ASSIM, NÃO!
É a pergunta que hoje toda a gente faz desta ou de outra maneira mais simpática (“Como assegurar o futuro do euro”? Que mais não é que: “Como salvar o euro?”).
Exactamente por o euro ter constituído um grande logro para todos – inclusive para a Alemanha que dele tem tirado a maior vantagem -, é que hoje não é preciso ter especiais conhecimentos de economia, nem de moeda, para se perceber que uma moeda comum a vários Estados independentes não pode existir nas condições em que o euro foi criado, se desenvolveu e hoje vive.
Mais cedo ou mais tarde – e é isso que já está a acontecer com vários Estados por muito que se tente escondê-lo – verificar-se-á que uma moeda comum criada num mercado que na prática, sob vários aspectos (em teoria em todos), funciona como um mercado interno, só pode existir se atender às particularidades, especificidades e níveis de desenvolvimento das economias dos respectivos Estados e dispuser dos meios e mecanismos adequados para esse efeito.
Independentemente de qualquer vontade perversa, mas antes como consequência natural do funcionamento da actividade económica, se por força da hegemonia económica de um deles, ou de mais que um, a moeda servir apenas a política desse ou desses Estados – isto é, se atender apenas à específica natureza das economias hegemónicas – os outros Estados não têm qualquer hipótese de continuar nesse conjunto, arrastando a sua saída, e os problemas que a ela inevitavelmente estarão ligados, o fim da moeda única.
Começando pelo princípio. A moeda única foi um logro, porque quem a impôs (a França) na base de uma decisão puramente política acreditou que essa era a decisão económica e politicamente correcta para compensar a inevitável reunificação alemã que a Rússia já não tinha força para impedir, que a América acabou por aceitar quando teve a garantia de que a Alemanha não abandonaria a NATO e que a Inglaterra verdadeiramente nunca quis. A França estrebuchou, Mitterrand pôs em prática todo o seu maquiavelismo político e até alguma ostensiva inabilidade quando foi a Berlim Leste tentar adiar o que já estava consumado, e acabou por fazer com Kohl o “negócio da moeda única” supondo que assim amarrava a Alemanha e a sua economia à Europa unida.
E até é verdade que, nos anos economicamente duros da “assimilação” da reunificação, a França tirou mais partido da moeda única do que a Alemanha, na medida em que viu consideravelmente aumentadas as suas exportações além-Reno.
O que ninguém na altura ninguém percebeu foram as consequências do que se estava a criar. Acreditou-se que, com um banco central feito à imagem do Bundesbank e duas ou três regras vagamente restritivas relativas ao défice e à dívida, se assegurava a perenidade de uma moeda que “iria ajudar a unir” decisivamente a Europa. Como se a economia de um país em sistema capitalista fosse algo que se pudesse reconduzir ao papel económico do Estado que, aliás, por força das correntes ideológicas vigentes, não deixava de se reduzir drasticamente a cada dia que passava. Mas mesmo que não fosse o caso. Passou a haver um “novo mundo” para os bancos e as empresas que nenhum Estado podia controlar.
Do outro lado do Atlântico, renomados economistas americanos, com óbvia grande experiência do que é uma moeda única num enorme espaço económico constituído por estados federados, sempre puseram muitas dúvidas ao êxito de tal empresa. Mas como tudo estava aparentemente a correr bem e o euro, a partir de determinada altura, até passou, em cotação, a superar o dólar, ninguém lhes ligou por cá.
A euforia reinava por todo o lado. Estados que sempre tiveram balanças de pagamentos deficitárias e que conheciam o penoso caminho da busca de divisas para fazer face aos défices das suas balanças comerciais diziam e ouviam dizer que agora esse problema “não se punha” porque temos todos a mesma moeda. Ou seja, davam a entender que o problema se resolveria uma pouco à semelhança do que até então se resolvia o endividamento interno. “Um pouco à semelhança” e não do mesmo modo, porque agora não poderiam criar moeda, já que havia um banco central, que não dependia exclusivamente de nenhum deles, e tinha como principal missão o controlo dos preços, ou seja, da inflação. Mas, à parte isso, tudo igual.
E aqueles outros Estados que viviam permanentemente angustiados com a inflação, tinham doravante a garantia de que com um banco central à alemã esse flagelo deixaria de existir.
Enfim, apenas vantagens!
O que aconteceu silenciosamente ao longo dos anos conhece-se muito bem agora pelo barulho que está a fazer. Situação que a crise financeira de 2008 apenas pôs a nu, e em certa medida agravou, mas que já existia.
A economia mais competitiva e as economias que mais de perto a acompanharam foram-se impondo no grande espaço económico comum expulsando para o caixote do lixo da história os aparelhos produtivos dos Estados que não tinham (por desvantagem competitiva) capacidade para concorrer com elas num mercado livre.
Por outro lado, os Estados, as empresas e os cidadãos (ou as famílias, como os economistas gostam de dizer) foram-se endividando por razões aparentemente diferentes mas no fundo reconduzíveis ao mesmo denominador comum: crédito barato e necessidade de rentabilidade do capital.
Os Estados endividaram-se para cumprir as funções que são as suas, embora nem sempre pelas melhores razões. Alguns, que sempre foram deficitários, agravaram os seus défices, porque, como o crédito era barato e o “problema das divisas estava resolvido”, era altura de fazer obra e servir clientelas que, se não perpetuavam no poder os governos que as decidiam, pelo menos lhes asseguravam uma longa duração.
Outros, que até nem eram por aí além deficitários, viram-se por força da crise “obrigados” a assumir despesas (sociais, de estímulo económico e de resgate) que antes não suportavam.
Por seu turno, os bancos endividam-se para conceder crédito às empresas e às famílias.
As empresas contraíram dívidas para financiar actividades económicas viradas para sectores onde a concorrência externa não se fazia sentir, mas que simultaneamente não geravam recursos provenientes de rendimentos externos. Ou seja: a dívida contraída fora do país , por quem emprestou às empresas ou pelas próprias empresas, agravava-se tanto mais quanto mais estas actividades se desenvolviam.
Empurradas pelo crédito barato, as famílias gastavam acima dos seus previsíveis rendimentos (cada vez mais falíveis dada a crescente precariedade do emprego) para comprar produtos produzidos por aquelas empresas, nomeadamente casas, mas também – e em grande escala – para consumo.
O dinheiro, por seu turno, era emprestado por quem tinha excesso de liquidez proveniente dos excedentes comerciais e era barato, porque, como existia em quantidades excedentárias relativamente às necessidades das economias que o geravam, tornavam-no num bem pouco escasso.
Esta foi a “ratoeira” que nem aqueles que dela mais beneficiaram à época da criação da moeda única sequer suspeitaram – o que também nos dá uma ideia muito correcta do que é a “ciência” económica.
E hoje? Hoje é o que se sabe: os que emprestaram o dinheiro sem qualquer racionalidade económica querem recebê-lo por inteiro e depressa, tanto mais que muitos ou quase todos os bancos que o fizeram estão numa situação económica muito difícil. Ou seja, precisam de muitos milhares de milhões para se recapitalizarem. E então acham que a via mais segura para atingir esse objectivo – agora que o dinheiro é escasso – é através de draconianas medidas de austeridade.
As medidas draconianas que os Governos dos Estados credores (entenda-se: bancos alemães, alguns franceses e mais uns poucos) impuseram aos devedores traduzem-se como toda a gente sabe em políticas altamente restritivas, que agravam o desemprego, geram a recessão e não impedem, antes agravam, a constante subida dos juros.
Como estas políticas são objectivamente contraproducentes para combater a crise e subjectivamente incomportáveis pela generalidade dos agentes económicos, a consequência previsível da sua reiteração seria a bancarrota dos Estados endividados, a falências das empresas em geral e dos bancos em particular, e o lançamento no desemprego e na miséria de milhões de pessoas.
E é por isso que, com estas políticas, o euro não tem futuro. Nenhum futuro, como muito em breve se constatará.