A IDEOLOGIA SUBJACENTE À SUA COMPOSIÇÃO E ESTRUTURAÇÃO
Há duas ou três notas relativas à composição e estruturação do novo governo que interessa sublinhar.
A primeira é que o CDS acabou por ter uma influência muito menor do que se previa tanto na formulação da orgânica e na distribuição das pastas como na escolha dos membros do governo. De facto, para além da pasta entregue a Portas, já esperada mas com a surpresa de não ser a segunda figura do Executivo, o CDS teve de se contentar com a “lavoura” e com a solidariedade social. Ou seja, ficou com as pastas correspondentes aos seus “nichos eleitorais” sem hipótese de, pela via do Governo, estender a sua influência a outras áreas, como obviamente queria, nomeadamente na economia e na administração interna. Por outro lado, se quanto aos ministros do aparelho do PSD (Relvas, Paula Cruz, Aguiar Branco e Macedo) o CDS sempre teria pouco a dizer, já quanto aos ditos “independentes” se ficou a perceber, depois de conhecidos os seus nomes e seu radicalismo ideológico, que eles são claramente uma escolha de Passos Coelho. Bem tentou Portas até ao fim, mas como agora se vê sem qualquer êxito, influenciar a escolha de ministros mais próximos de Cavaco, quer para atenuar o tal fundamentalismo liberal - não necessariamente tanto por uma marcada discordância de fundo como por temer uma rejeição generalizada que possa arrastar o próprio PS e tornar muito difícil ou até inviável a acção do governo - quer para ter em Belém um ponto de apoio que o compensasse da sua menor força no executivo. Passos Coelho ao entregar um terço do Executivo aos radicais neoliberais, sob o rótulo de “independentes”, acabou por colocar em postos chave do executivo pessoas que lhe dão garantias de imprimir ao governo a orientação que sempre defendeu sem ter de sofrer à partida o desgaste que escolhas partidárias de idêntica matriz necessariamente lhe causariam.
A segunda nota, que decorre da primeira, tem a ver com a entrega de pastas chave – Finanças, Economia (Trabalho, Transportes e Obras Públicas), Saúde e Educação – a fundamentalistas neoliberais. “O economista que mais admiro é Milton Friedman”, diz Gaspar. E não precisa de dizer mais nada, já que desta confessada paixão decorre todo um programa político. Nem é preciso sequer ter conhecimento do papel que desempenhou como consultor, nem das parcerias intelectuais em que participou com conhecidos “falcões” do neoliberalismo, para imediatamente se perceber que se vai ter nas Finanças um ministro turvado pela ideologia com muita dificuldade em compreender o que se está a passar e que, consequentemente, vai pôr em prática uma política que arrastará ainda mais o país para um beco sem saída semelhante àquele em que a Grécia está metida. Pior do que tudo isso, é a sua simpatia intelectual pelos que no estrangeiro, contra os interesses dos países periféricos, defendem essas mesmas políticas. E fica tudo dito sobre o que se vai ter nas Finanças
O mesmo se diga do ministro da Economia que tem como principal programa de acção política o ataque ao “trabalho” como factor de produção, quer liberalizando os despedimentos e eliminando os direitos adquiridos quer reduzindo directa ou indirectamente os custos salariais, e a transferência para o sector privado – muito provavelmente para aquele que ostensivamente mais apoiou Passos Coelho – do património do Estado, de natureza empresarial ou outra.
Na Saúde, a primeira pergunta que se impõe é: Quanto vai ganhar Paulo Macedo? Pois se nunca se conheceu o fundamento jurídico da sua remuneração enquanto esteve no tesouro e se sabe que deixou o lugar quando cessou a possibilidade de continuar a ser remunerado nos mesmos termos em que era no governo PSD/CDS, a questão tem todo o fundamento e exige um esclarecimento público. Claro que com tão altos ordenados, alguns de legalidade muito duvidosa, não admira que o novo ministro entenda que a “crise é a maior bênção”que pode acontecer a países como Portugal. Fica a expectativa do que fará na Saúde: se vai cortar no supérfluo e no desperdício ou se vai entregar o que é negócio aos privados. E a que tipo de “lobbies” vai ele fazer frente no ministério…Dentro de dias se saberá.
De Crato, para além das charadas e dos problemas matemáticos com que costuma preencher as últimas páginas das revistas dos jornais de fim-de-semana, sabe-se pouco, pelo menos, fora das áreas em que ele se situa. A ideia de implodir o Ministério da Educação tanto pode ser boa como má. Depende do que se pretende fazer depois da implosão, mas quando se ouve falar num papel essencialmente regulador fica-se imediatamente de “pé atrás”.
A terceira nota tem a ver com a escolha dos ministros do aparelho do PSD. Relvas à parte, parece ter havido a clara preocupação de entregar, com objectivos diferentes, ao aparelho do partido a gestão de três ministérios institucionais, ou seja, daquilo a que no dizer dos neoliberais se deve confinar a função do Estado – Defesa, Justiça e Segurança Interna (além obviamente das relações externas, no caso entregue ao CDS).
Enquanto para a Defesa houve a preocupação de escolher um ministro fraco, com baixa capacidade argumentativa e também com pouco dinheiro, para assim se assumir a pouca relevância que o sector vai ter na próxima legislatura em consequência da situação económica do país, já que no respeita à Justiça e à Administração Interna, ambas sob o “fogo cerrado” da opinião pública, houve o claro propósito de as entregar a duas personalidades marcantes, sobre as quais recai o pesado encargo de empreender amplas reformas em sectores onde os interesses corporativos (embora com pouca ou nenhuma ligação a interesses empresariais) são muito fortes. Enquanto Macedo, além das reformas, vai tentar “centralizar” e “orientar” toda a informação relevante, principalmente a confidencial, no interesse do partido e do governo (e esta é mais uma pesada derrota de Portas), Paula Teixeira da Cruz, a única personalidade que à partida beneficia do chamado “préjugé favorable” dos meios políticos relevantes, jogará parte do seu futuro político na difícil gestão da pasta da Justiça. Ou consegue, com êxito, dar a volta à situação caótica que se vive no sector ou tudo fica na mesma ou pior, e então a sua carreira política acaba antes de verdadeiramente ter começado.
Mais dois pequenos apontamentos.
Conhecida a composição e a orgânica do Governo, percebe-se agora melhor – aliás, percebe-se perfeitamente – por que razão Portas reiterou a rejeição a Nobre para Presidente da AR. Mas a serem verdadeiras certas informações recentemente veiculadas sobre mais algumas das “ligações” de Nobre, não se pode dizer que as “cartas estejam jogadas”. Veremos o que vai dar o voto secreto…
Por último, tem de reconhecer-se que a composição e a orgânica do Governo revelam uma independência e uma inteligência bem superior à que se supunha pudessem existir, devendo os que apostavam em outras soluções mais óbvias e menos elaboradas fazer a respectiva autocrítica, a começar por nós próprios. Independência relativamente àqueles que dentro da mesma área concorriam com Passos Coelho na “chefia” do Governo e inteligência no favorecimento da agenda neoliberal numa perspectiva radical a ponto de a própria estruturação e composição do governo terem sido pensadas numa base marcadamente ideológica de modo a reflectir a ideia de que à “sociedade civil” ficam entregues as pastas cujas matérias para ela devem transitar e aos aparelhos partidários aquilo a que o neoliberalismo chama as “funções tradicionais” do Estado, apenas com uma leve excepção - a da “lavoura” que estava para ser integrada na Economia - ditada pelo apego eleitoral de Portas ao tema e também pela premente necessidade de caminhar no sentido da suficiência alimentar ou de pelo menos se dar a ideia de que se está a caminhar nesse sentido.
Em conclusão: a orgânica e composição do governo obedecem a uma ideia bem estruturada que não deixa qualquer espécie de dúvidas quanto ao que vai ser a sua acção política.