POR QUE NÃO, PARA COMEÇAR, CESSAR OS PAGAMENTOS INDEVIDOS?
Corre com grande insistência nos media uma campanha aparentemente tendente a responsabilizar (parece que criminalmente) os grandes responsáveis políticos pelo estado das contas públicas do país.
Esta campanha é, em parte, apoiada por gente com boas intenções que se sente brutalmente atingida nos seus direitos pelas medidas tomadas pelo actual Governo e procura por esta via uma forma de retribuição que, embora se não traduza num ressarcimento dos prejuízos sofridos, pelo menos implicaria uma punição dos principais responsáveis pela situação por que estão a passar.
Por outro lado, a campanha é também alimentada pelos círculos do poder com propósitos claramente demagógicos, já que não há da parte deste Governo qualquer propósito de responsabilizar criminalmente quem quer que seja e muito menos instituir um regime jurídico que permita, no futuro, responsabilizar de modo mais objectivo os grandes responsáveis pelos erros (?), embustes (?), prejuízos (?) da governação.
Portanto, alinhar acriticamente nesta campanha é fazer em grande parte o jogo da direita mais reaccionária que alguma vez governou Portugal desde o 25 de Abril. Além de que, objectivamente, tal campanha serve de álibi ao Governo para actuar com a brutalidade com que o está fazendo, brandindo a todo o momento a justificação de que as medidas que está tomando resultam da “herança” que recebeu.
A verdade é que esta questão da responsabilização, por mais importante que seja, e independentemente das intenções com que é suscitada, dificilmente encontrará solução dentro do sistema vigente, como mais à frente se demonstrará.
Certamente que há entre nós graves problemas de governação cujas consequências acabarão por recair, mais tarde ou mais cedo, sobre quem trabalha, ora onerando gravosamente os seus rendimentos, ora limitando ou até eliminando os direitos adquiridos ao longo de anos com muita luta e sacrifício, como presentemente está a acontecer
Ora, estes “erros” (chamemos-lhe assim), não tendo todos a mesma natureza, têm contudo a mesma génese. Eles derivam em primeira linha do défice democrático das modernas sociedades capitalistas.
De facto, hoje a democracia não passa hoje de uma farsa. A democracia social está em vias de ser destruída. A democracia económica não existe. A democracia política está confinada aos actos eleitorais, cada vez mais levados a cabo num clima de completo constrangimento ideológico, que impede o aparecimento vitorioso de políticas verdadeiramente alternativas.
Por outro lado, as semelhanças entre o mandato proposto aos eleitores pelos candidatos e o efectivamente executado tendem a esbater-se cada vez mais por todo o lado – e não apenas aqui - como o demonstra a experiência desta “democracia representativa dos grandes interesses” dos nossos dias, sem que haja à disposição dos eleitores meios para obviar a tais consequências, nomeadamente pela via da revogação do mandato concedido. Aliás, os eleitos não são escolhidos pelo povo que aparentemente os sufraga, mas pelos aparelhos partidários, nalguns casos apenas pelas suas cúpulas, o que desde logo lhes retira qualquer réstia de independência.
Depois, tais “erros”, facilitados pelo “pelo clima político” gerado por estas democracias, acabam por ter todos ou quase todos a mesma origem – a pressão dos lobbies e a ligação dos grandes interesses ao financiamento partidário.
De facto, são poucos os “erros” que resultam de uma deficiente avaliação de quem governa. Pode acontecer, mas é raro.
O mais comum é que a despesa do Estado, o grande projecto, seja o resultado de uma forte pressão dos grandes interesses, nomeadamente do capital financeiro e das grandes empresas de construção civil (ou outras, consoante a natureza do projecto), que, pelos muitos meios de corrupção de que dispõem – principalmente o financiamento partidário e apoio politico quase incondicional ao governo de turno -, acabam a maior parte das vezes por impor o que pretendem fazer.
Esta situação comporta ainda, pelo menos teoricamente, duas variantes – uma é a de as obrigações e os direitos de Estado terem sido negociados e contratados numa base de relativa reciprocidade face aos direitos e obrigações da contra-parte; a outra, que é a típica da maioria esmagadora das parcerias público-privadas, é a de haver uma manifesta desproporção entre as prestações de ambas as partes a ponto de o contrato poder ser na maior parte dos casos qualificado de leonino.
Claro que isto não acontece por incompetência do Estado que tem ao seu dispor todos os meios para defender com razoabilidade os seus interesses, tanto mais que o processo de decisão passa (ou deveria passar) por várias instâncias de supervisão e controlo, mas por força de decisões políticas com propósitos e objectivos muito claros.
Perante este quadro haverá alguma hipótese de responsabilizar quem quer que seja pelos “erros” de governação?
Claro que não, enquanto as forças que se revezam no poder, embora politicamente diferentes, defendam, no essencial, os mesmos interesses – os interesses do sistema – e sejam permeáveis à corrupção, como necessariamente são, pela via do financiamento partidário, latamente entendido.
Pode a força política que ascende ao poder, depois de vários anos dele arredada, como agora acontece com a coligação de direita neoliberal, PSD/CDS, lançar múltiplas acusações contra quem a antecedeu, mas não o fará para responsabilizar quem quer que seja, nem para tirar as consequências que se impunham, mas antes e só para colher as vantagens políticas das insinuações e principalmente para encontrar nos actos passados uma excelente justificação para as políticas que pretende pôr em prática.
O caso das parcerias público privadas é paradigmático. Toda a gente sabe que as parcerias público privadas tal como foram postas em prática em Portugal são basicamente uma vigarice. Mesmo que haja uma ou duas excepções, a verdade que quase todas elas constituem negócios ruinosos para o Estado e simultaneamente muito lucrativos para aqueles que com ele contrataram.
Mas então, se houvesse um propósito sério de pôr cobro a isto, a primeira consequência não seria a renegociação imediata das condições acordadas? Mais: não seria uma revisão soberana dessas condições contratuais?
Claro que o objectivo é de pura chicana politica, mesmo quando apoiado no argumento jurídico da inalterabilidade dos direitos adquiridos.
Então, se uma parcela significativa dos ordenados dos funcionários públicos e dos reformados, que descontaram, durante uma vida de trabalho de várias décadas, para mais tarde terem direito a essas remunerações, pode ser confiscada por tempo indeterminado não podem os contratos leoninos das parcerias público-privadas ser soberanamente alterados com base na profunda desigualdade das prestações?
Claro que a gente conhece o direito dos contratos e muitas outras coisas, mas também conhece o direito à inalterabilidade do salário…
É por esta, e por muitas outras iguais a esta, que as pessoas vão ter de se convencer que nenhum destes problemas tem solução dentro do sistema que os criou. É preciso bani-lo e com ele os seus principais protagonistas. Não pode haver outro objectivo de luta…
1 comentário:
O penúltimo parágrafo sintetiza a falácia da argumentação dos defensores da "honradez do Estado", do Estado como "pessoa de bem" etc. etc. Já há muito me interrogo porque é que quem contesta as políticas de confisco dos salários (vulgo esquerda) não põe a nu esta flagrante dualidade de critérios.
LG
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