AS PARTICULARIDADES DA JUSTIÇA PORTUGUESA
Só mesmo aqueles que estavam dispostos a colocar o mais rapidamente possível uma pedra sobre o caso Freeport podem ter acreditado que o assunto se encerrou com o recente despacho que ordenou a prossecução do processo relativamente a dois dos arguidos, mediaticamente irrelevantes, e o seu arquivamento em relação aos demais arguidos e suspeitos.
O que o caso Freeport tem de especial não é tanto a sua conclusão, mas o modo como a ela se chegou. De facto, o resultado não é em si muito diferente do que teria ocorrido noutro qualquer país. O que o torna tão mediático são, como sempre, as “particularidades” portuguesas da investigação judicial…
Realmente, é preciso não acalentar grandes ilusões quanto à possibilidade de altos responsáveis políticos, no exercício de funções, serem processados com base em factos semelhantes àqueles que se suspeitava terem ocorrido no licenciamento do Freeport. Essa dificuldade não é apenas portuguesa. É comum a todos os regimes. As democracias é que na divulgação ideológica das suas vantagens fizeram muita gente acreditar que nelas vigorava em toda a linha aquilo a que vulgarmente se chama o Estado de Direito, assente no pressuposto de que a lei é igual para todos, que a todos obriga e que todos são igualmente responsáveis perante ela.
É óbvio que isto é uma falsidade. Deixando de parte a complexa questão de saber quem é o soberano, não restam dúvidas de que quem exerce poderes soberanos se não encontra na mesma situação de quem está sujeito ao exercício desses poderes.
Quem exerce poderes soberanos pode mudar a lei e até pode sujeitar as condutas passadas ao regime de leis que não se encontravam em vigor à data da ocorrência dos factos, com excepção de alguns raros casos. E também por vezes acontece que a actuação contrária a uma lei em vigor, por parte de quem exerce poderes soberanos, não constitui uma violação… mas uma modificação, contanto que esse comportamento transgressor/modificativo seja imputável ao exercício daqueles poderes.
Já por várias vezes neste blogue se deixou insinuado que o Poder olha o Direito de cima para baixo, enquanto o povo está obrigado a encará-lo de baixo para cima. As relações entre o Direito e o Poder são filosoficamente muito complexas e só por pura hipocrisia ou falsificação ideológica se pode fazer de conta que o Poder já está hoje no mesmo nível dos destinatários das normas e pode ser completamente regulado pelo Direito. Não está. Pelo contrário, é o poder que frequentemente “regula” o direito e não o inverso.
Normalmente, custa muito analisar esta questão despojada dos preconceitos valorativos que, em regra, a rodeiam. Fazê-lo, porém, não significa ter uma visão puramente cínica dos fenómenos sociais do Poder na sua relação com o Direito, nem, muito menos, encará-los numa perspectiva puramente amoral, mas antes contribuir para o seu gradual (mas ainda muito distante) aperfeiçoamento mediante uma análise fria e puramente factual do que realmente se passa
É claro que, em rigor, o caso Freeport não tem nada a ver com esta problemática, salvo o facto de, para a comunicação social - e também para o processo – alguns dos suspeitos exercerem poderes soberanos. E então aí é que entra a confusão: às “situações pessoais” de quem exerce o Poder acaba por ser aplicado o mesmo "regime" das “situações institucionais” ocorridas no exercício daqueles poderes.
Isto pode acontecer por cobardia política, por obstrução da justiça por parte de quem tem por missão contribuir para a sua aplicação ou até por impotência jurídico-política fáctica dos investigadores. Mas acontece. E apesar de tanto um caso (as tais situações pessoais) como outro (as institucionais) estarem teoricamente subordinados ao império da lei, raramente a lei se lhes aplica. De facto, a lei se lhes não aplica, salvo em casos muito contados que a história regista, quase sempre depois de perdido o poder.
Portanto, um longo e muito difícil caminho tem que ser percorrido até que a prática se comece a aproximar daqueles lindos princípios.
Regressando ao caso Freeport como paradigma, pode ainda dizer-se que as coisas poderiam ter tido um percurso diferente e eventualmente um resultado diferente se um poder com legitimidade idêntica ou superior à do poder investigado tivesse tido a seu cargo a condução do processo para efeitos imediatos de natureza exclusivamente política, sem prejuízo de depois se poderem seguir outros, se fosse o caso. Mas isso entre nós não acontece ou quando se pretende fazer crer que acontece algo de parecido o que realmente acontece não passa de uma caricatura daquilo que, noutras circunstâncias, poderia acontecer.
Se é verdade que as coisas se passam de forma substancialmente idêntica em todo o lado, há todavia particularidades no modo português de agir, em sede de investigação criminal, que fazem com que as coisas por cá nos pareçam diferentes do que teriam sido lá fora, se lá tivessem ocorrido. É o modo “atamancado” e com total falta de jeito com que estas questões são entre nós resolvidas que nos faz erradamente supor que estas coisas só se passam em Portugal. O Freeport não passa de um triste exemplo disso mesmo.
Senão vejamos: os magistrados encarregados da condução do processo tiveram todo o tempo do mundo para ouvir José Sócrates, Silva Pereira e quem mais quisessem, mas apenas se lembraram de o fazer depois de a hierarquia lhes ter marcado um prazo limite para a conclusão do processo, sem esquecer que prazos semelhantes já tinham antes sido desrespeitados ou prorrogados várias vezes. Mesmo tendo em conta o facto de os magistrados que profeririam o famoso despacho só terem tomado conta da investigação há pouco mais de dois anos, teria havido tempo mais do que suficiente para ouvir as personalidades referidas no despacho e fazer-lhes as perguntas que nele se formulam.
Por outro lado, a hierarquia do MP, que teve prévio conhecimento do despacho de arquivamento relativamente a certos arguidos e suspeitos, e que com ele terá concordado, tendo podido, antes de assegurada a sua eficácia, formular todas as objecções julgadas convenientes, só depois de aquele ter sido tornado público veio publicamente criticá-lo em termos que apenas desprestigiam quem os usa.
A ideia com que se fica, depois de toda esta trapalhada e de outras conexas, é a de quem tinha o processo a seu cargo parecia interessado em manter na dúvida e na incerteza pelo máximo tempo possível as questões mediaticamente mais candentes que dele resultavam. E da actuação da hierarquia fica-se com a ideia de que o seu interesse, por deformação profissional, ignorância política e “respeito pelo Poder”, era ver-se juridicamente livre da possibilidade de certas pessoas serem judicialmente perseguidas, independentemente de as suspeitas que sobre elas impendem se manterem, aceitando qualquer formulação do despacho de arquivamento desde que ela tivesse por efeito a consecução daquele objectivo.
Este modo “atamancado” de resolver estes assuntos vai fazer com que as sequelas do Freeport se mantenham por muito tempo ainda, mesmo que apenas sussurradas, o que politicamente é bem pior do que um desfecho assente numa solução mais “escorreita”.
4 comentários:
Doutor Correia Pinto,
pode chamar-me de ingénuo, mas acho que, apesar de tudo, estamos mais próximos que nunca de ver um desse "figurões" a ser (justamente) condenado em barra de tribunal.
Se bem me lembro, até aqui há não muito tempo, ninguém sequer tinha a ideia de os levar a tribunal. Dava-se como facto intransponível a imunidade parlamentar (ou outra legal) que gozam no uso dos seus poderes públicos.
Agora, até há advogados ingleses que querem levar o papa a tribunal ...
Doutor Correia Pinto,
aqui vai uma interessante sobre o empréstimo conjunto europeu/FMI à Grécia:
http://www.ionline.pt/conteudo/73487-eslovaquia-recusa-contribuir-o-esforco-salvacao-da-grecia
Missa de finados (humor negro, ou simples desencontro?)
O «caso» Freeport parece uma Missa de Finados em que parte dos presentes desejavam que o morto fosse outro e, vai daí, desatam a tentar rever os últimos instantes na vã esperança de finar o seu extinto desejado.
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Creio ser de distinguir a situação da “democracia" portuguesa da de verdadeiras democracias avançadas. Em nenhum país mais sofisticado estariam ainda em funções Sócrates & Cia.
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