segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

NOTAS DE FIM DE SEMANA

APONTAMENTOS

A dívida privada portuguesa – é um assunto de que não se fala. Os economistas do establishment não abordam o tema. Se solicitados, fogem dele a sete pés, não sem antes semearem uma série de falácias, do género é uma contabilidade difícil de fazer, muito do que é considerado privado é público e assim por ai adiante.
A questão tem todavia todo o interesse, porque a dívida privada esclarece melhor do que a pública as causas da situação a que se chegou.
A avaliar pelo que vem nos jornais, a mais escandalosa de todas as situações é a da EDP. Por todas as razões: porque continua a somar lucros e a distribuir dividendos à custa dos ónus que impõe à economia portuguesa. Depois, porque anualmente os seus executivos (e acólitos) recebem bónus ainda mais escandalosos do que os lucros com base no argumento de que “cumpriram os objectivos”. Grandes objectivos estes que endividam o país, fazem subir os juros da dívida pública, oneram todos os contribuintes, sacrificam os salários dos trabalhadores em geral e sobrecarregam as pequenas e médias empresas com custos de produção únicos na Europa.
Mas disto não fala Passos Coelho, nem os seus famosos economistas…

Passos Coelho: a raposa no galinheiro – Primeiro foi a negociação do orçamento, agora é a preparação do programa de governo – os tais “dossiers que Santana Lopes supunha que já estavam preparados para ser servidos… - e a seguir o que será? A ideia que fica é que ele está a meter a “raposa no galinheiro”…ou alguém, por ele, a pô-la lá.

Um artigo de João Cravinho Júnior no Público – "A nosa democracia e a deles". Interessante. E até seria mais se não tresandasse a oportunismo. Oportunismo de quem vem agora defender a relativização do conceito de democracia quando na prática política passada mais não fez do que alinhar acriticamente com as máximas anglo-saxónicas, políticas e económicas, com as quais se chantageava a maior parte dos países do terceiro-mundo, melhor dizendo aqueles que não tinham petróleo nem grande peso económico…porque esses estavam autorizados a ter ditadores e a não seguir à risca o “consenso do Washington”. Oportunismo ainda de quem percebe, como toda a gente, que o “chefe” meteu a “pata na poça” e vem agora, mostrando-se a la page com os eventos do sul, dizer…que se for preciso “varrer a testada” está aqui quem o possa substituir! Ao ouvir Cravinho Júnior dificilmente se pode esquecer aquele jovem egípcio que em entrevista à CBS, dizia, referindo-se aos ocidentais: “Por favor não se metam. Não precisamos de vós. Nem esquecemos que apoiaram o ditador durante trinta anos!”
O número 2000 do Expresso – Do Expresso guardo sempre três recordações: 1) a chegada do primeiro número à Guiné e a grande decepção por imediatamente se ter percebido que a grande aposta do jornal era em Spínola, personalidade acerca da qual os democratas, nomeadamente os que estavam em serviço na Guiné, não acalentavam qualquer ilusão; 2) o primeiro número depois do 25 de Abril onde a notícia da Revolução na primeira página não teria assim muito mais destaque do que uma inauguração de um qualquer festival canino por Américo Tomaz; 3) em terceiro lugar, a permanente intriga contra a Revolução e contra o 25 de Abril nos meses subsequentes.
Compreende-se: o Expresso tinha apostado noutra coisa. Numa coisa em que “eles” estivessem.

Wikileaks à portuguesa – Dos últimos textos vindos a público percebe-se, para quem não tinha percebido, que ao “Império” não lhe basta a fidelidade ideológica. O Império quer mais: e é por isso que pessoas com a mesma fidelidade ideológica são tratadas de modo tão diverso. Uns são fracos, outros são gastadores, mas há outros que são amigos…do peito!

domingo, 27 de fevereiro de 2011

AS "LIÇÕES" DE MARCELO REBELO DE SOUSA


QUEM AJUDA QUEM?

Começa a ser muito cansativo ouvir permanentemente essa lengalenga da ajuda alemã e do BCE a Portugal. Ainda esta noite, Marcelo Rebelo de Sousa, a salivar com a hipótese de o FMI entrar em Portugal, depois da conversa que Sócrates irá ter com Merkel em Berlim, lá veio outra vez explicar-nos naquele tipo de raciocínio por alíneas, muito próprio das más faculdades de Direito, que uma de duas coisas poderia resultar dessa conversa: alínea a) o esforço que vocês estão a fazer é muito bom, esmerem-se mais um pouquinho que nós continuaremos a ajudar-vos; alínea b) o vosso esforço é meritório, mas não chega, nem nós temos hipóteses de vos continuar a ajudar; tendes que recorrer ao FMI/FEEF, mas vamos fazer isto de uma forma elegante para não dar a ideia de que saís humilhados!
E assim resolve o professor Marcelo, com a competência que se lhe reconhece, a crise do euro e da dívida.
No mínimo, é preciso um pouquinho de pudor, mesmo quando faltam os conhecimentos. De facto, qualquer pessoa minimamente informada tem obrigação de saber que a intervenção do FMI na zona euro nada tem a ver com as tradicionais intervenções do FMI ocorridas noutro contexto e de que Portugal já foi “vítima” por duas vezes. Primeiro, porque, no plano macroeconómico, o FMI está impedido de usar algumas das suas principais armas: a desvalorização da moeda e a inflação. Tentará, portanto, obter um resultado parecido, mas não idêntico, através do desemprego e do abaixamento nominal de salários. Depois é preciso ter em conta que o dinheiro que será emprestado a Portugal sê-lo-á igualmente a taxas muito altas, como se tem visto no caso da Grécia e da Irlanda.
Por outras palavras, a entrada do FMI em Portugal não assegura crescimento, nem emprego; pelo contrário, garante desemprego e estagnação. Se é isto que Marcelo quer então bem pode continuar a insistir. E garante também um avanço considerável no desenvolvimento da agenda neo-liberal que o PSD gostaria fosse posta em prática por outrem com o seu total apoio. Mas aqui ele tem de ter muita cautela: há ventos mais fortes que os augúrios cujo sopro já se sente por perto...
Um outro aspecto da questão que Marcelo omite completamente, quando faz, como quase sempre acontece, o discurso do homem comum, muito próximo do do taxista, é o papel da Alemanha e dos seus bancos nisto tudo. Quem tem um grave problema com a zona euro não é o Estado português, nem os portugueses. São os bancos alemães e a exportação alemã (indústria e serviços).
Os bancos alemães por força dos graves desequilíbrios existentes na zona euro estão sobreexpostos ao endividamento do sul, além de terem lixo sem conta resultante de outras operações, principalmente os bancos regionais (landesbanken). Por outro lado, a política interna alemã, de contenção salarial e limitação da procura interna, logo das importações, só pode produzir os resultados que tem produzido no contexto de uma união monetária, como esta, sujeita a todo o tipo de desequilíbrios. Noutro contexto, ou seja, sem o euro, a moeda da economia alemã já estaria nas nuvens e há muito que a economia teria deixado de ser o que tem sido.
É, portanto, ridículo, para dizer o mínimo, continuar a falar na “ajuda alemã”. Não há ajuda nenhuma: há um “negócio” desigual que os factos demonstram não ser possível manter. E a única forma de tornar este “negócio” possível é esbater as diferenças de competitividade da zona euro através de transferências fiscais do centro para a periferia e da completa integração do mercado de trabalho (que não é coisa que se possa fazer do dia para a noite).
O que a Alemanha quer, como aqui frequentemente se tem dito, é manter tanto quanto possível a presente situação, pondo para já os contribuintes de toda a periferia a pagar aos seus bancos o correspondente ao superávide da sua economia.
Ora, estas questões, por muito que custem a compreender a certas cabeças, não podem resolver-se assim. David Ricardo já explicou por quê há quase dois séculos!

A DIPLOMACIA FRANCESA: O GRUPO MARLY


UMA MANIFESTAÇÃO DOS NOVOS TEMPOS
O manifesto que um conjunto de diplomatas franceses publicou no princípio desta semana no jornal “Le Monde”, o chamado grupo Marly, por ter sido no café com este nome que se reuniram, para dar público conhecimento daquilo que tem sido a diplomacia francesa nestes últimos tempos, mais concretamente na era Sarkozy, é também um bom exemplo de um certo clima político que tende a favorecer as intervenções não institucionais.
A improvisação da política externa francesa nestes últimos anos, de que é concludente exemplo a inconsequente “União para o Mediterrâneo” teoricamente alicerçada nos dois mais frágeis pilares da costa sul, Ben Ali e Mubarack; a secundarização do papel francês na União Europeia, mediante uma subordinação fáctica às posições alemãs, com a consequente perda de prestígio no contexto europeu, nomeadamente a sul, onde se contava com uma França forte capaz de representar e defender interesses bem diferentes dos do norte; a alteração da tradicional posição francesa na Aliança Atlântica, resultante de uma ambígua reentrada na estrutura militar da Nato, oscilando entre a subordinação aos interesses americanos e a tentativas inconsequentes de criação de uma estrutura militar europeia, fizeram com que a França perdesse prestígio e peso em todos os campos.
E foi contra esta situação, dramaticamente agravada os com recentes eventos do Mediterrâneo, aliada ao aproveitamento de altos responsáveis políticos franceses de favores e benesses concedidas pelos ditadores em queda, que um grupo de diplomatas, anonimamente, se insurgiu, acusando publicamente os grandes responsáveis pela política externa francesa por este mais que óbvio descalabro da diplomacia francesa e por via dela do papel da França no mundo.
Mas já antes tinha havido em França claras manifestações destes movimentos que se expressam por vias não institucionais, afrontando as posições dos poderes constituídos, como foi o caso dos magistrados, dos professores, dos polícias, etc.
Certamente, constituiria uma miragem supor que em Portugal algo de semelhante se poderia passar, mesmo naquelas áreas onde é mais evidente a falta de consonância entre o interesse nacional e as posições defendidas, como é o caso da política europeia, nomeadamente em tudo que respeita à zona euro, ou naqueles outros casos, e muitos são, em que a permanente tentação de o responsável pela política externa portuguesa se arvorar em defensor de supostos interesses geoestratégicos ocidentais - de que quando muito, é apenas um nano-intérprete - faz com que os reais interesses nacionais saiam muitas vezes desfavorecidos pela defesa de posições onde esses interesses se não revêem, nem cabem.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

MEDEIROS FERREIRA ELOGIA CAVACO


DUAS VEZES NA MESMA SEMANA

Esta semana, primeiro na TVI 24, depois na SIC Notícias, Medeiros Ferreira elogiou Cavaco, de forma subtil e inteligente como é norma nele, a propósito da análise de temas que não justificariam necessariamente referências ao Presidente.
Por que o fez? A explicação mais natural terá a ver com a situação do Presidente. Medeiros Ferreira, como republicano que é, sentindo que coisas não correram bem a Cavaco na reeleição, acha que deve dar o seu contributo para o restabelecimento do prestígio abalado.
A segunda explicação, não inteiramente independente da primeira, terá a ver com o facto de Medeiros Ferreira achar, e bem, que, por força das circunstâncias e até independentemente da sua vontade, Cavaco vai neste segundo mandato ser chamado a desempenhar um papel muito mais relevante do que no primeiro. Ajudar a restabelecer-lhe o prestígio e não o deixar apenas ligado a um certo sector político será também uma forma de o condicionar…
A dúvida que subsiste, não obstante toda a subtileza, é, no plano pessoal, se Cavaco será capaz de superar os seus próprios ressentimentos e, no plano político, se Cavaco tem da crise e da Europa o entendimento que Medeiros Ferreira quer fazer supor que ele tem.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

SÓCRATES EM BERLIM


CONVOCADO OU CONVIDADO?

Qualquer que seja o status com que Sócrates se desloca a Berlim – convidado ou convocado –, a capital alemã é hoje, no ponto em que as coisas estão, a única capital europeia onde Sócrates não deveria ir.
Merkel e os alemães espalham por toda a parte a ideia de que há por ai, principalmente no sul, muita gente a viver à sua custa, muitas vezes com a estúpida colaboração de alguns indígenas que acreditam piamente naquilo que os alemães dizem, quando o que na realidade se passa é a consequência de um profundo desequilíbrio na zona euro que não tem qualquer hipótese de se reparar enquanto se mantiverem intactas as políticas que o geraram.
Cientes de que esse desequilíbrio existe, os alemães conjunturalmente muito animados com os bons resultados obtidos pelo seu comércio externo fora da zona euro, tentam, recorrendo a todo o tipo de coacções, que os seus bancos saiam incólumes da grave situação criada por aquele desequilíbrio.
Por outras palavras, o que a Alemanha pretende é que a reestruturação da dívida dos países mais endividados, que inevitavelmente se terá de fazer, seja feita segundo os interesses dos credores, mediante submissão dos devedores.
Neste contexto, qualquer viagem do Primeiro Ministro português a Berlim é mais um passo no caminho da consumação daquela submissão. O que a diplomacia portuguesa deveria fazer, sem medo, publicamente, era concertar-se o mais possível com quem está na mesma situação e com quem tem fundados ressentimentos do histórico comportamento alemão, de modo a que a solução a encontrar fosse o mais possível influenciada pela situação dos devedores e pudesse, por via dela, caminhar-se para uma nova situação que sustente um verdadeiro reequilíbrio dentro da zona euro, decorrente de novas políticas de crescimento e de emprego, susceptíveis de libertar de imediato os devedores dos efeitos mais gravosos das políticas recessivas que lhes foram impostas.

ASSANGE ENTREGUE AOS SUECOS


E DEPOIS?

Enquanto o mundo anda atento ao que se passa no Mediterrâneo e no Golfo, a justiça inglesa entrega o fundador de WikiLeaks aos suecos, numa decisão que deixa margem para todas as suspeitas.
Só por ingenuidade, principalmente conhecendo os antecedentes, se pode deixar de considerar a justiça inglesa como uma das mais políticas do mundo. Nem vale a pena esgrimir grandes argumentos ético-jurídicos de censura do tribunal inglês. Ele actuou como é norma em Inglaterra.
Pinochet não pôde ser extraditado. Assange pode. Os factos por que Assange está acusado são difusos, de prova muito difícil, provavelmente nem sequer preenchem, na maior parte dos países do mundo, um tipo legal de crime. A começar pela própria Inglaterra.
Duas hipóteses, apenas duas, podem explicar a decisão do tribunal inglês: entregar Assange à Suécia, para que a Suécia o entregue aos Estados Unidos…para lá ser julgado pelo “crime” previsto na Primeira Emenda da constituição americana (liberdade de imprensa); ou entregar Assange para não ter que decidir sobre um pedido de extradição americano (hipótese teoricamente possível, mas praticamente pouco provável, já que Assange, se não for extraditado, o mais certo será abandonar logo a Inglaterra).
Ainda há recurso da sentença. Constituiria, todavia, uma grande surpresa qualquer decisão que não confirme a da primeira instância.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

MANIFESTAÇÕES DO NOSSO "ISLAMISMO"


ESCOLA PÚBLICA VERSUS ESCOLA PRIVADA

Numa época em que os olhos da “Europa institucional” só se viram para o sul para se defenderem do perigo do islâmico, o grande papão deste início de século, e da emigração, com o habitual desdém - ou, pior do que isso, medo de contágio - pela luta dos povos que aspiram à liberdade, tal como eles a entendem, vale a pena atentar nas ténues, subliminares, manifestações do nosso próprio “islamismo”, muito difícil de erradicar nos países católicos, depois de séculos e séculos de “hegemonia legal” do pensamento cristão dominante.
Marçal Grilo, ex- Ministro de Guterres, e Oliveira Martins, actual Presidente do Tribunal de Contas, dois conhecidos militantes católicos, muito ligados a certos sectores da Igreja, não têm qualquer dúvida em fazer a defesa do ensino privado (leia-se, ensino ministrado por instituições ligadas à Igreja) à custa do financiamento público, como um direito autónomo e não como simples actividade supletiva.
Oliveira Martins, mais subtil, no semanário Agência Ecclesia, diz que “liberdade de aprender e de ensinar” exige que o “Estado não tenha o monopólio do serviço público de educação” e reclama "novas formas de associação e de complementaridade entre escolas estatais e não-estatais”.
A Constituição da República é muito clara a este respeito. Ela não impõe que todo o ensino seja ministrado pelo Estado, apenas exige que o Estado crie uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. Esta sim, a obrigação do Estado, sendo, por isso, legítimo, à luz da Constituição, que o Estado, quando não consegue, e enquanto não consegue, responder a esta sua obrigação, contratualize com entidades privadas o serviço que a ele lhe compete prestar. Só isso e nada mais. A partir do momento em que o Estado esteja em condições de responder às exigências constitucionais, deixa de fazer sentido financiar terceiros por um serviço que ele já está a prestar.
Mas nada disso impede que o ensino privado se instale, nos termos da lei, à sua custa e desenvolva neste enquadramento a sua actividade.
Oliveira Martins confunde propositadamente monopólio do ensino público, que não existe – ninguém impede o exercício do ensino privado nos termos da lei – com obrigação de serviço público de educação a cargo do Estado.
Marçal Grilo, mais no estilo de Cavaco, que durante a campanha eleitoral incitou os donos dos colégios privados a manifestarem-se contra o Governo, vai ao ponto de dar o seguinte exemplo: “Existem duas escolas no mesmo sítio, uma é pública e outra privada. Como apoiá-las? Se a escola privada tiver uma avaliação melhor do que a pública, feche-se esta e deixe-se a privada”!
Este argumento demagógico e populista esconde o essencial, como sempre acontece quando na defesa de um interesse próprio, seja ele económico, ideológico ou de outra ordem, se prescinde da razão para alcançar uma vantagem.
O que Marçal Grilo tem de demonstrar e defender é que o Estado pode abdicar da obrigação de educar e instruir, mediante a entrega dessa tarefa a privados, pagos com o seu dinheiro. E tem de demonstrar ainda que o ensino é uma actividade completamente neutra que pode indiferentemente ser prestada por quem, por via dele, defenda o interesse geral ou o simples interesse particular. Ou se a definição do interesse geral, supondo, sem conceder, que esse é também o objectivo de quem privadamente se dedica ao ensino, deve ficar a cargo das escolas privadas.
Deixemo-nos de conversas: o que eles querem é assegurar à Igreja um papel determinante no ensino à custa do erário público.
Isto seria um retrocesso civilizacional que nos remeteria, filosoficamente, para uma época pré-iluminista e, politicamente, para uma época anterior à escola laica, uma das maiores conquistas da nossa civilização.
São estes vestígios de “islamismo” que por cá ainda existem com que nos devemos preocupar e não com a acção dos povos que do outro lado do Mediterrâneo e no Golfo lutam pela sua dignidade!

ZECA AFONSO

24 ANOS

Sem palavras: somente a letra e a música das suas canções.....

PROVA DOS 9


NA TVI 24, TODAS AS TERÇAS, ÀS 11 DA NOITE

Estreou-se ontem na TVI 24, sob a moderação de Constança Cunha e Sá, o programa de comentário político “Prova dos Nove” que conta com a participação de Medeiros Ferreira, Fernando Rosas e Pedro Santana Lopes.
O problema de todos os programas regulares de comentário político, com comentadores residentes, é, com o tempo ou até com o conhecimento prévio que se tem dos intervenientes, a mais que previsível repetição das intervenções de cada um deles.
A rotina, embora possa ser amiga da produtividade, é inimiga da inteligência. É por isso que é hoje tão fastidioso ouvir a maior parte do comentário político que por aí se faz.
Este programa, que ontem se estreou, com dois professores universitários de reconhecida competência e com a participação de um homem de grande experiência política e também experiência de docência universitária, reúne, à partida, todas as condições para ter êxito e para marcar a diferença.
O que se pede aos intervenientes é que sejam imaginativos, criativos e simultaneamente bem preparados sobre os temas a tratar. E pede-se ainda que nenhum dos três se esqueça que a soberania nacional e a vontade popular, no fundo duas facetas da mesma questão, estão hoje muito limitadas pela plutocracia e pela participação de Portugal na União Europeia e na moeda única. Limitações que no comentário político nacional são frequentemente esquecidas ou subalternizadas. Ou, quando abordadas, são-no, na maior parte das vezes, sob a forma de lamento ou de fatalidade. Escamotear esta questão, supondo que existe uma “soberania partilhada” ou, pior ainda, tratando-a como um dado de facto incontornável, só serve para agravar a presente situação e criar a ilusão de que quem vier a seguir, no quadro do rotativismo republicano vigente, pode fazer muito diferente.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

POLITEIA - 3.º ANIVERSÁRIO



A LUTA CONTRA O DESPOTISMO

No terceiro aniversário da Politeia, nada melhor do que a homenagem aos povos que de Marrocos ao Bahrein lutam contra o despotismo, pondo fim a esse preconceito aristotélico, inicialmente referido aos persas, mas que pensadores europeus posteriores foram sucessivamente estendendo a todos os asiáticos, de que há povos naturalmente servis, sendo, portanto, o despotismo a forma de governo adequada à sua índole.
Não anda muito longe deste preconceito, permanentemente presente na filosofia política ocidental, o modo como a Europa e a América olharam durante séculos para os povos que hoje se revoltam em nome da sua dignidade!

O DISCURSO DE KADHAFI


FIM OU RESISTÊNCIA?

A julgar pelo que se tem visto noutras paragens o longo discurso que Kadhafi acaba de pronunciar assemelha-se ao estertor de uma longa ditadura. Lembra o discurso de Ceausescu, e mais recentemente o de Mubarack. Mas é cedo para tirar conclusões.
Kadhafi discorreu largamente sobre a sua biografia, sobre a revolução que permitiu entregar ao povo as riquezas do país, referiu-se à luta travada contra os americanos, ingleses e franceses, lembrou ao Ocidente o ataque do Yeltsin à Duma, falou igualmente de Tiananmen, recordou os ataques de Bush depois do 11 de Setembro, apelou vezes sem conta aos comités populares para que saíssem à rua em defesa da revolução, enumerou as penas consagradas na lei Líbia para os crimes de sedição, traição à Pátria, e insistiu muito no perigo islamista, perguntando aos líbios se queriam transformar a sua terra num novo Iraque ou Afeganistão.
A referência constante aos comités populares e ausência de referências às forças de segurança e às forças armadas faz supor que não é com estas que Kadhafi conta para defender o regime.
O discurso não foi, portanto, de apaziguamento. Pelo contrário, Kadhafi prometeu lutar pela revolução “até à última gota de sangue”. Identificou os jovens manifestantes com drogados, ao serviço de poderes estranhos aos interesses da Líbia, manipulados por potências estrangeiras.
Sublinhou que a situação da Líbia é muito diferente da da Tunísia e da do Egipto, explicou que não se demitiria, porque quem exerce o poder é o povo, cabendo-lhe a ele apenas a defesa da revolução: o guia.
Sem conhecer a situação na Líbia, principalmente do ponto de vista da distribuição da riqueza e das expectativas dos jovens, é difícil opinar sobre os efeitos do discurso na sociedade líbia. Para quem está de fora parece um discurso de resistência, sem perspectivas nem concessões. O discurso, todavia, não é exclusivamente destinado aos líbios. É também um discurso para o Ocidente. Daí que tenha brandido a ameaça do “perigo islâmico” e que tenha também lembrado as reacções ocidentais relativamente a certos acontecimentos repressivos, como quem pede agora a mesma compreensão para o que possa vir a contecer.
Numa palavra: o discurso, com excepção do tom inflamado com que foi proferido, não anda muito longe do que ontem foi dito pelo seu filho. A ideia mestra é a mesma.
O agravamento da situação na Líbia vai obrigar a Europa, mais do que os Estados Unidos, a tomar medidas com que não contava. Até aqui a Europa entregou a sua “segurança” aos ditadores e aproveitou a “estabilidade” por eles proporcionada para realizar excelentes negócios. Em troca fez que deu alguma liberdade de comércio ao Mediterrâneo, embora na realidade lhe tenha dado muito pouco ou quase nada: a possibilidade de exportar para a União Europeia alguns produtos agrícolas, sempre com muita resistência dos países do sul, principais prejudicados pela concorrência árabe. A partir de agora, se quiser realmente contribuir para o desenvolvimento desses países vai ter que transferir muita tecnologia e capital, o que, tendo em conta o modo como se organiza economicamente o norte, parece uma tarefa impossível.
Certamente que ninguém previa esta “aceleração” da História, mas desde há muito várias vozes, no interior da União Europeia, quase todas fora das suas instituições, iam alertando sobre a necessidade de olhar para o Mediterrâneo de outra maneira. Vozes que ninguém ouvia, ou que, quando eram escutadas, era apenas para atender a aspectos parcelares e superficiais da questão, como a emigração. Cada um estava interessado em tratar dos seus negócios, fossem eles graúdos ou miúdos, deixando que as coisas fossem correndo por si. O que não admira, porque é assim que o capitalismo, no essencial, actua.

A SITUAÇÃO NA LÍBIA


E AGORA O QUE DIZEM A EUROPA E OS ESTADOS UNIDOS?

Sabe-se pouco do que se passa na Líbia. E se se tivesse que levar a sério as recentes previsões do Embaixador de Portugal, em Tripoli, então é que não se saberia mesmo nada. Informações diplomáticas à parte, sabe-se porém o suficiente para fazer uma ideia do que se passa. Dominada por um regime despótico, a Líbia está desde há mais de quarenta anos sujeita ao poder de Kadhafi, conhecido terrorista, chefe de um clã de cleptocratas que, tal como os seus apoiantes ocidentais, supôs que poderia eternamente dominar o seu povo sem lhe prestar contas.
O vento de revolta que varre o Mediterrâneo chegou também à Líbia. O povo que luta contra Kadafi sofre, como em nenhuma outra parte, as consequências de quem não se inibe de usar contra o seu próprio povo a mais brutal violência, quer metralhando-o com raids aéreos, quer usando a artilharia pesada para o expulsar da rua!
A Líbia de Kadhafi, porventura mais do que Mubarack, é a vergonha do Ocidente! Tudo lhe foi perdoado em troca de gás, petróleo e contenção da emigração magrebina e africana. Da emigração que Kadafi expulsa para o deserto, deixando-a entregue à sua sorte.
A presença do filho mais velho de Kadhafi na televisão, um conhecido delinquente, é, mais do que uma vergonha, um insulto à dignidade humana!
Mas atenção: as “democracias” plutocráticas do Ocidente também estão correndo na direcção do abismo. Não adianta fazer grandes análises, mais vale atender aos sinais e esperar pelos factos. E há muitos sinais que a revolta do Mediterrâneo vai necessariamente potenciar.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

LUIS AMADO E "O VENTO REVOLUCIONÁRIO DO SUL"


DECLARAÇÕES PATÉTICAS

Luis Amado em declarações transmitidas pela Antena 1 mostra-se muito preocupado com os acontecimentos no Mediterrâneo e no Golfo e lamenta que a Europa tenha olhado demasiado para leste e tivesse esquecido do sul.
São declarações difíceis de interpretar, para quem se ativer às simples palavras, esquecendo o seu autor e o seu contexto. Aparentemente, todas as interpretações são possíveis, mas diz a experiência que, quando o hermetismo da frase comporta múltiplos sentidos, normalmente aquele que o autor lhe quer atribuir é o que não pode ser clarificado. É assim na política, é assim por maioria de razão na diplomacia.
Comecemos pelo Leste: demasiado preocupados? A verdade é que os factos aí estão a confirmar as “preocupações”: então não houve uma deliberada política de cerco à Rússia, alargando a NATO até às suas fronteiras ocidentais e apenas falhando o cerco a sul por inépcia de Saaskashvili e decisão do Kremlin?
Será, então, esta declaração uma auto-crítica? Ninguém acredita nisso. O que é legítimo retirar das palavras de Luís Amado é que a UE se preocupou com as armas e desprezou o povo. Onde não havia armas de destruição em massa, a União Europeia entregou a “defesa dos seus interesses”aos regimes despóticos do sul, conluiando-se com os tiranos a quem encarregou de vigiar e neutralizar por qualquer meio todos aqueles que, de perto ou de longe, pudessem ameaçar os seus interesses. E esqueceu-se do povo! Portanto, o que Amado quer dizer é que a Europa deveria ter estado mais presente para poder condicionar agora a evolução dos acontecimentos.
São declarações patéticas estas do Ministro dos Negócios Estrangeiros. Próprias de quem não aceita a evolução dos acontecimentos, de quem tudo quer orientar e condicionar, próprias, enfim, de quem ainda não percebeu que o mundo está a mudar. E a mudar muito. Está a dar uma volta, uma grande volta. Aqueles que desde há mais de seis séculos têm condicionado o destino da humanidade estão em vias de passar eles próprios a ser condicionados pela acção da maioria. Por muito que isto custe ao Ocidente, o que se está a passar é mais um passo, um grande passo, no sentido de um movimento que já tem décadas.
Primeiramente, os povos subjugados libertaram-se das grilhetas políticas da descolonizaçãp por acção dos movimentos nacionalistas que despontaram no século XX, principalmente na Ásia e em África. Em muitos lados, a descolonização não foi muito além disto. Embora “isto” já seja muito, do ponto de vista da dignidade humana. Noutros, ela foi mais profunda. Atingiu uma parte do poder económico. Mas dessa “nacionalização” do poder económico nem sempre, ou poucas vezes, resultaram as vantagens que seria legítimo esperar para a generalidade da população, apesar de esta, entretanto, ter mudado muito, principalmente no plano sanitário e educacional.
Nada mais natural, portanto, que depois de se terem libertado da dominação política, esses povos, várias décadas mais tarde, se queiram agora libertar das tiranias internas que os oprimem, exploram, marginalizam e acima de tudo os roubam.
Este caminho, para a segunda "libertação", que agora está acontecendo na orla sul do Mediterrâneo e nos Estados árabes do Golfo, não vai ser prosseguido em linha recta, nem vai seguir modelos pré-estabelecidos. Não vai necessariamente adoptar conceitos ocidentais, forjados na luta dos povos europeus contra a tirania e a opressão, nem vai ser teleguiada a partir de nenhuma capital imperial. Vai seguir o seu próprio caminho, como sempre com muitas dificuldades e adversidades.
Por isso nos parece tão ridícula a ilusão daqueles que querem ver no actual movimento revolucionário que varre o sul do Mediterrâneo e algumas zonas do Golfo um “remake” de revoluções já ocorridas na Europa, como a da daqueles que se lamentam por não terem condicionado a evolução dos acontecimentos e agora, colhidos de surpresa, tentam desesperadamente posicionar-se supondo que ainda podem parar o movimento da História!
O Ocidente, e muito particularmente a Europa, vai sofrer durante muitos anos as consequências de ter apoiado (e continuar a apoiar) regimes despóticos no Mediterrâneo e no Golfo numa estreiteza de vistas de quem não se importou (nem se importa) de sacrificar o futuro aos interesses egoístas de um presente julgado eterno e imutável. Mais uma vez é a hipocrisia europeia que é posta a nu pela evolução dos acontecimentos: direitos humanos, democracia e tudo o mais que a estes conceitos anda ligado não passam de palavras para esgrimir contra aqueles que se opõem aos interesses europeus na defesa dos seus próprios interesses, mas que nada valem nas relações com aqueles que aceitam fazer estrategicamente o “jogo do Ocidente”.
Como nos grandes movimentos telúricos, o reajustamento vai ser longo e doloroso. Todavia, se alguma coisa devemos acreditar é que a Humanidade se tornará melhor à medida que o relacionamento entre os povos se for libertando das relações de domínio.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A ENTREVISTA DE PASSOS COELHO


ENTREVISTA É COMO QUEM DIZ

Começando pelo princípio: não houve qualquer entrevista. Houve um daqueles chatos tempo de antena que a “Dama de Sintra” quis ter a gentileza de proporcionar ao actual presidente do PSD.
E ele pouco nos disse, além daquilo que sempre tem dito. Tirando a questão do “pote”, que ele teve a coragem de explicitar (não há nada como a gente saber com o que conta), fica a do BCE – a tal grande “ajuda” que o BCE está prestando a Portugal, comprando aos especuladores títulos da dívida pública portuguesa, não sem que antes tenha emprestado a esses mesmos especuladores, à taxa de juro de 1%, o dinheiro que eles logo a seguir emprestam ao Tesouro português a quase 8%! O que dirão os vindouros daqui a 100 anos quando estiverem a fazer a história da “construção europeia” no dealbar do século XXI e da moeda única? Certamente acharão tudo isto muito mais surpreendente do que o engano de Passos Coelho no montante da “ajuda”, que sempre poderá ser imputado ao Nogueira, responsável pelo pelouro dos números.
Mas vamos ao que interessa: racionalmente ele vai ter de optar entre avançar logo que as sondagens inequivocamente o favoreçam (e esperar que, além do Portas, alguém se junte a ele na censura) ou deixar o "odioso da questão" para Cavaco Silva, muito provavelmente a propósito da aprovação do próximo orçamento.
Todavia, há uma tão grande avidez de poder entre a sua gente, a ansiedade das “bases” pelo “pote” é tanta que ele vai ter de ajustar permanentemente a sua estratégia…para não ser mais um “decapitado” presidente do PSD. E como normalmente a ansiedade é má conselheira, ninguém ficaria surpreendido se lhe viesse a acontecer o mesmo que já sucedeu aos outros.
Se não acontecer e chegar ao poder, iremos certamente ter em Portugal a mais lídima experiência neoliberal da Europa, uma daquelas de fazer inveja a Václav Klaus!

O PACTO DE COMPETITIVIDADE, A MOÇÃO DE CENSURA E O PSD


O QUE INTERESSA DISCUTIR

Para além do que já aqui foi dito sobre a moção de censura, uma das questões que não pode ser secundarizada é a de ela facilitar uma interpretação que tende a não atribuir o devido relevo à responsabilidade do “enquadramento comunitário vigente” na presente crise. De facto, a tónica geral, tanto à esquerda, como à direita, tem de sido a de responsabilizar exclusivamente a governação socialista pela situação existente.
Esta perspectiva, cruamente apresentada, favorece a direita. É na direita que se situa o partido que se reveza com o PS no poder. Se a responsabilidade pelo que se passa for exclusivamente do PS vai acontecer a seguir o que sempre tem acontecido: o PSD substituirá o PS no governo para fazer a mesma política, eventualmente mais à direita.
É claro que o Governo PS é responsável, e muito, pelo que se passa, mas não é o único. As premissas em que ele assenta a sua governação são-lhe em grande parte ditadas por Bruxelas e com elas está igualmente de acordo o PSD. Tanto o PS como o PSD as aceitam, as aplaudem…em nome da Europa. E, todavia, elas têm cada vez menos a ver com uma ideia aceitável de Europa, mas antes com o domínio de uma política plutocrática que os governantes dos países mais fortes se encarregam de veicular.
No debate em que foi anunciada a moção de censura pelo BE estava em discussão aquilo a que o líder da bancada do Governo e José Sócrates chamaram pomposamente o “governo económico da União”.
É de facto inacreditável que tamanho entusiasmo tenha passado praticamente impune, bem como os elogios ditirâmbicos que tanto Assis, como o Primeiro Ministro teceram ao último Conselho Europeu “por nele se ter lançado as bases de um governo económico da Europa”.
Praticamente ninguém no Parlamento, do lado da oposição, falou sobre o “Pacto germano-francês sobre a competitividade”. O PSD, como convinha, assobiou para o lado e fez de conta que não era nada com ele; o Portas falou sobre umas questões técnicas da “lavoura” que nada tinham a ver com o assunto; o PCP, pela voz de Jerónimo de Sousa, formulou umas breves questões a que Sócrates respondeu com sobranceria, dando a entender que alguns dos assuntos perguntados, que se sabe constituírem a essência do tal Pacto, eram pura invenção de quem o interrogava! E Louçã nem sequer ao assunto se referiu. Falou da não tributação dos bancos, do desemprego, das demais manifestações sociais da crise e concluiu como se sabe.
Esta perspectiva exclusivamente doméstica da crise, além de estar errada, não permite criar na consciência das pessoas um juízo suficientemente crítico sobre o “governo da Europa” nem sobre os que, cá dentro, com ele concordam acriticamente, se é que não o aplaudem. E se essa outra perspectiva não for criada, o poder vai continuar a rodar tranquilamente entre o PS e o PSD com a bengala do CDS, consoante faça ou não falta.
E isto é tanto mais grave quanto é certo já haver hoje, no pano económico, uma ideia muito clara das limitações e dos constrangimentos da zona euro, bem como das consequências a que inevitavelmente leva uma União Monetária construída nos termos da que existe na Europa. E de, no puro plano político, também haver cada vez menos dúvidas de que a tal “ideia de Europa” como projecto solidário em construção entre os países da UE cedeu lugar a uma visão que assenta fundamentalmente na manutenção de um espaço de comércio livre, intergovernamentalmente regulado em tudo que seja deveras importante, sendo hoje a questão da moeda única, entretanto criada, um instrumento que interessa salvaguardar por razões que diferem consoante a perspectiva de cada Estado.
E é exactamente na perspectiva dos mais fortes, nomeadamente da Alemanha, que a zona euro se prepara para tomar medidas que, por um lado, assegurem o cumprimento das dívidas aos bancos prestadores de crédito, e, por outro, evitem o colapso da moeda comum à custa da degradação dos salários e do poder de compra, principalmente dos países endividados.
O “pacto de competitividade germano-francês”, apresentado na suas grandes linhas no último Conselho Europeu pela Alemanha, sob a forma de non paper, tem merecido as maiores críticas da esquerda europeia e até de muitos sectores conservadores dos países periféricos não só pelas consequências sociais que a sua aprovação acarretaria, mas também porque ele constitui em si um absurdo economicamente insustentável.
Os aspectos económicos desta questão terão de ficar para outro post. Entretanto, pode ler-se, entre nós, nos sectores próximos do Governo uma das poucas vozes, senão a única, de crítica à proposta alemã, bem como uma contundente crítica vinda de Espanha, enquanto os alemães se afadigam na "demonstração" de que o “pacto” por eles proposto é a solução!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

QUEM ESCOLHEU O GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL?




ESTE NEM SEQUER DISFARÇA

O capital financeiro inventou “essa coisa” de o banco emissor de um Estado dever ser independente. Independente dos órgãos de soberania, nomeadamente do Executivo e do Legislativo, não do capital.
Os alemães até chegaram a dizer que o “dinheiro” deveria ter um tratamento igual ao dos tribunais. Deveria ser independente, inamovível, etc. e tal. Só não disseram que deveria passar a ser tratado como órgão de soberania. E compreende-se porquê. Porque o capital financeiro dá-se mal com essa ideia de ser um órgão de soberania como os outros. Ele quer ser um “órgão de supremacia”.
É neste contexto que devem ser interpretadas as intervenções do Governador do Banco de Portugal em tudo que diga respeito ao sacrossanto direito dos credores agiotas. Já foi assim em Novembro do ano passado e voltou a ser agora.
O mais lamentável é que há quem, em lugares de responsabilidade, não seja capaz de resistir a esta voragem.
Quem escolheu este Governador? Foi o Governo? Foi Cavaco Silva? Foi imposto por Bruxelas? Será que o Governo conhecia mesmo bem aquele que propôs para substituir Constâncio? Será que o Governo desconhecia o discreto, mas eficientíssimo papel, desempenhado por Carlos Costa, enquanto chefe de Gabinete do Comissário Deus Pinheiro, na imposição dos modelos neoliberais nos países em desenvolvimento, nomeadamente nos ACP (África, Pacífico e Caraíbas) na esteira dos ditames do FMI e da subserviente Comissão Europeia? Será que o Governo sabia ou sabe que foi nesse período que o FMI e seus acólitos (e entre os acólitos está sempre, na primeira linha, a UE, via Comissão) praticaram as maiores “barbaridades” na imposição do “consenso de Washington”?
Se sabia, então não se queixe!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

POR QUE É CRITICÁVEL A MOÇÃO DE CENSURA


OUTRO PONTO DE VISTA

A moção de censura anunciada pelo Bloco de Esquerda no último debate quinzenal tem dominado, desde então, a cena política portuguesa. Poucos são os que a aplaudem, muitos os que a criticam.
As críticas surgem de todos os lados. Do lado da direita, que, não tendo a certeza de, apoiando-a, vir a ganhar as eleições subsequentes, a qualifica como “frete ao Governo”ou “moção espectáculo”. Do lado do PS, que acusa o Bloco de querer entregar o governo à direita. Do lado da esquerda, que a qualifica de oportunista e incoerente.
Perante tantas críticas, Louçã e mais uns poucos defendem-se como podem, embora não acrescentem nada de muito novo relativamente àquilo que já se tinha ouvido antes.
Salvo o devido respeito, parece que a questão não tem sido bem posta. A moção de censura, qualquer moção de censura, visa derrubar o governo em funções, provocar eleições na esperança de o governo derrubado ser substituído por outro, saído das eleições. É um típico mecanismo da luta parlamentar. E a luta parlamentar, por definição, não provoca grandes alterações. O status quo tende a manter-se, com algumas diferenças de pouca importância.
Quer isto dizer que não há evolução pela via eleitoral parlamentar? Não. Quer antes dizer que a evolução que se regista na via parlamentar começa sempre muito antes, fora do Parlamento. Quando chega ao Parlamento ela já está relativamente consolidada por acção dos meios que hegemonizam o poder ideológico, não sendo, por isso, de estranhar que a mudança gradual operada no Parlamento atinja por igual os partidos que se revezam no poder, não obstante as diferenças puramente retóricas que na aparência mantêm.
No presente momento histórico está patente aos olhos de qualquer observador que os elementos fundadores da “democracia ocidental”: soberania popular, representação, autonomia da decisão, respeito pelos direitos constitutivos da democracia, compatibilização da liberdade com preocupações de justiça social, enfim, os tais "elementos fundadores" em permanente evolução com vista à constituição de sociedades mais harmónicas e participadas foram completamente capturados pela plutocracia.
Hoje não é apenas a soberania nacional que se apaga para dar lugar à submissão a poderes vindos de fora, é também a soberania popular que se esbate ou quase desaparece no contexto de uma bem urdida mistificação democrática que tende, com a ajuda de procedimentos aparentemente legitimadores, a fazer crer que ela continua presente (sem na realidade estar) na maior parte dos domínios da vida política. Daí à ineficácia da representação, ao desrespeito pelos direitos, mesmo os consagrados constitucionalmente, à negação da autonomia das decisões vai uma pequena distância que diariamente vai sendo encurtada com pequenos ou grandes passos.
A moção de censura cria a ilusão de que há, no quadro parlamentar, uma via de solução para estes problemas - os graves problemas resultantes da captura da democracia pelo capital plutocrático. E não há.
Mas isso não significa que não haja soluções. De facto, a situação que actualmente se vive em muitas democracias ocidentais, tanto na Europa, como na América, não pode ser encarada como uma fatalidade. Ela tem causas.
Esta substituição da democracia pela plutocracia resulta de um longo movimento iniciado com Thatcher e Reagan, no início da década de oitenta do século passado, e que depois se foi consolidando, cada vez com mais intensidade, até se instalar como força política dominante e hegemónica. A desregulamentação dos sectores da actividade económica; a privatização de quase todos os sectores de actividade, inclusive os serviços públicos essenciais; o desmantelamento do Estado social; a destruição de qualquer modelo de “engenharia social”, por via de um ataque sem tréguas contra qualquer ideia de solidariedade inspirado numa filosofia ferozmente individualista que diaboliza a simples existência de direitos sociais, laborais ou culturais ; a luta e destruição do Estado intervencionista, reconduzindo-o a um papel de polícia garante da propriedade e, em última instância, da liberdade (do proprietário); finalmente, a substituição da actividade produtiva, como actividade económica dominante, pelo capital financeiro, são alguns dos momentos mais marcantes desta transformação que alterou completamente a natureza dos sistemas políticos em que antes vivíamos.
No entanto, estas causas podem ser alteradas para que outras consequências se produzem. O que não pode é supor-se que elas são alteráveis dentro do quadro que as criou. E aqui é que bate o ponto: quem continuar a pensar que pode produzir novas consequências dentro do quadro que gerou a actual situação está a alimentar ilusões que apenas servem para garantir mais consistência ao “status quo”.
Esta a crítica contundente à moção de censura, nomeadamente num tempo em que não faltam campos de batalha para lutar contra as propostas de consolidação da captura da democracia pela plutocracia de que é exemplo mais recente o “Pacto germano-francês para a competitividade”, a que o Governo, o PSD e o CDS se preparam para dar o seu acordo.
A luta contra este estado de coisas, tanto em Portugal como nas demais partes do mundo que sofrem consequências semelhantes, tende a ser travada por novos actores, mais instruídos, mais cultos, mais informados, que cada vez aceitam menos a marginalização de que são vítimas.
E, certamente, eles não acreditam que seja com “moções de censura” que se lá vá!

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A MOÇÃO DE CENSURA DE LOUÇÃ


UMA TENTATIVA DE EXPLICAÇÃO


Num volte face inesperado relativamente ao que vinha sendo o recente discurso do Bloco sobre a censura parlamentar ao Governo, Louçã terminou a sua intervenção inicial no debate de hoje à tarde, desafiando Sócrates a apresentar uma moção de confiança.
O desafio, se fosse atendido, seria para o Governo de desfecho muito mais certo do que o de uma moção de censura, já que nenhum partido da oposição daria pela positiva ou pela abstenção o seu apoio ao Governo. Daí que Sócrates, claramente surpreendido por uma intervenção cuja conclusão era dificilmente antecipável, tenha reagido negativamente a tal desafio, acusando o Bloco de querer destabilizar politicamente o país. Louçã não perdeu tempo. Se o Governo não apresenta uma moção de confiança, apresentará o Bloco no dia 10 de Março uma moção de censura.
Perante este facto absolutamente inesperado poderá tentar compreender-se as motivações do Bloco e antecipar algumas consequências que seguramente terão sido ponderadas.
Em primeiro lugar, o Bloco sabe que a direita tem hoje pouco espaço para rejeitar uma moção de censura, seja quem for que a apresente e quaisquer que sejam os considerandos em que se fundamenta. Logo, o mais provável é que o Governo seja derrubado.
Em segundo lugar, o Bloco também não pode deixar de saber que Sócrates tinha mais a “lucrar” com uma moção de censura vinda da direita, do que da esquerda. E que a direita, indo à boleia do Bloco, alija o ónus, ou uma grande parte dele, que teria de suportar se tomasse a iniciativa de fazer cair o Governo.
Uma terceira questão, esta mais difícil de antecipar, é saber qual será a reacção de certo eleitorado do Bloco a este tipo de iniciativas.
Embora, como já se disse, nada fizesse prever este desfecho antes da conclusão da intervenção inicial de Louçã, pode dizer-se que as motivações do Bloco, de muito duvidosa eficácia eleitoral, parecem prender-se mais com a necessidade de descolagem do PS, em virtude da aparência criada por uma campanha presidencial a muitos títulos ambígua, do que propriamente pela necessidade de se antecipar ao PCP, embora as duas questões estejam intimamente relacionadas.
É um jogo arriscado…E o Bloco joga muito nesta cartada…

Não está em causa nada do que Louçã afirmou nem o que todos sabemos sobre a política do Governo. Há no discurso de Sócrates contra a direita uma linguagem de esquerda que depois é permanentemente desmentida na sua prática política. E é igualmente verdade que nesta mistificação desempenha um papel “insubstituível” a chamada esquerda do PS, sempre pronta com a sua inacção a ratificar todas as políticas …a propósito das quais só manifesta o seu desacordo, depois de decididas e executadas.
Tudo isto é verdade. Porém, também é verdade que o PS perante uma direita como a que hoje domina o PSD, totalmente neoliberal, sabe tirar mais proveito eleitoral disso do que a esquerda.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O VETO DE CAVACO



SEU SIGNIFICADO

Pela primeira vez, Cavaco silva vetou politicamente um diploma legislativo oriundo do Governo. Juridicamente, nada mais resta ao Governo do que submeter o diploma à Assembleia da República sob a forma de proposta de lei e esperar que esta o aprove. A partir daqui, Cavaco ainda pode voltar a vetar o diploma aprovado, embora não seja nada provável que o faça, já que a mesma maioria que o aprovou certamente o aprovaria de novo.
Mas não é deste ponto de vista que a questão tem interesse. Nem tão-pouco do ponto de vista das razões invocadas para o justificar. Embora se trate de um meio onde ferozmente se defrontam lobbies muito poderosos, capazes de invocar as mais variadas razões de “interesse público” para fundamentar a defesa dos seus lucros milionários, e embora se saiba também que Cavaco Silva é muito sensível ao "empreendedorismo", como a promoção dos negócios de Rendeiro e as amizades com a gente da SLN/BPN amplamente demonstram, não é por nenhuma destas razões que o veto é notícia.
Na recente campanha eleitoral para Presidente da República, nos auto-atribuídos predicados que um candidato ao lugar deveria ter, um deles era a capacidade relacionamento com os demais órgãos de soberania, atributo de que Cavaco se vangloriava a ponto de ter afirmado nunca haver vetado um diploma do Governo. E porquê? Depreendia-se que este seu record resultava da sua capacidade para negociar com o Governo as alterações julgadas adequadas ou para, pelo menos, abrir um processo de discussão susceptível de permitir ao Governo a justificação das opções tomadas.
Desta vez Cavaco não fez nada disto. Pelo contrário, surpreendeu o Governo com o veto do diploma. É claro que Cavaco quis com este veto fazer “prova de vida”. E esta prova tinha, preferencialmente, de ser feita em relação a um acto do Governo. Só que esta “prova de vida”, numa personalidade como Cavaco, tem um significado que vai muito para além daquilo que poderia ser uma simples demarcação do seu espaço político. É uma verdadeira retaliação.
O Cavaco que vetou é o mesmo Cavaco que por duas vezes discursou no dia 23 de Janeiro. Cavaco tem uma questão pessoal a resolver com o Governo e como não é capaz de a ultrapassar vai seguramente multiplicar os gestos de hostilidade.
Para o Governo, numa perspectiva eleitoral, não será mau de todo. Provavelmente, será mais fácil ganhar a Cavaco e ao PSD juntos, com cada um a pretender demarcar-se do outro, do que ao PSD só.

COMO A EUROPA VÊ A SITUAÇÃO NO EGIPTO


O QUE A EUROPA QUER

Os dois artigos abaixo indicados, ontem publicados no El País, e também nos principais jornais europeus, são a expressão mais correcta que se pode encontrar do modo como a Europa olha para a situação no Egipto e do que a Europa realmente quer da “revolta popular” do Egipto.
Do homem comum ao político, passando pelo intelectual orgânico do sistema europeu o que a Europa realmente quer é orientar, controlar, indicar a direcção da mudança. Mas esta escrita é também a expressão de uma certa impotência perante o sentido dos “novos ventos da História” cada vez menos dependente daqueles que dominaram os últimos séculos.
É o século XXI a irromper com toda a sua pujança…
Os artigos são de Jean-Marie Colombani e Timothy Garton Ash.

O PARLAMENTO EUROPEU E O EGIPTO



O ÓBVIO ACONTECEU

Por menor que seja a simpatia política pela Comissão Europeia e pelos seus membros individualmente considerados, não pode, a propósito da “crise egípcia”, deixar de olhar-se para algumas atitudes do Parlamento Europeu como manifestações do mais pérfido cinismo político.
O Parlamento e muitos dos comentadores que pululam por essa Europa fustigaram a pobre senhora Catherine Ashton por passividade na “crise egípcia”, por não ter tido um comportamento interveniente, por não ter marcado alto e bom som o sempre nobre ponto de vista europeu sobre tudo o que diga respeito a revoltas populares!
Estes deputados não têm a menor vergonha. Pois se toda a gente sabe que, para os assuntos realmente importantes, a União Europeia só existe como entidade intergovernamental, na prática como directório franco-alemão, mais na prática ainda como entidade dominada pela Alemanha, seguida pela França, com a abstenção ou o desinteresse da Inglaterra, o que poderia dizer em seu nome a dita senhora? Repetir o que disse Berlusconi? Parafrasear Amado? Prever o que iria dizer Merkel? Copiar Sarkozy na crise tunisina? Antecipar as banalidades da declaração conjunta dos Ministros dos Negócios Estrangeiros?
O Parlamento Europeu apenas está a deitar poeira nos olhos de quem o escuta. Realmente, o que o Parlamento Europeu queria que dita senhora fizesse era um número capaz de criar a ilusão de que a Europa quer uma coisa diferente daquela que verdadeiramente quer. E o que a Europa quer é que o Egipto continue mais ou menos na mesma, mas que haja lá dentro quem saiba fazer isto criando a ilusão da mudança.
Mas como pode uma pobre comissária, sem poderes e sem prestígio, aventurar-se a tal intervenção?

PRÓS E CONTRAS


O PROBLEMA

É muito difícil ver um programa Prós e Contras por mais interessantes que sejam os participantes.
É que no programa há uma permanente voz pateta que interrompe os raciocínios, que diz uma graçola vulgar, que comenta sem perceber o que foi dito, enfim, que torna obrigatório o uso intermitente do “mute”. E isto é muito cansativo para o espectador.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O IMPASSE NO EGIPTO





AS VERDADEIRAS CAUSAS

Aparentemente, apenas aparentemente, os governos ocidentais de Washington a Berlim, passando por Roma, Paris e Londres, advogam uma mudança da situação política no Egipto e agora também a saída de Mubarack por temerem que o apodrecimento da situação possa criar uma instabilidade incontrolável em todo o Médio Oriente.
A princípio, quando a revolta começou, apenas “exigiam” medidas, deixando ao critério de Mubarack o entendimento do conceito, o tempo certo para a sua adopção e a responsabilidade pela sua execução.
O povo continuou a resistir, Mubarack tentou inverter a situação, não por via dos métodos habituais, mas recorrendo antes ao falacioso processo de usar esses mesmos métodos como se de uma reacção popular se tratasse.
A manobra, mal executada, não resultou. Prontamente desmascarada pelos correspondentes internacionais e pelo próprio povo, acabou virando-se contra Mubarack.
A partir dessa altura, aos governos ocidentais só lhes restava deixar cair Mubarack, mantendo, no essencial, o regime com a promessa aos revoltosos de que a “abertura” seria negociada entre o sucessor do “rais”e os representantes da oposição.
Washington aparentemente apostou tudo nesta via (e a Europa, que estava disposta a apoiar “criticamente” Mubarack, não teve outro remédio senão ir atrás, embora contrariada), parecendo até disponível, face ao impasse criado, para promover ou incentivar um golpe militar “coordenado” por gente do regime que, assegurando a ilusão da mudança, controle a “transição”.
Mubarack, contando para já com o apoio implícito do exército, parece ter outra estratégia: deixar apodrecer a situação por mais alguns dias na tentativa de, por óbvias razões de subsistência, circunscrever a revolta a um pequeno número de resistentes, forçando os representantes da oposição a dialogar sem grande mobilização popular.
Trata-se provavelmente de uma estratégia arriscada, em princípio, condenada ao fracasso, não apenas por em países como o Egipto a desmobilização de quem muito pouco tem a perder ser mais difícil de conseguir do que na Europa, mas também porque sempre seria possível à oposição retomar a mobilização popular com relativa facilidade.
No essencial, o que no imediato se joga no Egipto é saber quem faz a “transição”: o regime (preferencialmente, sem Mubarack), enquadrando-a, orientando-a e controlando a sua execução; ou a oposição, sem outro enquadramento que não seja o que resulta do entendimento entre as várias facções que a compõem?
A América e agora, por arrastamento, também a Europa, põe todo o seu peso na primeira hipótese.
Mas há outros actores, alguns já entraram em cena, outros anunciaram a entrada, que apostam na segunda solução, sendo ainda cedo para se perceber como as coisas vão evoluir. No entanto, é desde já óbvio que, por razões não coincidentes, o Irão, o Hamas, o Hezbollah, a Turquia e a Rússia preferem a segunda via.
O impasse na revolta popular do Egipto volta a colocar na ordem do dia algumas das mais elementares máximas revolucionárias que, depois das transformações ocorridas na Europa do Leste, em fins da década de 80 do séc. passado, muitos julgavam ultrapassadas: a tomada do poder sem ataque e controlo dos seus centros nevrálgicos.
É possível tomar o poder pacificamente? Parece que não. O exemplo da Europa de Leste não é repetível. Em primeiro lugar, ele ocorreu em países que na realidade não tinham qualquer identificação com o socialismo (salvo a Checoslováquia), a maior parte deles era fascista, tinham apoiado Hitler e lutado a seu lado, e todos haviam, pura e simplesmente, sido ocupados em consequência da derrota militar da Alemanha. Tudo, portanto, condições para que, uma vez estancada, por razões externas, a fonte de coerção, os regimes caíssem uns a seguir aos outros sem resistência. E a própria União Soviética, que se foi gradualmente desagregando na sequência de um lento mas progressivo processo de transformação, também caiu sem luta por razões muito específicas que têm a ver com a “natureza última” do regime. Uma vez questionada, a partir de cima, a eficácia do modelo e defendida a sua substituição por algo que ninguém conseguia compreender claramente o que fosse, estavam criadas as condições, ao fim de cinco anos de permanente questionamento do dito modelo, para que o regime caísse pacificamente. Mas o que em última instância, num momento de crise, determinou a queda (e a desagregação) pacífica foi a “natureza última” do regime, ou seja, a ausência de propriedade privada, a fonte última de todos os conflitos!
No Egipto tudo é diferente, muito diferente. O regime não cairá pacificamente, nem haverá neutralidade das forças armadas. De facto, o impasse não resulta da posição de Mubarack, mas daquilo a que erradamente se chama a “neutralidade” das forças armadas egípcias. Mantendo-se estas aparentemente à margem do conflito, mas controlando e protegendo os centros nevrálgicos do poder, não é de esperar a queda do regime por via de manifestações pacíficas, por mais multitudinárias que elas sejam, tanto mais que a ditadura também é apoiada por largas camadas que dela dependem económica, social e politicamente. Camadas que, por terem muito a perder, estão na disposição de a defender.
O mais provável, portanto, é que, não tendo o povo pelo seu lado as forças armadas ou uma parte significativa delas, acabe por ser Mubarack, ou a sua gente, a fazer a dita “transição”, muito orientada, em última instância, pelas conveniências do próprio regime e de Washington. Provavelmente haverá alguns progressos, mas tudo ficará muito aquém das expectativas. E não há pior derrota do que a vitória que cria a ilusão de mudança, deixando, no essencial, tudo na mesma.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

ANGOLA - 4 DE FEVEREIRO DE 1961

50 ANOS

Há 50 anos começou em Angola a luta armada. Pouco mais de uma centena de patriotas angolanos, debilmente armados, lançaram em Luanda um ataque contra a Casa da Reclusão Militar, a cadeia da PIDE no Bairro de S. Paulo, uma esquadra da PSP e a Emissora Oficial de Angola. O ataque, apesar de ter sido desencadeado num quadro político relativamente convulso – o desvio do Santa Maria duas semanas antes e a luta dos partidários de Lumumba pelo seu regresso ao poder –, parece ter constituído uma relativa surpresa para as forças coloniais que não esperariam a “contaminação” em Angola dos agitados acontecimentos do Congo.
Sem esquecer a brutalidade da repressão que se seguiu, sem menosprezar a tragédia da Guerra Colonial durante mais de uma dezena de anos, o que importa hoje comemorar, 50 anos depois, é o papel pioneiro e simbólico do 4 de Fevereiro nas lutas de Libertação Nacional de Angola, da Guiné-Bissau, de Moçambique e da importância que todas elas acabaram por ter na derrota da ditadura em Portugal, em 25 Abril de 1974.
A descolonização e as lutas de libertação nacional que a determinaram constituem um marco fundamental na história do género humano – uma conquista civilizacional memorável, mas a luta do Homem pela sua libertação continua. E sempre continuará por mais impossível que conjunturalmente possa parecer alterar o rumo das coisas.

OS ESCLARECIMENTOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA



AINDA A “CASA DA COELHA” E NÃO SÓ

A notícia ontem publicada pelo jornal “Publico” sobre a “Casa da Coelha” dá conta, a propósito do cálculo da sisa, de uma situação muito mais complicada do que aquela que aqui se tinha previsto.
No post que aqui se escreveu afirmava-se que a sisa de que falava o esclarecimento da Presidência da República só poderia resultar de uma avaliação posterior à permuta, embora anterior a 1 de Janeiro de 2001.
E assim foi, com a grave diferença de a avaliação a posteriori ter incidido não sobre o projecto de construção efectivamente realizado, mas sobre um outro bem diferente em área e em valor.
Tudo isto, mais as questões que aqui colocámos, cuja importância fica reforçada por esta descoberta, são questões graves, muito graves. E toda a gente percebe porquê.
Todavia, a gravidade maior resulta do modo como a Presidência da República lida com os factos quando deles pretende dar conhecimento público, bem como da interpretação que por via deles pretende veicular. É que desta perspectiva a questão deixa de ser um assunto do cidadão Cavaco Silva, para se transformar numa questão instituciona
Com esta é a terceira vez que a Presidência da República publica esclarecimentos insuficientes ou incorrectos relativamente a factos que têm a pretensão de esclarecer, umas vezes por omissão de factos relevantes, outras por errada interpretação dos factos descritos. E como tudo isto é feito com tanta falta de inteligência, com recurso a raciocínios tão logicamente errados, com tão graves falhas argumentativas, ninguém, minimamente preocupado com o futuro deste país, pode deixar de se interrogar sobre as tão auto-elogiadas capacidades de quem está no vértice do sistema político português.
Em assuntos a que o Presidente da República deu pessoalmente tanta importância, quer por iniciativa sua (caso das escutas) quer por pressão da opinião pública (acções da SLN e Casa da Coelha), impossível será deixar de associar o seu nome ao que nesses esclarecimentos vem escrito e ao modo como vem escrito.
E não é preciso dizer mais nada…

QUEM FAZ CORRER LACÃO?


ALGUÉM ACREDITA QUE LACÃO CORRE SOZINHO?

Não é engano: o título é mesmo o que lá está e não “O que faz correr Lacão?
Lacão lançou o debate da revisão da lei eleitoral que tem como ponto forte a redução dos deputados para o mínimo previsto na Constituição.
Quando esta norma foi introduzida na Constituição, na IV Revisão Constitucional, em 1997, um conhecido “independente”, apoiante indefectível de José Sócrates, à época deputado independente pelo PS, traído por Guterres na condução da Revisão Constitucional que, em princípio, deveria ter coordenado, publicou, finda esta, um artigo num jornal diário sobre o que era aceitável e o que era na revisão efectuada.
Um dos pontos que lhe mereceu uma crítica mais contundente foi a introdução na Constituição da nova redacção do artigo 148.º, que estipula o número de deputados entre um mínimo de 180 e um máximo de 230.
Segundo o autor do artigo, a redução do número de deputados seria inaceitável, primeiro, porque não havia, comparativamente, sobre-representação em Portugal; e depois, porque, mantendo-se a representação proporcional segundo o método da média mais alta de Hondt, ela penalizaria fortemente os pequenos partidos, empurrando-os para uma sub-representaçao que poderia tornar-se perigosa para o sistema.
Todavia, o mais interessante é que a crítica era feita na convicção, ilustrada pela experiência, de que a introdução no texto constitucional daquele mínimo iria dar lugar a uma forte pressão sobre o PS, à qual este, mais tarde ou mais cedo, acabaria por ceder. Ou seja, a ideia do autor do artigo era a de que sem esta "abertura" constitucional o PS ainda seria capaz de resistir, mas desde que essa possibilidade estivesse admitida na Constituição era certo e sabido que não resistiria.
Sem curar de saber qual a posição que o autor desta crítica hoje perfilha (o que não deixará de ser interessante averiguar), o que desde já se pode dizer é que ele se enganou: não foi o PSD que apresentou a proposta, foi um Ministro do PS: o Ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão.
O grupo parlamentar do PS, pela voz de Assis, líder da bancada, já veio dizer que a questão nem sequer se põe. Ora, como quem faz as leis são os deputados, o assunto está naturalmente arrumado: PS, CDS, BE e PCP são contra, logo o PSD não tem deputados para aprovar a lei sozinho.
Mas será mesmo assim?
Lacão, como se não tivesse ouvido Assis, insiste, envia uma carta ao grupo parlamentar do PSD para iniciar a discussão do assunto e escreve um artigo num jornal para abrir o debate público.
Silva Pereira, em nome do Governo, com voz pausada, sem a menor ponta de irritação – aquela de que costuma dar provas quando faz desmentidos ou contestações a sério – limita-se a dizer que a questão não consta do programa do Governo.
Então será que Lacão deixou de ser Lacão? Até prova em contrário ninguém acredita…

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A RTP, A MÁRCIA E O EGIPTO



UMA VERGONHA

Ontem a RTP entrou em directo da “Praça da Libertação” (Praça Tahrir) para mostrar o que se estava a passar. Tinha enviado para lá uma senhora, chamada Márcia Rodrigues, conhecida por ter “estagiado” durante anos numa das “democracias” plutocráticas da Europa, muito presente no centro europeu para apoiar com as suas reportagens o que de mais reaccionário por lá se passasse.
Agora mandaram-na para o Egipto e ontem lá estava entre os “apoiantes” de Mubarack, eufórica, a entrevistá-los e a mostrar ao mundo da RTP a “sua justa luta”.
As cadeias noticiosas que estavam a transmitir em directo (CNN, Sky News, France 24, BBC Word, Aljazeera, pelo menos, estas) explicavam aos telespectadores, com base nas informações prestadas pelos jornalistas egípcios e pelo povo, quem eram os “apoiantes” de Mubarack.
Pois a senhora Márcia, entusiasmada, no meio dos “bufos”, dos “pides” e dos “legionários” do Mubarack, foi incapaz de nos dizer quem eles eram. Nem mesmo depois de os ter deixado!
É uma vergonha. Mas não é caso único. Se bem se reparar, com excepção do Carlos Fino em Bagdad (excepção que lhe ia custando a vida), todos os correspondentes ou enviados especiais da RTP ao estrangeiro são sempre do mais “alinhado” que há. Em todo o lado, seja em Washington, em Madrid, em Berlim, em Londres, no Rio de Janeiro ou em Bruxelas. Ou reproduzem os pontos de vista dos representantes da plutocracia ou divulgam acriticamente os mais vulgares lugares comuns, sendo absolutamente incapazes de apresentar uma informação objectiva, descodificada, numa palavra, audível. Pior do que isso é quando militam abertamente por um dos lados, sempre o mais à direita.
É curioso observar que os correspondentes residentes (aliás, mais do que residentes, alguns são vitalícios…) quando, no país em que estão, criticam o governo em funções – o que é raro – é sempre para defenderem uma posição mais à direita, como é o caso de Madrid, do Rio de Janeiro e de Washington.
E já agora que vem a propósito: qual o critério de escolha destes “senhores”? São escolhidos por concurso ou por compadrio? E qual o tempo de duração das comissões? Tem limites ou são nomeações vitalícias?
Algumas parecem vitalícias, mais vitalícias do que a do Vasco Lourinho em Madrid, fundador do Jovem Portugal, mandado para a capital espanhola por Salazar…por ser demasiado fascista!
ADITAMENTO

Entretanto, Márcia corrigiu: tomaram-na por uma repórter igual aos outros, apoiante da Revolução, mudaram-na de hotel e ela hoje já reconheceu quem eram aqueles manifestantes pró Mubarack. Mais vale tarde do que nunca, mesmo que seja uma mudança conjuntural.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O ESCLARECIMENTO DE CAVACO SILVA


O QUE FALTA ESCLARECER

O esclarecimento que Cavaco Silva publicou hoje (1 de Fevereiro) no site da Presidência da República sobre a permuta de uma vivenda por um terreno esclarece muito pouco.
Em primeiro lugar, é muito discutível que este esclarecimento deva ser publicado no site oficial da Presidência da Republica. O negócio que suscita dúvidas foi realizado pelo cidadão Cavaco Silva, quando não exercia funções oficiais, e o que estava, e continua a estar, em dúvida, depois de se ter tomado conhecimento da aquisição a baixo preço das acções da SLN, é se aquele negócio, realizado antes desta compra, envolve ou não algum favorecimento, para além dos problemas fiscais que pudesse ter.
A questão do favorecimento, das prendas, contrariamente ao que há dias disseram no tribunal ex-altos responsáveis políticos portugueses, é uma questão da máxima importância para quem exerce cargos políticos. E tanto mais importante, quanto mais elevados são esses cargos. É que manda a boa educação que as prendas sejam retribuídas por quem as recebe. Se a retribuição for feita pelo cidadão privado que as recebe, à custa do seu património, ninguém tem nada com isso. Mas a questão muda de figura se a retribuição se traduzir num favor político, pequeno ou grande.
De facto, como qualquer pequeno jurista sabe, a prenda tanto pode ter um intuito altruístico, de pura generosidade, como pode ser feita por interesse (para conseguir vantagens muito superiores da outra parte) ou até ter intuitos malévolos (comprometer o beneficiado). Se qualquer pequeno jurista sabe isto, também deveria sabê-lo, por maioria de razão, um grande político!
Essa a razão, porque a questão das prendas é importante no desempenho de cargos políticos.
Cavaco Silva no esclarecimento que publicou afirma que pagou sisa e indica o montante em euros da importância paga. E aqui começam, melhor, recomeçam as dúvidas.
O negócio que consta da escritura é uma permuta de uma vivenda (a Mariani) por um terreno na Praia da Coelha, ambos avaliados em 27 mil contos, moeda corrente à época da transacção.
Foi nisto que consistiu o negócio ou foi antes, como esclareceu F. Fantasia, sócio da sociedade proprietária do terreno, a troca de uma vivenda por outra?
No primeiro caso, as partes avaliaram os bens trocados no mesmo montante, não tendo pago, consequentemente, qualquer sisa à data da realização do negócio. A sisa somente seria devida se os bens trocados fossem de diferente valor, cabendo o seu pagamento ao adquirente do bem mais valioso, pela diferença.
A tese que se depreende do esclarecimento, tendo também presente o texto da minuta, é que o bem adquirido por Cavaco Silva na aludida permuta valia muito mais do que aquele que ele deu em troca, tendo a sisa incidido sobre a diferença de valor entre os bens trocados. Ou seja, a sisa não foi paga antes da realização da escritura, como obrigatoriamente acontecia nos contratos de compra e venda, mas depois de realizada a troca, seguramente por a avaliação das finanças não coincidir com a dos contraentes que, como se já disse, atribuíram aos bens permutados o mesmo valor. Todavia, esta avaliação só terá sido feita depois de 2001, já que o montante indicado por Cavaco Silva vem expresso em euros, moeda que apenas se tornou corrente depois daquela data.
Mas aqui surge outra questão, que resulta do conhecimento de factos notórios: a essa data já no terreno estava implantada uma moradia habitada por Cavaco Silva.
Então, a sisa é paga sobre quê? Sobre o terreno permutado? Ou sobre o terreno mais a casa entretanto construída? Obviamente ninguém acredita que o terreno valesse assim tanto mais que a moradia dada em troca. Logo, somente poderia recair sobre ambos: terreno e casa.
Mas como recair sobre a casa se a única coisa que Cavaco Silva adquiriu pela escritura foi o terreno? O que se depreende é que entre a data da celebração da escritura e o pagamento da sisa se edificou naquele terreno uma casa. Resta, porém, saber á custa de quem ela foi construída. Se foi construída à custa de Cavaco, a que título paga ele a sisa?
Pode haver uma explicação: é o negócio que consta da escritura não ter sido o efectivamente realizado. É o declarado, mas não o realizado. O realizado é outro. Quando há uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada e essa divergência assenta num acordo das partes, pode haver uma simulação, se simultaneamente tiver havido a intenção de enganar terceiros. Enganar terceiros não é sinónimo de prejudicar terceiros. De facto, a simulação tanto pode ser fraudulenta (animus nocendi), como não ser (animus decipiendi).
A questão que está por esclarecer é, portanto, saber o que realmente foi trocado: casa por casa ou casa por terreno. Se a troca tiver sido casa por casa, como tudo indica que foi, então o permutante do terreno, além da transmissão efectuada por mero efeito do contrato, ficou ainda com a obrigação de construir a casa para Cavaco Silva.
E num caso destes tanto pode haver simulação, como um simples negócio fiduciário.
Se a obrigação de construir era realmente do permutante do terreno é natural que o fisco, tendo mais tarde detectado negócio verdadeiro, tenha exigido a sisa. E assim se tenha ressarcido do imposto que realmente lhe era devido.
Só que este problema levanta outro: a obrigação de construir em que termos impende sobre o permutante do terreno? É ele que suporta a totalidade das despesas de edificação? Caso em que teria havido um negócio misto: permuta e doação ( e neste caso não haveria lugar ao pagamento de sisa, mas de imposto sobre doações). Ou apenas suporta os custos da edificação até à concorrência do valor do bem para ele transferido, cabendo a diferença a Cavaco Silva? Caso em que, como já se disse, não haveria lugar ao pagamento de qualquer sisa.
Esta uma dúvida – uma dúvida muito importante que o esclarecimento da questão fiscal não resolve – que somente Cavaco Silva pode esclarecer.
É uma dúvida importante, potenciada pelo posterior negócio das acções, porque não é indiferente ter havido doação (nos termos referidos) ou não.
Em conclusão: para as coisas ficarem clarinhas como água, ainda há muito por esclarecer.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

UM VENTO DE MUDANÇA, DO MEDITERRÂNEO AO GOLFO, VARRE A OPRESSÃO



PARA JÁ, SITUA-SE A SUL

A revolta de Tunes, que rapidamente se estendeu a todo o país, a luta gloriosa da juventude egípcia, no Cairo, em Alexandria, no Suez, enfim, por todo o lado, travada em condições muito difíceis contra forças apetrechadas com os mais sofisticados meios de repressão, o seu alastramento gradual aos demais países árabes do Mediterrâneo e do Golfo, são antes de mais a vitória de quem decide tomar o futuro nas próprias mãos e resolve iniciar a luta no campo onde primeiramente ela tem de ser travada: contra aqueles que na sua própria terra os oprimem, exploram e fazem do ofício de governar uma actividade cleptocrática!
O resto virá com o tempo e dependerá dos comportamentos e atitudes que forem sendo tomados perante o facto consumado…
Mas as revoltas do povo árabe contra os regimes opressores, apoiados pela hipocrisia ocidental, são também a mais espectacular falência das políticas euro-atlânticas no Mediterrâneo e no Golfo, do diálogo euromediterrânico e de todas essas tretas inventadas pelos ocidentais para manter no poder quem por lá faça o seu jogo e garanta a satisfação dos seus interesses, com completo desprezo pelas políticas internas, desde que, quem governa, controle a situação e mantenha a “estabilidade”, simples sinónimo de acção política, no essencial, concordante com os interesses euro-americanos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, de Teerão a Riad, de Riad ao Cairo e do Cairo a Rabat tudo foi feito para manter no poder, ou lá colocar, aqueles que continuassem a servir os interesses ocidentais, independentemente das consequências que o exercício desse poder pudesse ter para as respectivas populações.
E em quase todo o lado o objectivo principal foi alcançado – primeiro, garantir o acesso às fontes energéticas em condições privilegiadas; mais tarde, neutralizar qualquer tipo de oposição institucional a Israel; por fim, eliminar os islamistas da vida política e estancar ou limitar a emigração.
Este o grande programa de “direitos humanos” institucionalizado pela “pax occidentalis” no Norte de África e no Médio Oriente.
Mas nem tudo correu sempre bem: no Irão, que não é árabe, mas no essencial sujeito às políticas para o Médio Oriente, a eliminação política de Mossadegh pela CIA na década de cinquenta, por influência determinante dos ingleses, preocupados com a violação dos direitos humanos na Anglo Iranian Oil Company, nacionalizada pelo governo nacionalista de Mossadegh, levou a uma intervenção cada vez mais determinante de Reza Pahlavi na condução do governo iraniano e à implantação de uma feroz ditadura que mantinha grande parte do povo à margem das riquezas nacionais. Cerca de três décadas mais tarde, o povo unido à volta daqueles que mantinham mais condições para se opor à ditadura, os ayatolas, num e movimento popular de grande envergadura neutralizou um dos mais poderosos exércitos do mundo, expulsou o Xá e a oligarquia que o rodeava, acabando por implantar uma República Islâmica, a qual, sob a influência de Khomeiny, se transformou num regime conservador, inspirado no islamismo reaccionário, sob o controlo político do clero.
Mais uma vez foi a assolapada paixão dos ocidentais – americanos e ingleses - pelos “direitos humanos” e pela “democracia” que levou ao derrube de um regime democrático, laico, liderado por um homem de formação ocidental, antiimperialista, que lutava pelo restabelecimento da dignidade de uma pátria milenária. De tudo a CIA e os ingleses se serviram para o derrubar, desde o apoio aos ayatolas reaccionários, cuja acção Mossadegh havia circunscrito ao puro plano religioso, até à compra e suborno de criminosos de direito comum, passando pela cumplicidade de sectores influentes da polícia e do exército. Mossadegh, forte nas suas convicções e seguro do apoio popular, não acreditando na traição americana, nunca tendo usado a força para neutralizar os traidores internos, quando o podia ter feito, acabou sendo vítima da sua própria ingenuidade.
O que se passou depois do derrube do Xá até hoje é conhecido e não merece muitos comentários. Nunca os ayatolas teriam chegado ao poder se não tivessem tido, como tiveram, a possibilidade de capitalizar a seu favor o descontentamento popular contra a ditadura e a polícia política, bem como o ressentimento contra a conspiração anglo-americana, principalmente americana, já que quanto aos ingleses não acalentavam qualquer ilusão.
No Iraque foi o que se viu. A mesma acrisolada paixão pelos “direitos humanos” e pela “democracia” levou Bush, Blair e seus lacaios a invadir um país, que até já tinha sido aliado dos americanos na guerra contra os ayatolas, transformando-o num campo privilegiado de expansão e de recrutamento do fundamentalismo islâmico, onde, mais uma vez, a grande vítima é o povo indefeso que sofre as consequências de um acto criminoso promovido pela hipocrisia ocidental.
E os exemplos podiam multiplicar-se, desde a Arábia Saudita a Marrocos, passando pelo Egipto, tudo o que de pior imaginar se possa, todos os ditadores, autocratas, cleptocratas, foram apoiados, mantidos no poder, favorecidos, umas vezes mais pelos europeus, principalmente a França, mas também a Espanha, outras pelos americanos, sempre acolitados pelos ingleses, primeiro com o pretexto de que os respectivos países poderiam cair na “órbita soviética”, mais tarde no “fundamentalismo islâmico”, mas na realidade tudo feito, sempre e só, em defesa de interesses egoístas, às vezes até conjunturais, com completo desprezo pelos direitos e legítimos interesses das respectivas populações.
Há dois anos, Obama acendeu uma pequenina luz no discurso do Cairo, abrindo caminho para o que parecia poder ser um relacionamento diferente do Ocidente com o mundo árabe. Mas logo os grandes interesses plutocráticos, o lobby judaico e o completo alheamento europeu fizeram com o discurso não passasse disso mesmo. Um simples discurso, sem consequências.
Porém, a marcha inexorável da História faz com que a hegemonia ocidental, seja pelo poderio económico de novos concorrentes, seja pela luta dos povos oprimidos, vá gradualmente enfraquecendo, acabando inevitavelmente por se esbater. O que se está a passar no Mediterrâneo sul e logo a seguir no Golfo será, no seu sentido mais profundo, uma manifestação desse inexorável movimento que está a transformar o mundo. Incapaz de aceitar relações paritárias, de cuidar da defesa dos seus interesses sem ser num quadro hegemónico, esta visão ocidental do mundo, iludida pela força bélica que julga dispor, na realidade incapaz de compreender as simples evidências, caminha para um triste, mas inevitável, fim.
Ainda agora, no estertor dos regimes ditatoriais opressores, conhecidos coveiros do mundo ocidental – Blair, Hillary Clinton, Sarkozy, Merkel e tantos e tantos outros, alguns nem citados merecem ser pela pequenez da sua influência – multiplicam-se na prodigalização de conselhos que permitam manter no poder aqueles a que chamam “líderes árabes moderados”.
Que vergonha, que hipocrisia, que nojo suscitam estes políticos que nem sequer hesitam em recorrer a um dos conceitos fundadores da democracia ocidental, conquistada pelo povo, a moderação, na concepção montesquiana do termo, para, em nome dos seus inconfessáveis interesses, fazer a defesa do seu contrário. Para eles a “moderação”, e tudo o que o conceito implica na filosofia política ocidental, não passa de um instrumento para usar de acordo com as conveniências, sempre com total desprezo pela situação daqueles que deveriam ser os grandes beneficiários do poder moderado no sentido mais amplo que o conceito abarca!
Por isso, não há outra atitude que não seja a de estar incondicionalmente ao lado dos povos que do Mediterrâneo ao Golfo lutam pela sua dignidade contra os opressores internos e externos!
Essa luta acabará por favorecer, a Norte, todos os que lutam por um mundo diferente!