QUE SAÍDA?
A congruência da maior parte da gente que tem governado o país é, como se sabe, nula. Dizem hoje uma coisa, amanhã fazem outra; prometem com juras solenes cumprir um programa e antes que o eco das palavras se esbata já estão a fazer o contrário do que prometeram.
Isto a gente sabe. O que talvez muitos desconheçam é que estes comportamentos são potenciados e favorecidos pela democracia representativa tal como é praticada nos nossos dias.
Com o tempo a democracia representativa, nomeadamente a que resulta da eleição em listas partidárias fechadas, acabou consagrando o mandato incondicionado como princípio incontestável, deixando de haver durante a sua vigência qualquer possibilidade de controlo dos eleitos, salvo o que resulta da pressão da opinião pública, cada vez mais ferreamente condicionada e manipulada pelo poder, do establishment, que tudo faz para que a opinião pública tenda a coincidir com a opinião publicada, sendo esta altamente limitada e controlada pelos detentores dos órgãos de informação.
O mandato incondicionado supostamente fundado na legitimidade eleitoral permite ao eleito actuar com total liberdade, no contexto do cálculo político que ele próprio faz da sua actuação em função da próxima eleição. E como entre a prática dos actos de incumprimento das promessas e a nova eleição medeia um lapso de tempo relativamente longo é sempre possível no clima eleitoral típico das campanhas esbater essa questão e focar a atenção do eleitor apenas ou quase só nas promessas relativas ao novo mandato.
O que não significa que o eleitor esqueça completamente o que se passou antes. Não esquece, nomeadamente em tempos de crise, mas isso não impede que no novo mandato se repita exactamente o mesmo e assim sucessivamente. E quem se reveza no poder também não tem, por razões óbvias, nenhum interesse em alterar este estado de coisas.
A eleição uninominal, embora tenda a limitar a representação dos partidos minoritários, poderia alterar parcialmente as consequências mais gravosas da incondicionalidade do mandato, se não fosse dar-se o caso de a eleição ser hoje, em percentagem apreciável, determinada pelo dinheiro, principalmente se a principal fonte (visível) de financiamento eleitoral continuar a ser o partido, por ser ele que, em última instância, merece a confiança dos grandes financiadores. E estaríamos passado pouco tempo caídos na mesma situação, com inconvenientes colaterais (ausência, ou quase, de representação dos partidos minoritários) que a eleição em lista fechada de certo modo esbate.
Talvez seja bom recordar que duas das mais importantes questões da filosofia política ocidental são a conservação do poder e o controlo do poder. A primeira, largamente dominante durante séculos e que hoje renasceu com extraordinário vigor, interessa ao príncipe; a segunda, inconsiderada durante muito mais que um milénio, interessa ao povo. Não é aqui o lugar adequado para descrever a longa evolução que gradualmente foi permitindo ao povo passar de sujeito passivo do poder exercido pelo príncipe a interveniente activo no processo político e depois a titular, ele próprio, de um poder – soberano – cujo exercício também tinha (teoricamente) o direito de controlar.
Desde há cerca de duzentos anos foi-se aceitando a ideia - embora, no início, com plena consciência de todos os perigos que ela encerrava - que a “democracia representativa” era a forma de governo que melhor permitiria ao povo exercer o poder (através dos seus representantes eleitos) e simultaneamente controlá-lo (por via de um conjunto de mecanismos, no essencial, actuantes a posteriori, teoricamente destinados a inviabilizar o despotismo, dentre os quais assume particular importância a temporalidade dos mandatos).
Contrariamente ao que por vezes se ouve dizer, isto não significa que antes da consolidação da democracia representativa como forma de governo não tivesse havido outras tentativas, algumas relativamente bem conseguidas, de controlo do poder, nomeadamente por via dos chamados corpos intermédios, que na prática funcionavam como uma verdadeira divisão (horizontal) do poder, com a vantagem, relativamente à actual divisão (vertical) do poder, de esse poder moderador ser exercido por entidades pertencentes a diversos estratos sociais enquanto a actual separação de poderes não impede que todos os poderes estejam dominados ou hegemonizados pela mesma classe ou pelos mesmos interesses.
E é essa a razão pela qual os maiores obstáculos ao poder hegemónico continuarem a ser, ainda hoje, os tais corpos intermédios. Daí a luta feroz que o capitalismo trava actualmente tanto no plano político como no ideológico para desagregar essas forças de resistência que, apesar de bastantes debilitadas, continuam a ser as únicas que levantam dificuldades à sua insaciável voracidade.
Esta quase completa ausência de controlo do poder político saído dos actos eleitorais leva necessariamente à conclusão de que não há “aprofundamento” possível da democracia representativa. Ela tenderá a ser, nos tempos que correm, cada vez mais um “embuste participado” no qual os eleitores, por falta de alternativa, intervêm de boa-fé, assegurando a quem governa a legitimidade formal suficiente para deixar o poder constituído a coberto de qualquer substituição inorgânica.
Portanto, por “este lado” a coisa tem pouca saída. O “aprofundamento da democracia” pressupõe um poder político popular que controle, sem partilha, o poder económico e seja ideologicamente hegemónico, o que nunca acontecerá se ao inimigo – o capital - forem facultadas as armas de destruição da própria democracia. É essa hegemonia que é preciso conquistar. Sem ela nunca haverá verdadeira democracia.
A igualdade como princípio, isto é, como ponto de partida e objectivo de chegada, é indissociável do conceito de democracia. À medida que o princípio da igualdade foi sendo postergado e até tido, como é hoje o caso, por inimigo da democracia por, segundo o argumento mais corrente, causar graves danos à liberdade individual e à capacidade individual de “empreendedorismo” e à medida que foram sendo implementadas políticas que davam expressão prática àquelas ideias, a democracia foi perdendo terreno, a ponto de hoje se ter tornado, nomeadamente no Ocidente, numa caricatura assente numa encenação ritual na qual o povo participa como figurante, mas de cuja participação não tira quaisquer vantagens. As vantagens vão integralmente para o pequeno núcleo que controla o poder (núcleo político, económico, financeiro e também ideológico) e o exerce em benefício próprio, arcando o povo, a maioria esmagadora do povo, com as perdas correspondentes.
Nada pior para a sorte de milhões de pessoas em todo mundo do que ter aqueles que agora os governam ungidos por uma falsa concepção da legitimidade. De facto, nada pior para o futuro colectivo do que justificar a "barbárie" que assola o mundo ocidental com base em considerações de legitimidade quando essa legitimidade substantivamente não existe.
Talvez seja conveniente recordar que a democracia representativa não nasceu ungida desta legitimidade indiscutível que hoje lhe serve de capa protectora. A questão do mandato imperativo foi uma das mais apaixonantes discussões que acompanharam o seu nascimento. Como chamar representante a alguém que esteja desobrigado de cumprir o mandato? Como aceitar as consequências de actos praticados pelo representante fora do mandato? Que valor têm tais actos para o representado?
As respostas parecem óbvias e todavia o mandato imperativo não logrou impor-se. Hoje, a questão volta a ser actual. Porventura mais do que há duzentos anos. É que nunca como agora se assistiu a uma tão grave divergência o poder concedido e o poder exercido.
Como resolver? Uma coisa certa: se a democracia só puder sobreviver como representativa, então ela vai ter que ser substituída por outra forma de governo que assegure uma real proximidade entre os governantes e os reais interesses da maioria esmagadora dos governados…
Não adianta argumentar com a ideia de que pior do que a democracia representativa é a tendência hoje corrente de governantes de outro país ou de forças fácticas poderosas imporem aos governantes eleitos as medidas da governação. Apesar gravidade das situações que se conhecem de que é exemplo mais elucidativo a recente tentativa de Berlim impor um gauleiter a Atenas, tudo isso faz parte da mesma questão. Autonomizar esta parte do problema só serve para assegurar uma sobrevida à democracia representativa tal como existe.