SOBRE A CIMEIRA
EUROPEIA
Por esta hora os dados já estão lançados, apesar de ainda se
não conhecerem os resultados oficiais do Conselho Europeu que hoje e amanhã se
realiza em Bruxelas.
Toda a gente diz que esta será a cimeira decisiva,
esquecendo-se que antes desta já houve outras dezanove cimeiras igualmente
decisivas sobre a crise do euro. Diz-se também que é o euro que está em causa e
que do seu fracasso resultará o fim da moeda única.
Tudo isto é muito importante mas nada disto é novo. Nem mesmo
o previsível fim do euro. Que o euro era uma moeda mal construída já há muito
se sabia, embora os primeiros oito, nove anos, da sua existência tivessem
mascarado essa incontornável realidade. Todavia, a partir do momento em que na
América rebentou a crise financeira, Outono de 2007, e as dificuldades de financiamento
se agravaram, as fragilidades do euro foram-se evidenciando com a passagem do
tempo a ponto de logo se perceber qual seria o seu mais que provável fim.
É preciso no entanto que se diga que a grande fragilidade do
euro não é de natureza técnica, não se trata de uma falha de “construção
técnica”, mas de natureza política. Mais: a falha de “construção técnica”, que agora
já quase toda a gente reconhece, tem a sua origem numa questão política e não
propriamente numa deficiente aplicação prática de conhecimentos teóricos.
O euro é uma construção política que obedece a duas ideias
contraditórias, quase antagónicas entre si. De um lado, a ideia francesa de que
somente uma moeda europeia poderia pôr fim à hegemonia económica alemã e à “tirania
do Bundesbank”. Do lado alemão, entre a quase impossibilidade de manter o marco
no quadro de uma Alemanha reunificada sem uma crispação de consequências
incalculáveis na Europa, principalmente com a França, e a adopção de uma moeda
comum, a Alemanha optou por se desfazer formalmente do marco, aceitando uma
nova moeda tanto quanto possível parecida com aquela que tão orgulhosamente simbolizava
o ressurgimento da "nação alemã".
A França, sem ter percebido completamente onde se metia,
acabou por aceitar a “construção da nova moeda” moldada pela Alemanha, como se
de uma vitória sua se tratasse, enquanto a Alemanha foi mantendo uma atitude relativamente
vigilante (como logo se depreendia pelo acórdão do TC que apreciou o Tratado de
Maastricht) que se foi intensificando, primeiro, à medida que ia ganhando consciência das
enormes vantagens que o euro lhe proporcionava e depois com o agravamento da
crise e das suas consequências.
Os demais países actuaram como é hábito neles. Os que tinham
a suas moedas e políticas monetárias estritamente ligadas ao Bundesbank – Benelux,
Áustria e Finlândia – entregaram-se como de costume nas mãos dos alemães de
acordo com a velha máxima de que o “ que é bom para eles também será bom para
nós”. A Inglaterra, como é seu hábito, sempre que “fatias” importantes de
soberania começam a ser opostas em causa, “caiu fora” e deixou essa coisa do
euro para os continentais. A Dinamarca e Suécia, aquela até mais do que esta,
raciocinaram ao contrário dos que tradicionalmente estavam ligados ao marco – “quanto
mais afastados estivermos da hegemonia alemã, melhor”. E não aderiram. A Irlanda
aderiu para fugir à hegemonia da libra esterlina convencida como sempre esteve,
desde que existe, que para ela nunca é bom estar do mesmo lado da Inglaterra,
mesmo que para isso tenha de escolher amigos indesejáveis. Depois vem os do Sul:
de todos os que alinharam, a Itália foi desde o princípio a que o fez com mais
reticências. Como membro fundador da “Europa” tinha muita dificuldade em ficar
de fora sem pôr em causa o projecto na sua totalidade. Desconfiada e sem
entusiasmo, acabou por aderir certamente convencida de que não seria o euro que
iria pôr termo às “especificidades italianas”. E ainda se está sem saber se
enganou já que no inevitável “confronto” do euro com a Itália é bem mais
provável que acabe por ser esta a manter-se tal qual é do que ser o euro a
impor-lhe uma nova “fisionomia”, mesmo que isso leve ao fim da moeda única.
Finalmente, vêm os Ibéricos e os gregos. Nos primeiros prevaleceu a “saloiice bacoca”
de que tinham de estar no “pelotão da frente”, embora com propósitos diferentes
de Portugal e Espanha, já tantas vezes caracterizados neste blogue –
sumariamente, a Espanha para reencontrar na Europa a liderança (ou a
co-liderança) perdida; Portugal por ver na Europa o seu novo “el dorado”. Com
dois anos de atraso e uma taxa de câmbio aparentemente mais favorável que a de
Portugal e a de Espanha, os gregos entraram com as “contas marteladas” na velha
ideia de Ulisses de que sempre acaba por vencer o que for mais astuto. Há depois
mais cinco que entraram muito mais tarde. Três deles são germanófilos de gema e
sentir-se-ão sempre bem do mesmo lado em que estiver a Alemanha; os outros dois
são ilhas mediterrânicas, uma delas muito ligada à Grécia, a outra à Itália. Se
a Grécia e a Itália estavam no sistema por que ficar de fora, podendo entrar?
Como se está a ver há aqui muito pouca economia, muita
política e nenhuma solidariedade. Só mesmo os ingénuos acreditaram que o euro
era a expressão da solidariedade europeia e um novo e decisivo factor de
integração e desenvolvimento económico.
Mas é preciso ser mesmo muito ingénuo para ter feito tábua
rasa do que se passou na crise monetária de 1992/93. Por esta época já os
países fundadores da União Monetária estavam ligados pelo Sistema Monetário
Europeu (SME) que em 1987 substituiu a Serpente Monetária, a qual, tal como também
veio a acontecer ao SME, soçobrou por não ter sido possível manter um sistema
de câmbio fixo (com pequenas flutuações) das principais moedas europeias. O SME
que assentava no mesmo princípio, embora com algumas diferenças relativamente à
Serpente Monetária, por exemplo, a pequena flutuação permitida já não ocorria
relativamente a cada uma das outras moedas, mas relativamente a um cabaz de
moedas cuja expressão era o ECU – uma moeda virtual; e o estabelecimento de um
mecanismo de solidariedade com vista à defesa recíproca das respectivas moedas
integrantes do sistema, o SME, dizíamos, não resistiu aos movimentos especulativos de 1992/93,
os quais, diga-se sem rodeios, só tiveram lugar (só poderiam ocorrer) por a
taxa de câmbio de algumas moedas, quase todas, com excepção obviamente do
marco, ser completamente irrealista. Tratava-se de moedas que, com a passagem do
tempo, a fixidez dos câmbios ia sobrevalorizando tornando-se insustentável aos
respectivos bancos centrais aguentar o seu valor. É claro que as culpas foram
imputadas à Alemanha, por se ter recusado a baixar a taxa de juro (que ela
subira para conter os efeitos inflacionistas da reunificação) e por se ter
recusado a comprar ilimitadamente francos franceses para impedir a sua queda.
Estes factos são verdadeiros, mas o seu enquadramento
exigiria largas explicações que neste contexto não podem ter lugar, ficando
apenas como referência o facto de tudo se ter agravado por a direita francesa
(Balladur) recém-chegada ao poder (Março de 1993), ainda com Mitterrand na
presidência, ter arrogantemente tratado a Alemanha como se se tratasse de um país
sem soberania monetária. A Alemanha, já politicamente fortalecida pela
reunificação, reagiu como se impunha, deixou de comprar francos franceses e a
moeda francesa afundou-se. Da taxa de câmbio quase fixa passou-se para uma
margem de flutuação de até 15%, o que na prática correspondia à certidão de
óbito do SME. Já antes do franco, outras
moedas tinham sido atacadas – a lira, a coroa dinamarquesa, a libra esterlina,
a peseta e até o escudo – tendo os respectivos governos, para impedir o
afundamento da moeda e o colapso da economia, procedido a várias desvalorizações
e abandonado o SME.
Portanto, e em conclusão, com os pressupostos políticos da “Europa”
a moeda única não passa de uma ilusão. Os mais fracos, com a Grécia, a Irlanda
e Portugal, podem manter essa ilusão porque não contam nada, mas quando a
questão se puser a sério para a Espanha, como já se está a pôr, para a Itália
ou para a França, o euro acabará.