O QUE OS MOVE
Não é nada fácil falar sobre este tema. Tenho amigos ex-PCP, vivos e mortos. Lidei de perto com muitos deles, quando ainda não eram PC, enquanto foram PC e depois de terem deixado de o ser. Outros, somente os conheci como PC e, depois, como ex-PC.
A gente a que estive mais ligado deixou o PCP, por vontade própria ou por imposição do partido, nos idos da perestroika, já muito perto do final da década de oitenta. Alguns deles eram amigos de longa data, com quem mantive relações pessoais e políticas muito estreitas, tanto antes como depois do 25 de Abril. Outros, só os vim a conhecer melhor quando, com Gorbachov, a União Soviética ia caminhando para o seu fim.
Quando, nesta época, uma onda de contestação interna “sacudiu” o PCP, alguns acalentaram a ilusão da formação de um novo partido. Um partido capaz de congregar amplos sectores da esquerda que não se reviam nem no PC, nem no PS. A produção teórica, porém, era quase nula. Havia uma consciência clara do que não se queria, mas era muito difuso e, eventualmente, pouco consensual, o projecto que se pretendia pôr em prática.
Alguns, como Zita Seabra e Veiga de Oliveira, estavam fundamentalmente empenhados em combater o PCP. Esse me parecia ser o seu único objectivo. Outros iam tacteando entre a defesa dos mesmos princípios através de diferentes meios operacionais e um agnosticismo próprio de quem sentia necessidade de um intervalo para fazer contas com a vida e consigo próprio. Outros ainda, veio-se a saber mais tarde, já tinham uma ideia muito clara do que pretendiam fazer. Apenas aguardavam a chegada do tempo próprio para a pôr em prática.
Vital Moreira foi o único que ensaiou, em textos aliás brilhantes, um começo de teorização sobre o que fazer. Textos que, hoje, provavelmente repudia. Outros escreveram memórias, relatando os factos com o mesmo espírito com que os viveram. Com seriedade e rigor, como Raimundo Narciso.
Breve no entanto percebi que o grande objectivo dos mais influentes, e também dos mais cínicos, era continuar a fazer política na crista da onda. Cavaco, por intermédio de Durão Barroso, tentou a aproximação a alguns deles. Que não chegou a concretizar-se, porque, entretanto, Guterres, a quem provavelmente terão feito chegar o interesse de Cavaco, negociou com eles um “protocolo” que lhes abria a porta a uma entrada em lugares elegíveis ou quase elegíveis nas listas do PS para o parlamento ou, noutros casos, para as autarquias.
Os grande impulsionador deste movimento foi Pina Moura, acompanhado pelos seus amigos mais próximos, e sempre muito acolitado, embora com pretensões de independência, por Judas.
De fora ficaram todos aqueles que, não sendo ex-PC e alguns (poucos) ex-PC, jamais aceitariam um acordo com o PS a troco de lugares, com total desprezo por qualquer compromisso programático.
Estava então muito claro o que pretendiam estes novos “independentes”do PS, mesmo aqueles que, tendo sucumbido à vontade dos mais fortes, acabaram por aceitar aquilo que sempre juraram repudiar. Queriam obter todas as vantagens que a política, pessoalmente, lhes pudesse trazer. Para trás, lá muito para trás, tinham ficado velhas ilusões e utopias, a que definitivamente punham cobro numa idade em que a ambição falava mais forte.
É certo que nem todos podem ser medidos pelo mesmo diapasão. Há quem tenha partido para esta “aliança” com o PS com grandes ambições pessoais e políticas, nomeadamente os que estavam convencidos de que com a sua grande capacidade de militância e métodos de trabalho trazidos do PCP rapidamente alcançariam uma posição de relevo no PS. Outros, mais modestos e, porventura, mais realistas, tentaram criar localmente a sua própria base de apoio com vista a uma menor dependência futura das cúpulas partidárias. Outros ainda, ingenuamente, acreditaram que o trabalho honesto e persistente os guindaria a um lugar de destaque e lhes asseguraria o respeito dos militantes.
O futuro, como em tudo na vida, se encarregou de clarificar as coisas. Os ingénuos, depois de aproveitado o efeito do corte com o PCP, foram sendo gradualmente dispensados e até, em alguns casos, humilhados. Os que foram capazes de construir a sua pequena base de apoio autárquica ou legislativa foram resistindo às oscilações das cúpulas e, com o tempo, acabaram por se integrar completamente no espírito do PS, nada os distinguindo hoje dos tradicionais militantes. Os mais ambiciosos, que acalentavam grandes esperanças, depois de anos de luta e de intriga, acabaram concluindo que, sem soldados, não se pode ser general. Daí que tenham partido para outros tipos de aliança. Tendo-se aproveitado dos lugares que chegaram a desempenhar, criaram fortes ligações à alta finança ou, quando o palco de actuação era mais restrito, como acontecia nas autarquias, ao capital e interesses imobiliários.
Por tudo isto não me espanta nada a entrevista de Pina Moura ao Expresso, como não me espantaria que outros, próximos dele, dissessem o mesmo, se, entretanto, a “roda da fortuna” os não tivesse relegado para fora da política. Ontem, derrotado o cavaquismo, a rivalidade com Jorge Coelho fazia todo o sentido. Hoje, na previsibilidade de não haver vencedores claros, o bloco central é o que melhor serve a sua “estratégia”. No fundo, num e noutro caso, são as “preocupações de governabilidade” que imperam.