre – passar da Europa da burocracia à Europa dos cidadãos.  

Seguidamente Beck exprime as suas angústias sobre o futuro da democracia, a ponto de perguntar se para salvar o euro a Europa terá de abolir a democracia. E dá como primeiro exemplo a reacção europeia à intenção expressa por Papandréou de consultar os seus concidadãos sobre uma questão de importância vital para o seu futuro bem como a impossibilidade prática de debater e decidir sobre o futuro da Europa quando há governos que já estão sob tutela ou quando se faz apelo a profissionais da liquidação (liquidatários) como Monti ou Papademos.

Por outro lado, Ulrich Beck também não tem problemas em subscrever a análise da “Der Spiegel” quando esta afirma que há um poder emergente que obedece a uma lógica de império, já não militar mas económico, que estabelece uma diferença entre países devedores e países credores, cujo fundamento ideológico é (aquilo a que ele chama) o euronacionalismo alemão, ou seja, a versão europeia do nacionalismo do “deutschemark”.

É por esta via que a cultura alemã da estabilidade é elevada à categoria de ideia europeia dominante. A estabilização do poder hegemónico repousa no assentimento dos países europeus independentes.

(De facto, esta ideia é dominante na Alemnha, como ainda recentemente se pôde constatar, quando o líder parlamentar da CDU de Merkel, no último congresso do partido, se vangloriava de eles (os alemães) terem posto a Europa a “falar alemão”).

Beck prossegue na sua análise questionando se não será mais realista perguntar se o fundamento daquela hegemonia não estará antes no poder de sanção como parece resultar da perda de soberania decretada por Merkel como preço a pagar pelos países excessivamente endividados.

Reconhece depois Beck que à divisão entre países da zona euro e países que não fazem parte da zona euro há que acrescentar, dentro da zona euro, a dramática divisão entre os que tiveram de recorrer ao “fundo de resgate”, ou que a ele em breve recorrerão, e os que financiam esse resgate, deixando claro que os primeiros não têm outra saída que não seja a sujeição às exigências do euronacionalismo alemão.

E, assim, o multilateralismo vai dando lugar ao unilateralismo; a igualdade à hegemonia; a soberania à ausência dela; o reconhecimento da dignidade democrática à privação desse reconhecimento. E, conclui, “mesmo a França, que durante muito tempo dominou a União Europeia, segue presentemente as prescrições de Berlim por receio de perder o triplo A”.

Segundo BecK, o futuro que germina no laboratório de salvamento do euro assemelha-se a uma variante europeia tardia da União Soviética. Tal como na URSS também agora há planos quinquenais com a diferença de que se não destinam à produção de bens e serviços mas à redução da dívida. E a sua aplicação é confiada a “comissários” que, com base nos “mecanismos de sanção”, estão habilitados a tudo fazer para destruir as “aldeias Potemkine” – obras de fachada, ou como diriam os nossos fiéis mandatários da Troika “uma economia alicerçada nos bens não transaccionáveis” - dos países endividados.

Finalmente, Beck sugere uma nova conduta das autoridades alemãs, de modo a evitar que tanto os cidadãos dos países endividados como os dos países credores passem a ver a Europa como um inimigo, para finalmente concluir que somente uma Europa dos cidadãos poderá salvar o projecto europeu.

Escusado será dizer que mais do que este voto piedoso do prestigiado sociólogo alemão – que não se vê como possa realizar-se – o que nesta análise interessa sublinhar é o projecto de hegemonia alemã que a propósito da crise da dívida, ou, mais correctamente, do euro, está sendo levado à prática com a vista à criação de uma “Europa alemã” e que tal como anteriores projectos vindos do mesmo lado, com a mesmo finalidade, também este estará condenado ao fracasso, acabando por arrastar no seu insucesso o projecto da “unidade europeia”.





segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O DUPLO CONTEXTO EM QUE SE INSERE A SITUAÇÃO PORTUGUESA


OS CONSTRANGIMENTOS E A AUDÁCIA


 Portugal defronta-se com uma situação muito difícil, diariamente agravada por um Governo integrado no pensamento e acção política das forças capitalistas hegemónicas, apostadas numa alteração radical das sociedades ocidentais, tal como as conhecemos depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
Derrotado o comunismo soviético e recolocada a China naquilo que sempre foi a sua vocação geoestratégica, as forças do “liberalismo económico”, tendo ao seu serviço um poder ideológico nunca antes exibido pelo capitalismo, preparam-se para desferir o “golpe de misericórdia” em tudo aquilo que possa representar um entrave ao livre jogo das forças económicas.
Este movimento que avassala o Ocidente desde o início da década de oitenta baseia-se filosoficamente na ideia de liberdade como valor absoluto e ilimitado. Apostando no individualismo e nos instintos mais básicos da espécie humana, esta nova concepção do mundo ganhou uma força económica, ideológica e política como antes o capitalismo nunca tinha tido. Primeiro, porque contava com a forte oposição de todos os movimentos socialistas, principalmente dos de raiz marxista, que constituíam uma permanente ameaça à sua hegemonia e depois, a partir de 1917, pela tomada do poder num grande país pelas forças revolucionárias proletárias, as quais, uma vez consolidadas no poder, passaram a constituir, por um lado, uma barreira intransponível à vocação imperialista do capitalismo, contendo-o na sua insaciável voracidade, e por outro, uma força que favorecia, um pouco por toda a parte, mas principalmente nos países capitalistas desenvolvidos, a conquista, a expansão e o desenvolvimento de direitos, nomeadamente económicos, condizentes com a sua participação no processo produtivo. 
Este um facto incontroverso que a História registará. Um facto que tem a ver, por um lado, com a apropriação colectiva dos meios de produção na vasta área dominada pelo campo socialista soviético, e, por outro, por a própria União Soviética se confrontar geoestregicamente com as grandes potências do mundo capitalista, nomeadamente os Estados Unidos, como potência igualmente dominante com pretensões hegemónicas.
Esta dupla função desempenhada pelo campo socialista soviético é que constitui a causa primeira daquilo a que então no Ocidente se chamava “Capitalismo regulado”. E é, por isso, que aqui já se disse por mais de uma vez, com a liberdade criativa que os blogues favorecem, que quem regulou o capitalismo não foi a social-democracia nem o “New Deal”, mas José Estaline.
Como é óbvio – e nem valeria a pena sublinhá-lo –, tal facto, que se foi desenvolvendo no tempo ao longo de décadas, é, por um lado, independente do juízo que se faça sobre o socialismo soviético, nomeadamente na sua aptidão e capacidade para se tornar num pólo de atracção anti-capitalista, e foi, por outro, muito favorecido por a defesa dos valores igualitários gozar então de uma grande aceitação no seio dos próprios países capitalistas desenvolvidos.
Hegemonia que se começou a perder exactamente no preciso momento histórico em que o advento de movimentos libertários, de forte cunho individualista, de que o Maio 68 é o exemplo mais emblemático, começaram a dominar ideologicamente as correntes socialistas no chamado “mundo livre”, mesmo quando esse domínio ideológico não tinha correspondência na expressão eleitoral dessas forças.
Esta reacção libertária de cunho individualista protagonizada pela juventude e antes teorizada por pensadores aparentemente saídos da herança marxista tem várias causas. Há quem a explique como reacção à excessiva intervenção do Estado na vida dos cidadãos, demasiada engenharia social, deixando pouco espaço à liberdade individual. Independentemente do mérito explicativo destas considerações, o que parece não haver dúvida é que, por volta dos anos 60, o modelo socialista soviético tinha perdido toda a capacidade de atrair os movimentos contestatários de cariz libertário que pululavam por todo o Ocidente aparentemente contra o modelo das modernas sociedades desenvolvidas saídas do pós guera. Para isso muito contribuiu o que então se passava não apenas na própria União Soviética, onde apesar de tudo permanecia no imaginário de muitos uma remota tradição revolucionária, mas principalmente nas chamadas “democracias populares” do leste europeu que constituíam aos olhos de todos – partidos comunistas ocidentais inclusive – uma ridícula caricatura da ideia de socialismo.
Daqui até ao colapso da União Soviética, e com ela da dupla função que desde o fim da Segunda Guerra Mundial passou a desempenhar, foi um tempo que as forças capitalistas aproveitaram para inverter o domínio ideológico, doravante alicerçado na propagação de valores que a sua anterior prática permanentemente negava, mas que a partir de então encontraram um terreno favorável ao seu acrítico acolhimento, muito por força do descrédito em que caiu o modelo soviético, dominado por uma gerontocracia incapaz de inovar, que acabaria por levar, alguns anos mais tarde, à própria implosão do regime.
Direitos humanos, democracia, liberdade passaram a ser as palavras de ordem que a partir de então acompanharam o agigantamento das forças capitalistas. Escusado será dizer que tais conceitos, na interpretação e densificação que o capitalismo moderno lhes deu, ganharam desde então uma força de convencimento, ou talvez até uma consensualidade, que poucos se atrevem a contestar, tornando cada vez mais difícil lutar com base neles por uma concretização mais próxima das doutrinas igualitárias e obviamente diferente da veiculada pelas posições dominantes. Digamos que tais conceitos passaram no essencial a ter um fundamento ou uma base censitária: o gozo efectivo de direitos fundamentais, direito à representação política e algumas manifestações da liberdade dependem muito mais do dinheiro e do poder económico que se tem do que da cidadania.
Por outro lado, a liberdade, transformada em valor absoluto, é agora o principal veículo de desigualdade económica, cada vez maior e tanto mais acentuada quanto mais apelo o capitalismo faz à liberdade de acção dos agentes económicos detentores do poder. A título de exemplo, o Primeiro Ministro português, um fiel defensor do atraso civilizacional em curso, diz pomposamente que é preciso “democratizar a economia”. Democratizar a economia significa no seu ideário político conceder total liberdade aos agentes económicos, o mesmo é dizer, eliminar todos os direitos, agora chamados “entraves legais”, que possam perturbar o livre jogo das forças económicas.
Sabe-se onde levou essa “democratização da economia” na actual fase do capitalismo: ao valor supremo do mercado, hoje hegemonizado pelo capital financeiro.
E é neste o contexto geral que se desenvolve o drama português. Mas há também um contexto específico que não pode ser escamoteado: a inserção de Portugal na União Europeia e na zona euro. Principalmente a zona euro cria constrangimentos acrescidos, já que por via dela, além do domínio cada vez mais intenso exercido pelo capital, há também o domínio asfixiante exercido por forças económicas e políticas que, com base na moeda única, estão desenvolvendo um projecto hegemónico de dominação política.
Sair do euro não constituiria certamente o remédio para todos os nossos males, nem por si só nos libertaria de outros constrangimentos igualmente tentaculares. Mas poderia permitir encetar um novo caminho onde porventura fosse mais fácil ou, pelo menos possível, pôr em prática um projecto capaz de contrariar as tendências dominantes.
Não é um caminho fácil nem isento de dificuldades. É um caminho que seguramente acarretaria numa primeira fase inúmeros prejuízos, mas que teria a vantagem de fazer depender da soberania nacional as decisões com que se molda o futuro.
Seguir esta via seria ainda aceitar o efeito traumatizante que o corte da ligação à Europa, tal como ela hoje existe, teria para as forças políticas que se construíram à volta do conceito da unidade europeia ou que por falência de outros projectos se viram obrigadas a recorrer à Europa como mito, tal como recorrem a outros conceitos que agora já fazem parte do vocabulário corrente das forças hegemónicas.
Factos que nos levam a uma última consideração: quando os conceitos passam a desempenhar um papel ideológico contrário ao do seu sentido originário, por via da força hegemónica com que são actuados, importa mais mudar de conceitos do que aprofundá-los na vã esperança de que possam voltar a desempenhar um papel contrário ao do seu actual entendimento…
Este um tema certamente controverso, mas não menos inovador, que há que desenvolver com a coragem de quem já concluiu que não será pela via das velhas ideias nem pela repetição de conceitos cujo conteúdo é inteiramente controlado pelas forças do neoliberalismo que se chegará a um novo modelo de sociedade. Há que ousar…


sábado, 24 de dezembro de 2011

NATAL DOS SIMPLES

ZECA AFONSO

ARTUR SANTOS SILVA



NÃO PODIA HAVER MELHOR ESCOLHA



Como antigo bolseiro da Fundação Caloust Gulbenkian fico feliz com a escolha de Santos Silva para Presidente da Fundação. Nada melhor poderia ter acontecido à Gulbenkian e ao país do que a sua escolha. Como muitos disseram foi a escolha óbvia e imprevisível. Depois de tantos boatos e falsas notícias postos a circular na vã esperança de influenciar a decisão, a escolha de Santos Silva nestes tempos que correm apresenta-se quase como uma excepção, talvez por isso ninguém a tivesse previsto.

Pena que Santos Silva não possa dedicar-se a tempo inteiro ou exclusivamente à nova função sem ter de ocupar-se de outras que, além de lhe roubarem tempo e atenção, lhe trarão certamente muitas preocupações, deixando-o mentalmente menos livre para o desempenho do cargo. Não que o acúmulo de lugares possa perturbar o exercício das funções no sentido mais corrente do termo. Isso com pessoas com a personalidade moral de Santos Silva é questão que nem sequer se põe – e não são muitas as pessoas como Santos Silva.

Era mais porque Santos Silva nesta fase da vida merecia ter apenas um lugar como o da Gulbenkian sem ter de se ocupar também de bancos que hoje são a causa universal, ou, pelo menos, ocidental, da nossa desgraça. Por eles perdemos salários; por eles perdemos pensões; por eles perdemos empregos; por eles somos sobrecarregados com impostos; por eles empresas abrem falência; por eles se esvai a democracia…

Era só por isso que eu muito gostaria de ver o Santos Silva apenas na Gulbenkian ou, quem sabe, depois, noutro lugar …


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

PREOCUPAÇÕES ALEMÃS



UM TEXTO ESCLARECEDOR

A criação da União Monetária Europeia nunca foi o grande sonho dos alemães. O chanceler Helmut Koll, consciente do valor emblemático que para muitos tinha o deutschmark, teve que empregar-se a fundo para convencer os seus concidadãos. Aceitámos o euro rapidamente. Diferentemente da Espanha, na Alemanha, quando se fala do que custa um carro ou uma casa, ninguém se expressa na antiga moeda nacional. Também estendemos ao BCE o respeito que sempre tivemos ao Bundesbank como guardião da estabilidade dos preços. E esse respeito deve-se ao facto de a política monetária do BCE revelar uns registos razoáveis no controlo da inflação - um tema ultra sensível na sociedade alemã, em cuja memória histórica figuram os enormes danos causados pela hiperinflação da República de Weimar há quase 90 anos e a inflação reprimida depois da II Guerra Mundial.

Na actual crise da dívida soberana o que preocupa muita gente na Alemanha, especialmente entre os assalariados, pensionistas e aforradores, é que a zona euro deixe de ser uma união de estabilidade, com uma moeda forte ,para se converter numa união de transferências financeiras dos países com solidez orçamental para os países com Governos vocacionados para o excessivo gasto público financiado com a dívida. As pressões políticas sobre o BCE para que este seja mais permissivo relativamente à inflação seriam fortes. O euro passaria a ser uma moeda débil. A reputação internacional da autoridade monetária cairia. Para a Alemanha complicar-se-ia neste caso o seu estatuto como país membro da zona euro: em 1993, no contexto da lei de ratificação do tratado de Maastricht, o Tribunal Constitucional Alemão sentenciou que uma União Monetária Europeia com inflação não seria compatível com o direito à propriedade privada garantido pela Lei Fundamental. O argumento dos magistrados foi então o de que a inflação equivale a uma expropriação dos particulares pelo Estado, e isso na Alemanha só está permitido se previamente o Parlamento aprovar uma lei determinando a forma e o montante da indemnização. Para um economista este raciocínio tão subtil é absolutamente convincente; para o cidadão comum, também.

Entre os acordos adoptados na recente cimeira europeia, o que mais convenceu a opinião pública alemã, e tem valido elogios à chanceler Merkel pela sua tenacidade durante as negociações, é o do reforço das regras da disciplina orçamental. A chave está em que os países da zona euro (e os demais da UE, com excepção do Reino Unido) se comprometeram a auto decretar pela via constitucional limites exigentes para o endividamento das Administrações públicas. A Alemanha já tem essa norma (desde 2009), a Espanha vai pelo mesmo caminho e em outros países (França, Itália, Áustria) abriu-se o debate a respeito deste assunto. Isso são sinais prometedores de que os líderes políticos aprenderam algo importante com a crise da dívida soberana: que o esbanjamento de recursos e o endividamento irresponsável ficam muito caros ao país que os pratica tanto financeiramente (pelo prémio de risco da taxa de juro) como economicamente (pela perda de crescimento e pelo desemprego). Os ajustamentos fiscais inexoráveis não vão ser indolores em nenhum país. Na Alemanha, a consolidação orçamental a nível federal e regional é aceite pela sociedade, mesmo quando haja lugar à perda de um ou outro direito adquirido. A redução da dívida do Estado é compreendida como um objectivo prioritário, a tal ponto que, como revelam as sondagens, a maioria da população recusa uma redução dos impostos mesmo nos tempos actuais em que há uma boa arrecadação de receitas tributárias.

Sob o pressuposto de que os acordos fiscais se cumprirão e os políticos não voltarão a transgredir as normas, como fizeram no passado, muitos na Alemanha se questionam se os Governos de outros países farão também as reformas estruturais indispensáveis para elevar o crescimento e a criação de emprego. Por muito que o BCE continue comprando bónus do tesouro de países com problemas de refinanciamento ou que se aumente a capacidade de “alavancagem” do Fundo de Estabilização Financeira ou que se envolva mais o FMI nos resgates, a zona euro não sairá do atoleiro se não se reforçarem paralelamente os pilares da economia real. Na Alemanha temos tido uma boa experiência com as reformas estruturais que se iniciaram há sete anos (Agenda 2010). O mercado de trabalho é agora mais flexível e o contexto para o investimento e a inovação mais amigável. Tudo isto se traduz em níveis comparativamente elevados da produtividade do factor trabalho e da competitividade internacional das empresas. O Pacto Euro Plus, aprovado em Março pelo Conselho Europeu a instâncias da chanceler Merkel, aponta nesta direcção. Porém, até agora não se traduziu nos países membros em políticas contundentes de reformas”.



Este texto foi escrito por Jürgen B. Donges, professor da Universidade de Colónia, e publicado por El País no domingo passado.

É um texto a vários títulos esclarecedor das posições alemãs.
Na primeira publicação deste post a imagem que encimava o texto reproduzia uma deturpação que a Focus alemã fez da imagem da Afrodite, que pode ser vista aqui, procurando-se com a sua colocação no texto fazer uma alusão aos dois discursos alemães sobre a crise: o discurso polido e o discurso do Bild. Dois discursos, um único objectivo. Como a imagem é ofensiva da cultura grega e embora a sua aposição no post não tivesse obviamente em vista ofender o passado grego, mas antes ilustrar o modo como os alemães vêem a "gente do sul", entendeu-se, para evitar mal entendidos,  substituí-la pela da Senhora Merkel que, não tendo nada de Afrodite, tem contudo muito de alemã e representa melhor do que ninguém os dois supra aludidos discursos.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

AS ALTERNATIVAS COM QUE PORTUGAL SE DEFRONTA



AS VERDADEIRAS OPÇÕES ESTRATÉGICAS



Muito se tem falado entre nós sobre a crise da dívida ou antes sobre a crise do euro, como parece preferível chamá-la, e muitas são as pessoas que dos mais diversos modos têm exprimido a sua indignação perante o que se passa.

Por mais louvável, e até útil, que seja o estado de espírito de quem se indigna, a verdade é que essa indignação, alguma dela já expressa em movimentações de cunho político-moral com alguma organicidade, se tem revelado insuficiente tanto para ajudar a compreender o que na realidade se passa, como para se transformar numa eficaz proposta de acção, mobilizadora, susceptível de levar a uma verdadeira alternativa política.

De facto, as propostas que andam à volta de uma alteração da política europeia, que sempre teria de ser radical para ser eficaz, revelam-se à medida que os dias vão passando uma autêntica miragem, nas quais não vale a pena investir tempo nem talento, sob pena de na sua impossibilidade prática se perder, pelo desencanto, a maior parte das forças dos que estão dispostos a empreender com entusiasmo uma luta contra a presente situação.

De facto, o que está em causa é um projecto de poder à escala europeia quaisquer que sejam os argumentos com que esse projecto tem vindo a ser apresentado e a ser posto em prática. Um projecto alemão de poder, agora já exibido sem subterfúgios, não muito diferente de outros que a mesma Alemanha tem protagonizado desde que no século XIX se unificou, embora recorrendo desta vez a meios diferentes dos que noutros contextos utilizou.

Mas a retórica é substancialmente a mesma. Há sempre alguém de fora que está a perturbar a grandeza e a pureza germânica. Seja a oposição dos que recusam à Alemanha novos “espaços” exigidos pela “vitalidade” do povo alemão; seja a inferioridade racial que, depois de se ter apoderado de parte das riquezas, estava corrompendo o “espírito do povo”, urgindo, por isso, eliminá-la sem deixar sementes para evitar que semelhante desaforo volte a repetir-se; seja o laxismo da gente do sul a quem o sol e o seu uso imoderado com reflexos directos nas longas sestas, nas refeições a horas tardias, no excesso de férias e em tantos outros vícios que o rigor germânico não pode deixar de combater com toda a firmeza para impedir que se ponha em causa o que há de mais valioso no património cultural alemão, agora também ele mais próximo do materialismo dominante: a estabilidade financeira e monetária; os aforros de uma classe média prudente e moderada; as pensões dos que descontaram durante uma vida de trabalho honesto e dedicado.

Este discurso germânico é apresentado pelos seus porta-vozes (aparentemente) mais polidos como um imperativo moral exigido tanto pela salvaguarda de interesses legítimos como pela necessidade de corrigir comportamentos alheios, no interesse dos próprios, através de meios coactivos, eficazes e credíveis, destinados a impedir o descontrolo de quem já deu sobejas provas de desregramento.

 Para os outros, para os que falam a linguagem do “Bild”, e que nem sequer têm de disfarçar aquilo que realmente querem dizer, o discurso é muito mais claro: os gastadores irresponsáveis do sul são uma espécie de drogados ou de alcoólicos a quem é preciso, para bem da comunidade, infligir severas sanções e sacrifícios correspondentes aos perversos prazeres de que imoralmente desfrutaram.

E contra isto não adianta estar a esgrimir argumentos morais. Não adianta estar a lembrar aos alemães as condições que lhes foram proporcionadas a seguir à guerra para reconstruir o país; não adianta recordar-lhes as vantagens que o euro lhes proporcionou; não adianta demonstrar-lhes a responsabilidade dos credores no endividamento dos devedores (eles até têm Nietzsche, para responder a esse argumento); não adianta, numa palavra, lembrar-lhes onde chegaram e como chegaram à situação em que estão. Assim como não adianta tentar demonstrar-lhes que uma outra política que se alheasse da culpa e da austeridade e apontasse mais no sentido do crescimento acabaria por satisfazer o seu interesse muito mais eficazmente do que as políticas que estão a ser seguidas.

Os alemães não são sensíveis a argumentos morais quando está em causa a interpretação dos seus interesses e o entendimento que deles têm. Não são hoje como não eram ontem, quando, durante a guerra, se não questionavam sobre a prosperidade que a rapina de riquezas alheias e o trabalho escravo de milhões de pessoas lhes proporcionavam. Não são hoje como não eram ontem, quando, alheados e indiferentes, assistiam impassíveis (para não falar dos autores) ao extermínio de milhões de seres humanos.

E, por favor, que se não invoque os grandes nomes da filosofia alemã, da música, da poesia e até da literatura para matizar este juízo. Todos eles já existiam quando o descalabro moral alemão aconteceu. Por isso nada melhor do que citar o velho Marx, sempre muito seguro nas suas generalizações: “Os alemães só se encontram com a liberdade no dia do seu enterro”.

Perante este quadro, somente duas posições são viáveis, curiosamente muito bem expressas em dos textos ontem vindos a lume no jornal “Público”, um de Vítor Bento, outro de Loureiro dos Santos:

Ou a subserviência ao projecto alemão, de que o Governo português é um dos mais conhecidos defensores, mesmo assim criticado por Vítor Bento, por estar a perder o “tempo político” para introduzir as indispensáveis reformas estruturais, nomeadamente no campo laboral – leia-se uma significativa deflação dos salários que deveria ir até aos 50%; ou seja, a posição dos que, por razões ideológicas ou por limitações do pensamento tecnocrático – uns e outros subvertidos pelo discurso inimigo -, são incapazes de apresentar uma proposta nacional condizente com a dignidade de quem não aceita subjugar-se;

Ou os que já concluíram que no actual contexto o único meio de combater o projecto hegemónico germânico é abandonar o euro, por maiores que sejam as dificuldades no curto prazo. Um caminho difícil, mas o único compatível com a dignidade nacional, que tem de ser percorrido sem ilusões e com a antecipada certeza de que não serão muitos, agora como no passado, aqueles que estão dispostos a não aceitar o jugo germânico, pelo menos enquanto a hegemonia for evidente.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

PAULO PORTAS NA RTP



A CASSETE DOS SALÁRIOS E DAS PENSÕES



Ainda não tinham decorrido cinco minutos desde o início da entrevista, já Paulo Portas tinha dito por três vezes que a “ajuda externa” e o que se fez de então para cá foi que para garantir os salários e as pensões que, sem ela, não poderiam ser pagos.

É bom que Paulo Portas tenha dito isto na sequência de outras intervenções semelhantes de Relvas & C.ª. Já todos o sabíamos, mas não há nada como ver as coisas confirmadas: os salários e as pensões são a última prioridade do Governo PSD/CDS, ou seja, a primeira despesa a ser cortada se o dinheiro não chegar para tudo!

E não é preciso ouvir mais nada…


O ÚLTIMO CONSELHO EUROPEU





A AUSTERIDADE E A INTERGOVERNAMENTALIDADE



Contrariamente às múltiplas reuniões do Conselho Europeu havidas este ano, a do último fim-de-semana foi indiscutivelmente importante. Pelas piores razões. Em primeiro lugar, porque dela resultou o compromisso de passar a tratado as ruinosas políticas de austeridade que vinham sendo impostas de facto, com base numa correlação de forças que os Estados em dificuldades nunca tiveram a coragem de tentar inverter ou, pelo menos, alterar por pouco que fosse. E depois, porque marca inequivocamente a passagem para o domínio da intergovernamentalidade daquilo que antes pertencia de jure ao foro comunitário.

Entre os que mais tem a perder com estas alterações ninguém levantou a voz, ninguém se opôs. Como cordeiros, alinhados e em fila, aceitaram ser sacrificados em nome de um futuro que somente o fanatismo levado ao extremo, acompanhado de doses maciças de subserviência, pode justificar.

Aceitar que possa ser pela via do rigor orçamental, alcançado – se é que será – à custa de brutais ajustamentos em sectores fundamentais para o desenvolvimento, levará necessariamente a recessões duradoiras nos países intervencionados ou em vias de o serem, com o conhecido cortejo de misérias associado a essas políticas: desemprego, baixa de salários, eliminação ou limitação dos direitos sociais em todos os sectores: habitação, saúde, ensino, segurança social, nomeadamente.

É claro que os fanáticos como Gaspar, porventura o Álvaro, mais o Crato e o Macedo, pensam – e o Primeiro Ministro, se pensasse – que será pelo aumento das exportações que tudo se resolverá. Puro engano, pelas razões sobejamente conhecidas. O aumento das exportações tem limite, as exportações dependem de factores que o exportador não controla e, em última instância, seria economicamente impensável, porque economicamente impossível, tornar a União Europeia numa espécie de Alemanha.

Seguro é essa quebra brutal nas despesas orçamentais levar a uma forte contracção da iniciativa privada. Como tantas vezes se tem dito, o problema não está no défice orçamental, mas no défice estrutural da economia portuguesa, no défice de conta corrente de que se falou no último post, não havendo nada, absolutamente nada, na política da União que tenha sido feito para o eliminar ou gradualmente atenuar. Nem relativamente a Portugal, nem em relação aos vários países que se encontram na mesma situação.

Para superar a presente situação, que decorre, por um lado, da entrada em cena dos países emergentes e, por outro, da “arquitectura” da moeda única, a zona euro teria de ser refundada no sentido de uma aproximação a um conceito federativo, de raiz democrática, onde estivessem efectivamente presentes – e não como pura retórica - os vínculos de solidariedade, a começar pela solidariedade orçamental, muito mais importante de que os famosos “eurobonds” que, por si só, nada de estrutural resolverão.

Como nada do que está sendo feito aponta neste sentido, indo antes na direcção de uma dominação completa dos mais fracos pelos mais fortes, sem que da parte dos governantes, a começar pelos nossos, se esboce o mais leve sinal de defesa das prerrogativas nacionais, alguém mais tarde ou mais cedo vai ter de assumir esse papel.

Ver-se-á depois quem e por que meios. Assim, não vai ser possível continuar por muito mais tempo. E é perante este cenário que a esquerda tem de se posicionar e ir agindo em conformidade com vista a uma nova situação na qual ou é protagonista ou será derrotada!

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

AINDA A QUESTÃO DA DÍVIDA E O CONSELHO EUROPEU



A ILUSÃO DO EQUILÍBRIO ORÇAMENTAL NA LUTA CONTRA A CRISE

Como se vê pelos comentários ao último post, a dívida continua a ser uma questão que mobiliza a opinião de muita gente pelo interesse que o assunto suscita.
Há, porém, certas questões que interessa aprofundar para evitar equívocos desnecessários.

A primeira é esta: em Portugal, quando falámos de dívida, do que é que estamos a falar? Da dívida ou de Sócrates?

A segunda questão sobre a qual igualmente interessa opinar é a seguinte: a dívida era inevitável ou decorre de um conjunto de erros de governação?

A terceira, que também não pode ser evitada, é esta: de que dívida estamos a falar? Da pública ou da privada? Ou de ambas? E, neste último caso, que relação há entre elas?

Finalmente – a questão mais difícil -, o que se poderia fazer para superar a actual situação.

Primeira questão – Neste blogue já se falou suficientemente de Sócrates e da sua governação durante o tempo em que desempenhou as funções de Primeiro Ministro. Não adianta continuar a misturar as duas questões, por mais relevante que tenha sido o seu papel na contracção da dívida pública. Digamos que Sócrates foi apenas o nosso protagonista na parte final da contracção dessa dívida. Cada país, principalmente os que já estão em dificuldades bem como aqueles que se apressam a juntar a estes, teve, ou tem ainda, o seu ou os seus protagonistas.

E esta é a primeira conclusão que nos deve fazer pensar: se todos têm um “Sócrates” há aqui uma coincidência que a análise dos fenómenos sociais não pode desprezar. Por outras palavras, porventura pomposas na forma, mas adequadas a exprimirem a ideia que se pretende expor: o método científico não pode desprezar as coincidências. Tem de tentar perceber se há alguma relação constante de causa e efeito nos fenómenos analisados ou, se, pelo contrário, a verificação de resultados semelhantes em diversos países não passa de uma simples coincidência.

Segunda questão - Hoje, já não há ninguém que, analisando seriamente o que se está a passar na zona euro, não tenha chegado à conclusão de que a sua “construção”, incorporando países tão diversamente competitivos e onde a integração económica foi pura e simplesmente deixada às livres forças do mercado, potencia o incremento da dívida entre os seus membros.
Por um lado, o excesso de liquidez resultante de múltiplas “borbulhas” especulativas nos países desenvolvidos e, por outro, um grande espaço económico de livre circulação de bens, serviços e capitais, actuado por parceiros muito desiguais sob a égide da mesma moeda, levou à formação de enormes excedentes financeiros, uns e outros propiciadores de capital barato que convidam ao endividamento em larga escala.

Dir-se-á que tal endividamento era evitável se os governantes tivessem limitado as despesas públicas a uma razoável relação com os rendimentos gerados pelo próprio país, mesmo tendo em conta os rendimentos esperados dos investimentos feitos mediante recurso ao crédito.
É evidente que se o Governo tivesse sabido (ou quisesse) resistir à pressão dos grandes interesses, nomeadamente do capital financeiro;  se não tivesse concluído negócios ruinosos para o Estado, como aconteceu com a maior parte das parcerias público-privadas; se tivesse deixado falir o BPN, certamente que a dívida pública teria outro peso. Mas não é pensável supor, nos tempos que correm, a existência de um país como Portugal sem dívida. Dívida haveria sempre, a menos que prescindíssemos da maior parte das vias de comunicação, de hospitais, de escolas, enfim de todo um conjunto de infra-estruturas que mudaram completamente a face do país.
Portanto, não é de crer que a maioria das pessoas se sentisse bem num país que tivesse limitado as suas despesas aos recursos fiscais anualmente arrecadados pelo Estado, recursos que tenderiam, obviamente, a diminuir tanto mais quanto menos despesas houvesse. Não é de crer que alguém advogue um país sem dívida, muito orgulhoso da ausência de passivo, atrasado, etc.
Claro que entre esta situação, que aponta para uma espécie de “salazarismo económico”, e um endividamento excessivo vai uma grande diferença. Mas já não irá assim uma tão grande diferença entre o endividamento que temos e o endividamento que “legalmente” poderíamos ter – 60% do PIB. Como se verá pela análise da questão seguinte, os resultados não seriam substancialmente diferente.

Terceira questão – Temos estado a falar da dívida pública como se esta fosse a origem de todos os nossos males. A verdade é que, muito mais importante que a dívida pública, é a dívida privada. O défice fiscal, contrariamente ao que propagandeiam as forças reaccionárias, não é a causa dos nossos males. Sem desvalorizar as consequências negativas de um endividamento público excessivo, a verdadeira razão dos nossos problemas é o défice de conta corrente. Ou seja, o défice da balança comercial (diferença entre o que se exporta e o que se importa); o défice da balança de serviços e de capitais (fretes, seguros, turismo, recebimento de juros, exportação de lucros, remessas de emigrantes e de imigrantes) e das transferências unilaterais. Se o saldo da conta corrente é negativo, isso significa que o país está em dívida para com o exterior. Ora, como bem se sabe o saldo de conta corrente de Portugal não cessou de aumentar depois da preparação do país para adesão ao euro - adesão ao SME e medidas que para o efeito tiveram de ser tomadas.

Em todas as componentes da balança de transacções correntes há défice, mas o da balança comercial é certamente o que mais preocupa. Esse défice revela que o euro, fora da zona euro, é para países como Portugal uma moeda cara para exportar e consequentemente barata para importar. Dentro da zona euro, a moeda única facilitou importações que noutras circunstâncias não poderiam ter sido feitas  ou não teriam atingido o mesmo volume e foi, durante muito tempo, uma moeda barata para as pessoas se endividarem, o que levou a que os grandes negócios e as principais “fontes de desenvolvimento” assentassem no incremento da procura interna, em larga medida incidente sobre bens importados, e em investimentos (com financiamento externo) em áreas muito lucrativas onde se actua a coberto da concorrência internacional – os chamados “bens não transaccionáveis”. São as obras públicas, a construção imobiliária, mas também as grandes empresas de prestação de serviços actuando em regime de monopólio ou oligopólio. Estes investimentos e as importações criaram uma dívida privada gigantesca que, essa sim, é que está na origem da crise da dívida, ou, mais correctamente, da crise do euro.
E há uma relação indissolúvel entre as duas dívidas – a pública e a privada. Por um lado, a pública tende a aumentar tanto mais quanto menos competitiva no plano internacional for a economia do país. As pressões do capital financeiro sobre o Estado serão tanto maiores quanto menor for a capacidade da iniciativa privada para se impor no mercado internacional, nomeadamente o europeu.
E depois há uma outra consequência que verdadeiramente só irá desencadear-se em toda a sua pujança nos anos que aí vem. É a que decorre da assumpção pelo Estado do chamado “lixo tóxico” que figura nos activos dos bancos. Pode protestar-se, pode discordar-se, mas no actual sistema neoliberal de hegemonia do capital financeiro não há maneira de fugir a esta consequência. Quem quiser realmente evitá-la tem igualmente que estar de disposto a mudar de sistema, opção que está por demonstrar relativamente a muitos dos que agora protestam contra a dívida
A Irlanda e a Espanha não tinham défice fiscal; pelo contrário, ambos os países chegaram a ter superávide. Nem tinham (e a Espanha ainda não tem) uma dívida pública desproporcionada relativamente ao PIB. Tanto num como noutro a dívida andava abaixo dos 40% do PIB. E passou-se o que todos sabem: por força da crise financeira ambos os países geraram um défice fiscal elevado e aumentaram consideravelmente a dívida pública. Porquê? Porque tanto em Espanha como na Irlanda a dívida privada é superior ao dobro dos respectivos PIB.
Na Irlanda já se viu quais são as consequências para o Estado, o mesmo é dizer para os cidadãos contribuintes, dessa dívida gigantesca, reflectida na ruína de todo o sistema bancário cuja falência o Estado teve de evitar. De facto, o Estado teve de salvar os bancos da falência contraindo dívida pública na mesma proporção daquilo que, numa primeira aproximação, se julgava ser o lixo tóxico existente nos seus activos. Mas tanto na Irlanda como em Espanha, países da zona euro onde a borbulha imobiliária especulativa atingiu as maiores proporções, continua a haver muito “lixo” no activo dos bancos que tem de ser saneado. E o que vai acontecer é que esse “lixo”, principalmente proveniente dos mil e um negócios especulativos feito na área do imobiliário, vai ter de ser assumido pelo Estado. Depois se verá como: se pelo valor que figura nos balanços, se por uma certa percentagem, mas não certamente pelo preço de mercado que, na maior parte dos casos, é nulo. E o Estado assume esse passivo “contraindo” dívida pública.
O que já se passou na Irlanda (também na Islândia e noutros países da União Europeia, até da zona euro, não intervencionados,) passar-se-á no ano que vem em Espanha e em todos os países onde os activos dos bancos sejam em percentagem apreciável constituídos por créditos incobráveis ou de muito difícil cobrança.
Portanto, a relação entre a dívida pública e a privada é muito forte. Os desequilíbrios de conta corrente gerados pela zona euro acabariam sempre por se repercutir na dívida pública, tornando-a num grave problema, mesmo que à partida ela estivesse circunscrita aos tais limites de razoabilidade de que acima falámos.
Para não alongar exageradamente este texto, a última questão – que tem a ver com o último Conselho Europeu e com a ilusão do equilíbrio orçamental como factor de superação da crise - será tratada em post separado.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

SÓCRATES E A DÍVIDA



O PRECONCEITO COMO GUIA DE ACÇÃO



Sócrates falou sobre a dívida em França e um enorme alarido levantou-se em Portugal. É de crer que por duas razões. Primeiro, por Sócrates ter falado – votado como está ao ostracismo não tem direitos de cidadania; auto-expulsou-se da polis para não ser condenado, logo não deve interferir nos negócios da “cidade”; depois, por ter dito que essa coisa de pagamento da dívida era conversa de crianças.

Portas, do alto da sua inteligência, disse que tinha lido três vezes para tentar perceber a frase. Estava abismado! À esquerda do PS e no PS que repudia Sócrates os comentários foram chocarreiros. E até Freitas, em voraz busca de novo tacho, conhecido especialista em perfídia, traição e oportunismo, achou conveniente abandonar por momentos o seu limitado raio de acção de raciocínio por alíneas e chavetas para tentar fazer humor, concluindo que, agora sim, compreendia por que razão a "bomba lhe estourou nas mãos". 

E todavia Sócrates disse o óbvio. Que a dívida era para ser gerida. De facto, ninguém pensa em pagar a dívida no sentido de a liquidar, chame-se o devedor Alemanha, Estados Unidos, Grécia ou Portugal. E mesmo quando por razões de racionalidade económica algum daqueles devedores resolve antecipar o pagamento da dívida, fá-lo como simples acto de gestão da dívida, contraindo outra, a preço mais baixo, para pagar a antiga. Mas a dívida, como ónus, mantém-se e o que tem é de ser gerida.

A dívida representa, portanto, uma despesa, como qualquer outra, inscrita no orçamento, para se fazer ao longo do ano.

Até aqui, tudo certo e tudo óbvio. Então porquê o problema da dívida? O erro de Sócrates é, no fundo, o erro da zona euro. Sócrates, como toda a gente na zona euro – toda a gente salvo aqueles, raríssimos, que desde início apontaram os defeitos da “construção” da moeda única – acreditou que no maior e mais rico espaço económico do mundo nunca iriam faltar os recursos financeiros a preços comportáveis. Porventura até terá pensado, como tantos outros, actuando neste ou noutros espaços económicos igualmente ricos, a começar por Greenspan, que esses recursos financeiros não só nunca faltariam, como seriam cada vez mais baratos. Logo, a dívida continuaria a ser gerível por os recursos que anualmente lhe estão afectos continuarem dentro de uma comportável percentagem do montante global das despesas orçamentais.

Enganou-se. Enganaram-se todos, ou não fosse o homem o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra. E se for economista, três, quatro, as que calhar…O que Sócrates não suspeitava é que esses recursos financeiros que caíam em catadupa sobre os “carentes de capital” iriam, de um momento para o outro, tornar-se escassos, muito escassos, levando essa escassez a uma subida vertiginosa dos seus preços. E quando isso aconteceu – não interessam agora as causas: elas têm sido várias nos últimos quarenta anos, embora nunca como desta última vez – a dívida deixou de ser gerível. E foi o que se viu, melhor, o que se está a ver.

Dir-se-á: se a dívida pública fosse menor, o problema seria menos grave. Mentira. Havia quem tivesse uma dívida pública bem menor e esteja com problemas bem maiores; há quem tenha uma dívida pública igual e tenha problemas bem menores; há quem tenha uma dívida maior e não tenha qualquer problema de gestão da dívida.

Portanto, se um ser racional quer pautar o seu comportamento por aquilo que em última instância o distingue à superfície da terra vai ter necessariamente de concluir que essa correlação entre o montante da dívida pública e o grau de dificuldade ou a de facilidade da sua gestão é uma coisa um pouquinho mais complexa do que à primeira vista parece.

E, portanto, deve continuar a indagar até encontrar uma resposta que o satisfaça, pondo de parte reacções pavlovianas, sob pena de ficar limitado pelo reflexo condicionado que o simples enunciado de um nome com uma determinada carga vocálica tende a provocar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

MAIS ALGUMAS NOTAS SOLTAS



O CAMINHO PARA O ABISMO CONTINUA



SEGURANÇA SOCIAL – De uma penada o Governo PSD/CDS, com a colaboração de anteriores  governos PS, afunda a segurança social e recapitaliza de graça os bancos à custa das gerações futuras.

É isso o que hoje se está a passar na AR com a transferência do fundo de pensões da banca para o Estado. Os bancos vêem-se livres do lixo em que tinham investido os descontos dos bancários e ainda recebem em troca liquidez numa percentagem apreciável das obrigações que sobre eles impendiam.

É evidente que estando o Governo a fazer transferências muito superiores às necessidades de correcção do défice elas só podem ter como objectivo descapitalizar a médio prazo a segurança social e abrir finalmente ao capital financeiro as portas desses fabuloso negócio.

Só mesmo os ingénuos acreditam que “isto” pode ter alguma solução sem a destruição do capital financeiro. Mas há mais: os comportamentos pérfidos daqueles que ao leme mais não fazem do que sacrificar as pessoas aos interesses da banca não podem ficar fisicamente impunes…

A CONSTITUCIONALIDADE DO ORÇAMENTO – É evidente que se aquelas coisas que os constitucionalistas dizem “em tempos normais” fossem para levar a sério, o Orçamento para 2012 seria inconstitucional. Uma inconstitucionalidade do tamanho da Torre dos Clérigos. Mas não são, como toda a gente já percebeu. Daí, o “jogo do empurra” a que se tem assistido. Os juízes dos tribunais comuns, a quem caberia em primeira linha declarar a inaplicabilidade (ou “desaplicar”, como alguns gostam de dizer) das normas inconstitucionais, exigem ou pedem ao Presidente da República que submeta ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva das normas que ele próprio já considerou contrárias à Constituição. Cavaco ainda não se pronunciou, mas não será preciso ser bruxo para antecipar o que ele vai fazer. Já actuou politicamente, pressionou e depois criticou o Governo, incitando-o a actuar num sentido diferente. Perdeu. O Governo com o mandato imperativo recebido do capital financeiro não lhe deu cavaco. Não é, portanto, crível que o Presidente se vá agora “embrulhar” numa guerra jurídica com o Governo, ainda por cima de desfecho mais que previsível. Resta a hipótese, dentre as hipóteses viáveis, de um conjunto de deputados pedir ao Tribunal Constitucional, em sede de apreciação sucessiva, com força obrigatória geral, a declaração de inconstitucionalidade das normas em causa. Pedido que o TC apreciará segundo as “conveniências políticas” da sua agenda quando bem entender. Entre os optimistas há quem diga que o fará depois de Junho para manter os efeitos já produzidos do primeiro corte – subsídio de férias -, de modo a que a declaração de inconstitucionalidade fique circunscrita ao segundo corte – subsídio de Natal. Pura ingenuidade! O Tribunal Constitucional fazendo os habituais “números de trapézio” em que é institucionalmente perito, independentemente da experiência dos “trapezistas” de serviço, não detectará nas normas em causa qualquer vestígio de inconstitucionalidade. Noutras talvez sim, mas não nas que foram editadas…

Conclusão: isto do direito público nas relações entre os cidadãos e o poder não passa, em tempos de crise, de uma farsa. Quando o soberano ou aquele que como tal se assume contraria com o seu comportamento a norma suprema não está a transgredir, mas a modificar a norma. Ou seja, estas questões não são do domínio do direito, mas da política, das relações de força, do poder….quem pensa o contrário não regula bem da cabeça.

O "MAINATO" ROMPUY – Com o euro a estilhaçar-se por todo o lado, o semi-falido Sarkozy e a obstinada Merkel não encontraram melhor forma de o salvar que não fosse a aprovação de um catálogo de sanções, a incluir num novo tratado, destinadas a punir os culpados e fazê-los expiar publicamente os pecados que cometeram. Depois de acertada esta surrealista conversa entre ambos, entregaram o texto ao “mainato" Rompuy que, vestindo os seus melhores aventais de serviçal, se encarregará de apresentar aos demais, como coisa sua, o convénio franco-alemão.

Duas conclusões óbvias: os ingleses apenas estão interessados em manter o mercado europeu como espaço de comércio livre, sem barreiras, e de preferência sem ter de pagar o que quer que seja por isso. Tudo o que possa perturbar agora ou no futuro próximo esse objectivo, eles serão contra. Quanto aos demais: Rompuy pode contar com o apoio entusiástico dos representantes do capital financeiro. Depois ainda há os outros que, muito provavelmente, pouco ou nada contarão…

GEORGE WRIGHT – Os americanos recorreram da sentença que negou a extradição. O Wikileaks, mostrando o que se passou em Espanha com questões do foro judicial, deixou claro que os americanos não hesitarão fazer pressões máximas - e como sempre...irresistíveis -  a todos os níveis, diplomáticos, políticos e judiciais, para obterem ganho de causa. No lugar do Wright, o mais prudente seria, por uns tempos, ir passar umas férias num “país seguro”. É que aquela de pôr o FBI em cuecas, que nem os pides da António Maria Cardozo, no 25 de Abril, exige vingança…Atenção, portanto!




PARA NÓS, A EUROPA ACABOU

AGORA RESTA SABER COMO SAIR DELA



Para o Partido Socialista a conclusão de que a Europa acabou vai ser extremamente dolorosa.
Primeiro, porque o PS – o PS de Soares – tinha da Europa uma ideia completamente diferente daquilo em que ela hoje se tornou. Para Soares a Europa era antes de mais a barreira inexpugnável contra o comunismo, uma barreira construída com alguma ideologia, mas acima de tudo alicerçada na prosperidade que a social-democracia assegurava aos que, não sendo titulares dos meios de produção, tiravam vantagem de um pacto social que garantia uma distribuição da riqueza razoavelmente equitativa. É nesta convicção, e no contexto socioeconómico existente na Europa Ocidental do pós guerra, que Soares não hesitou em virar as costas àquilo que sempre tinha sido o posicionamento de Portugal no mundo, convencido, como estava, que desse ancestral relativo isolamento europeu só poderia resultar pobreza, desigualdade, discriminação, tudo factores que ele associava à criação de condições propícias ao nascimento ou manutenção de regimes não democráticos.
A “Europa connosco” de Soares é, portanto, uma palavra de ordem estratégica destinada ao fomento de uma forte classe média capaz de pôr o país a coberto de qualquer tentação totalitária.
Apesar de a Europa Ocidental nunca ter verdadeiramente sido aquilo que Soares imaginava que ela fosse, a verdade é que ela se transformou a partir da década de oitenta do século passado, mais impressivamente da década seguinte, numa Europa que passou a caminhar desabridamente para a total assimilação dos grandes princípios ideológicos do capitalismo liberal impulsionados pelo mundo anglo-saxónico, curiosamente oriundos da Europa Central (Friedrich Hayek, Joseph Scumpeter, Karl Popper, entre outros), mas que encontraram na cultura do individualismo americano o terreno fértil para medrarem com toda a pujança algumas décadas mais tarde.
Estes “antepassados próximos” da Escola de Chicago, mais alguns princípios do pensamento neoconservador que desde a década trinta foi forjando na América uma nova doutrina política, curiosamente alicerçada num passado trotskista, são os inspiradores teóricos daquilo em que a Europa hoje se tornou, inicialmente por força do relevantíssimo papel desempenhado pelos partidos socialistas e social-democratas europeus que foram os primeiros a deitar mão à obra de destruição do capitalismo regulado que antes tinham ajudado a implantar e depois pela consolidação dessa desregulamentação que os partidos abertamente de direita acabaram por fazer, concluindo o que restava destruir da obra deixada inacabada pelos socialistas.
Obviamente que para este resultado – nunca será de mais lembrá-lo – contribuiu decisivamente a desagregação da União Soviética e o colapso do chamado “socialismo real”, que até então tinham sido a verdadeira razão de ser do “capitalismo regulado”. Terminada a Guerra Fria, da qual o chamado “mundo livre”, nomeadamente a América, saiu aparentemente vencedor, uma nova era nasceu fundamentalmente caracterizada por um capitalismo sem barreiras que estendeu a sua influência aos quatro cantos do mundo e encontrou na economia global a sua verdadeira matriz.
Supor que a História a partir daí acabaria e que os antagonismos até então atribuídos à exacerbação ideológica da luta de classes tenderiam a desaparecer pelo papel “pacificador” que a democracia seria a chamada por toda a parte a desempenhar, foi uma ideia em que muitos chegaram a acreditar, mas que a própria realidade se encarregou de desmentir logo a seguir.
De facto, não somente aquilo que parecia certo se tornou duvidoso – como, por exemplo, a vitória na Guerra Fria, antes atribuída à América e que hoje parece cada vez mais justificar-se atribuí-la à China, que tendo estado dos dois lados, sempre com uma estratégia própria, é indiscutivelmente o Estado que mais vantagens consolidadas retirou do fim do confronto leste-oeste – como a apregoada democracia tida por factor decisivo no relacionamento interestatal está por tudo lado, embora de forma mais visível nos países desenvolvidos, a ser subrepticiamente substituída pelo poder dos mercados que ou escolhem eles próprios os governantes ou transformam os governantes eleitos em simples executantes dos seus interesses a ponto de essa representação já apresentar hoje as características típicas do mandato imperativo.  
Se já era difícil para os países mais frágeis integrados no círculo dos países desenvolvidos suportar a tirania do capital financeiro, a situação tornou-se ainda mais complicada para aqueles que no espaço europeu integraram a zona euro. Por todas as razões que já foram escalpelizadas à saciedade em escritos anteriores, o euro tal como tende a ser entendido pelas potências hegemónicas, na realidade pela Alemanha, com a colaboração defensiva da França e o interesse de mais duas ou três economias relativamente equilibradas, transformou-se para as economias periféricas num factor de pobreza a médio prazo – drástica redução dos salários nominais, aumento do desemprego, redução ou mesmo eliminação de múltiplas prestações sociais tudo redundando num considerável aumento do custo de vida acompanhado de uma considerável diminuição dos rendimentos – que tende a ser suportado no presente com a promessa de uma vaga prosperidade futura.
É porém óbvio que não mudando a zona euro a sua matriz, antes tendendo a agravá-la nos seus efeitos mais desequilibrantes, como se está vendo pelas novas imposições da Alemanha, aos países periféricos, inviabilizada que está qualquer solução alternativa construída na perspectiva da assumpção conjunta dos prejuízos gerados pela experiência que favoreceu uns e prejudicou outros, apenas restam duas possibilidades: ou manterem-se na zona euro até à sua rejeição em bloco pela explosão social dos múltiplos descontentamentos, sem perspectivas, que necessariamente vão ocorrer; ou prepararem-se para dizer adeus a esta Europa e tentarem reconstruir o seu futuro integrados no mundo moderno, voltando a valorizar aquilo que foi a vertente mais constante das suas respectivas histórias.
Ao PS, como principal partido impulsionador desta ligação umbilical à Europa, uma ruptura como a que se avizinha vai custar-lhe muito e terá necessariamente efeitos traumáticos, tanto mais graves quanto é certo haver no PS muita gente que não tem verdadeira consciência da colonização do partido pelo pensamento neoliberal ou mesmo por alguns princípios do neoconservadorismo, certamente por não haver na sua prática política uma posição agressiva na defesa daqueles princípios nem o partido, pela sua história, se poder considerar herdeiro de comportamentos de puro proselitismo como os que se encontram em outros sectores da sociedade portuguesa.
Já o PSD, que verdadeiramente não é nada, a não ser uma federação de múltiplos interesses construídos à volta do poder, e que está hoje no governo na defesa fanatizada de uma ideologia que, apesar de nunca lhe ter sido estranha, sempre perdeu relevância, na hora da verdade, para a irreprimível tentação de realizar negócios, tenderá a adaptar-se ao quer vier, com aquele ou outro nome, desde que possa manter a sua irresistível vocação para por via do poder aceder a vantagens que de outro modo não alcançaria. 
Mas, para finalizar, há também uma certa esquerda, cosmopolita, recém-convertida à democracia como valor absoluto – e sabe-se como em política é perigoso prosseguir o absoluto, mais ainda se for o Bem – igualmente influenciada por certos princípios iniciadores do neoconservadorismo, para a qual o abandono da Europa como ideia mítica a deixará verdadeiramente órfã de uma das ideias fundadoras da sua transmutação.