A DÍVIDA PRIVADA
Toda a gente fala na dívida pública e no défice orçamental como se esses fossem os grandes problemas da actualidade. Certamente que são problemas graves, mas são, antes de mais, indícios de problemas muito mais graves existentes nas sociedades economicamente abertas dos nossos tempos.
Até há bem pouco tempo a maior parte dos problemas económico-financeiros podia ser abordada e tratada numa perspectiva quase exclusivamente nacional. Cada país detinha soberania sobre a moeda e o crédito, sobre a taxa de juro, bem como sobre as opções fundamentais em matéria de comércio externo. As políticas económicas e financeiras nacionais tendiam a produzir resultados sobre a base nacional que lhes servia de referência e de contexto.
Hoje, para alguns países, esta situação alterou-se radicalmente. Deixaram de ter qualquer intervenção soberana sobre a moeda e o crédito, deixaram de controlar a taxa de juro e as opções fundamentais em matéria de comércio externo deixaram de poder fazer-se administrativamente, tendo o papel do Estado ficado circunscrito à tentativa de criação de um ambiente favorável à obtenção dos objectivos pretendidos. É o que se passa com os países da União Europeia integrantes da zona euro, embora parte do contexto atrás descrito seja comum a todos – os que a integram e os que não a integram.
Nem todos os países, porém, se encontram na mesma situação. Os grandes países emergentes e os Estados Unidos continuam a manter soberania sobre a moeda e o crédito, determinam a taxa de juro em função da situação económico-financeira do país e dos resultados que visam alcançar e mantém, embora não completamente, um grande domínio sobre as opções nacionais em matéria de comércio externo.
Se a União Europeia funcionasse como um verdadeiro Estado federal, com os vínculos próprios que caracterizam este tipo de Estado, uma boa parte dos problemas resultantes da actual estrutura orgânica estaria atenuada, pois seria possível, a partir de uma ideia de pertença a um conjunto nacional, pôr em prática políticas tendencialmente destinadas a favorecer ou a proteger os diversos elementos do conjunto.
Esta possibilidade é, como os factos mais recentes têm demonstrado, uma verdadeira miragem que só as dificuldades de quem está atravessando um deserto sem fim julga poder tornar-se numa realidade. A Europa sempre foi um continente muito tribalizado. Não são apenas os Balcãs que se mantêm tribalizados: é toda a Europa sem excepção. O intervalo de quase sete décadas sem guerra entre os principais Estados europeus em nada diminuiu este sentimento. Portanto, quem sonha com “mais Europa” no sentido de uma Europa mais próxima da construção de um Estado está completamente enganado. Poderá haver, em função da co-relação de forças existente no seu seio, mais Europa desta. Mas não de outra.
E esta Europa que de início muitos acreditaram poder contribuir decisivamente para um tendencial equilíbrio estes os Estados que a integram revelou-se, com a passagem dos anos, numa fonte de desequilíbrios estruturais permanentes e cada vez mais acentuados.
O que actualmente se passa, mais do que uma consequência da crise financeira, é o resultado de um desequilíbrio que a crise financeira dramaticamente evidenciou.
De facto, a existência de uma moeda comum em economias muito desiguais, tendo como únicas regras para a sua adopção os critérios do “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, todos eles circunscritos a limites alcançáveis à custa das respectivas políticas nacionais, sem quaisquer outras medidas ou políticas comuns tendentes a esbater as desigualdades de partida, leva a que as economias menos competitivas vão sucessivamente abandonando as áreas onde não podem competir para se circunscreverem às áreas onde, pela própria natureza das coisas, as vantagens comparativas dos países mais competitivos não se fazem sentir.
Como tais actividades em nada contribuem para esbater as diferenças de competitividade, antes agravam a relação de troca entre as respectivas economias, a diferença de competitividade acaba por acarretar grandes desequilíbrios, desde logo entre o que se importa e o que se exporta, sendo este défice financiado com empréstimos externos, mas também entre o que se gasta e o que se ganha, défice igualmente financiado com empréstimos bancários, em última análise externos, indispensáveis para manter um nível de procura interna que, no mínimo, não faça descer a economia.
Explicando melhor: o desequilíbrio entre as economias mais competitivas e as menos competitivas dentro do mesmo espaço económico leva a que haja naquelas um excesso de liquidez que tende a ser aplicado nas economias menos competitivas, muito pouco em investimentos directos, e quase tudo em empréstimos, muitos deles sem retorno ou retorno meramente indirecto, o que torna estas economias altamente endividadas. Portanto, elas endividam-se porque compram às economias mais competitivas muito mais do que aquilo que lhes vendem e endividam-se também porque são aquelas economias que acabam por financiar uma boa parte da procura interna das economias menos competitivas - principalmente, como se tem visto, em obras públicas e no imobiliário.
É por estas razões que, para além do défice público e da respectiva dívida, existe uma gigantesca dívida privada, fundamentalmente contraída pelos bancos, que pode ocasionar as mais graves consequências.
Para se fazer uma ideia: a dívida privada espanhola é de cerca de 240% do PIB. Face à situação actualmente existente no país os bancos espanhóis (tal como os portugueses) estão em grandes dificuldades para se refinanciarem no mercado interbancário (aqueles que antes emprestavam estão com medo de o continuar a fazer, porque temem a falência dos devedores). E como não encontram os financiamentos de que necessitam naquele mercado têm de se socorrer do Banco Central Europeu, que, nesta crise, tem sido um verdadeiro “bombeiro” ao serviço do capital financeiro.
Durante o ano passado os empréstimos contraídos pelos bancos espanhóis no BCE estavam em linha com o peso da economia espanhola no PIB europeu (9%), mas este ano, até Maio, os empréstimos contraídos junto deste Banco (85 mil milhões de euros) já representam quase o dobro do peso da economia espanhola no PIB europeu. Ou seja, os créditos concedidos aos bancos espanhóis pelo BCE, no conjunto dos empréstimos concedidos aos países da zona euro, já representam 16,5%.
É claro que os economistas tendem a responsabilizar os governos por esta situação. A questão é, porém, mais complexa. Certamente que os governos podem ter uma palavra nas economias abertas. Mas é uma pequena palavra. Modernamente quem age de forma determinante é o capital financeiro. Verdadeiramente é ele que escolhe as áreas onde se investe e onde se actua. E como já ficou dito os bancos não vão meter o dinheiro em sectores condenados à partida ou com pouca viabilidade. Vão privilegiar os sectores considerados seguros, qualquer que seja a prazo o resultado dessa política para a economia nacional.
O caso da Espanha (e em menor medida o de Portugal) é paradigmático. O sector da construção civil em Espanha, nomeadamente o imobiliário, atingiu proporções nunca antes vistas. Nestes últimos quinze anos gastou-se mais cimento em Espanha do que na Alemanha, na França e na Inglaterra juntos.
O resultado está à vista: criou-se uma borbulha especulativa no sector imobiliário, insuflada durante mais de uma década, as casas foram sendo vendidas a preços cada vez mais altos com juros cada vez mais baixos; as compras eram feitas a crédito, os bancos foram-se endividando cada vez mais para financiarem o sector, os altos rendimentos gerados pela construção civil inflacionaram os salários de toda a economia, aparentemente sustentados pelo crescimento, mas na hora em que a crise rebentou e os devedores deixaram de pagar, os bancos, tendo ficado com dezenas de milhares de casas que ninguém queria comprar, depararam-se com um problema de liquidez para fazer face aos seus compromissos. E tiveram que continuar a pedir dinheiro emprestado, agora já não para financiar a economia, mas para pagar as suas próprias dívidas, as quais iam por esta via aumentando.
E aquilo que parecia ser uma grande prosperidade tornou-se num grande pesadelo. A falta de competitividade que levou os agentes económicos a privilegiarem os sectores onde ela menos se fazia sentir, agravou-se ainda mais em consequência dessas mesmas opções.
(Agora é fácil falar (embora continue a ser muito difícil encontrar uma solução aceitável), mas na altura em que o fenómeno estava ocorrendo ninguém alertou para as suas consequências. Para quem tenha memória fresca – e pouca gente a tem em política - lembrar-se-á que Cavaco Silva quando era PM dizia que a “construção civil é uma roda que faz rodar muita coisa”).
Se a este panorama acrescentarmos a relação que se tem vindo a estabelecer-se no quadro da globalização entre os países desenvolvidos e os países emergentes breve se concluirá que os desequilíbrios ainda tendem a ser maiores.
Mas tudo isto demonstra também os limites de um sistema que, deixado á solta, manifesta toda a sua incorrigível irracionalidade. Daí que as medidas que se anunciam, todas elas tendentes a deixar o sistema ainda mais à solta, não resolvam qualquer problema. Assentes na sobreexploração do trabalho, elas tendem a tomar como paradigma o capitalismo da primeira revolução industrial numa época histórica que já nada tem a ver com aquele paradigma. O objectivo é criar a qualquer preço as condições que possam fazer crescer a economia e pagar as dívidas. Mas este caminho está condenado ao insucesso, como já se viu e como o futuro igualmente confirmará.
A verdade é que a ofensiva está em curso e a questão que se põe é saber quando, onde e como se vai desencadear a resistência de quem já se desabituou de lutar.