sábado, 12 de setembro de 2009

A SOCIEDADE SEM CLASSES



SEGUNDO O SOCIÓLOGO VPV

A grande aspiração de Freitas do Amaral nos idos de 1975 está, segundo Vasco Pulido Valente, finalmente concretizada: a construção de uma sociedade sem classes.
No estilo leve que o caracteriza sempre que trata fenómenos sociais do presente ou do passado, Vasco Pulido Valente, comentando o debate entre Jerónimo de Sousa e MF Leite, decretou a sociedade sem classes, pois, se existissem “classes”, Jerónimo de Sousa “não perderia um minuto a discutir com Ferreira Leite o investimento público ou o défice do Estado, pela razão simples de que Portugal e a Europa estariam perto de uma sublevação”. Esta afirmação, a par de outras, como a que garante que nem Marx, nem Engels, nem Lenine alguma vez definiram o que fosse uma classe, requer alguns esclarecimentos e explicações.
Certamente que o conceito de classe não encontra uma definição que recolha o consenso de todos aqueles que estudaram o fenómeno, mas isso de modo algum significa que as classes não existam. Tanto assim que há aspectos em que todos estão de acordo, como o facto de as classes serem uma consequência das desigualdades sociais. Mas nem todas as desigualdades sociais são relevantes para a caracterização de uma classe social: as desigualdades naturais, bem como as casuais, não são relevantes, salvo naqueles casos em que a sociedade elege tais diferenças como critérios de atribuição de diferentes papéis sociais.
Mas se nem todas as desigualdades são relevantes, também não basta uma desigualdade relevante para que haja uma classe social: é preciso que essa desigualdade se reproduza, que passe de uma geração para outra. Se, em teoria, qualquer indivíduo puder ocupar qualquer posição social ou desempenhar qualquer papel na sociedade, independentemente da sua condição social de origem, podem, de facto, não existir classes se essa mobilidade social for sociologicamente (i.e., cientificamente) comprovada pelos números. Se o filho do operário tiver proporcionalmente ao seu peso social a possibilidade de se tornar proprietário dos meios de produção e se os filhos destes, de acordo com os mesmos critérios, respeitando as regras de proporcionalidade, tiver a probabilidade se tornar-se operário, e assim sucessivamente para os camponeses, os dirigentes, etc., poder-se-ia dizer que, apesar de não estarmos perante uma sociedade igualitária, já que cada um dos seus membros continuaria a ser remunerado de acordo com o papel social que desempenha, haveria uma igualdade de partida que tenderia a eliminar quase completamente a reprodução social de origem.
Só que esta sociedade não existe, nem nunca existiu, logo continua a haver desigualdades sociais geradoras de classes sociais. Mas ainda falta acrescentar o seguinte: para estarmos na presença de uma classe verdadeira e própria, as desigualdades sociais acima referidas não podem ser sancionadas por lei. Por isso é que quando se diz que todos os cidadãos são iguais perante a lei e que ninguém pode ser discriminado em função do sexo, religião, raça, situação económica, etc., não se quer com este princípio afirmar que se esteja na presença de uma sociedade igualitária ou sequer de uma sociedade com igualdade de condições à partida, mas de uma sociedade em que tais diferenças não gozam de qualquer reconhecimento jurídico formal.
É exactamente pelas características acabadas de referir que as classes se distinguem das castas e dos estados ou ordens medievais. A pertença a uma casta depende do nascimento, tal como a inclusão numa ordem ou num estado, com a diferença de que do estado ou da ordem se pode sair por via de um elemento de natureza formal: a concessão de um título pelo monarca.
A classe tal com hoje é entendida – agrupamentos que emergem duma estrutura social desigual - é uma realidade saída da revolução burguesa e do advento das sociedades capitalistas. De uma sociedade que formalmente não reconhece diferenças e a todos considera iguais.
A revolução burguesa com a sua doutrina igualitária, baseada na cidadania, eliminou juridicamente o papel social antes desempenhado por ligação do homem á terra, e afirmou os valores igualitários e universalistas do dinheiro, bem como a sua fungibilidade, criando uma sociedade nova, completamente distinta das ordens medievais.
E Marx foi quem primeiramente aprofundou o conceito teórico de classe e quem até hoje mais o estudou a ponto de sobre ele ter construído uma teoria revolucionária que perdura até à actualidade. Logo, é errado afirmar que Marx nunca definiu o conceito de classe, a menos que com essa afirmação se queira fazer referência uma definição escolástica de classe.
O outro erro de VPV, quando afirma que se hoje houvesse classes, Jerónimo não teria perdido um minuto com MFL e Portugal e a Europa estariam perto de uma sublevação, resulta da confusão entre classe e consciência de classe ou de classe em si e classe para si, como a seguir veremos.
Para Marx as classes são a expressão do modo de produção da sociedade. Numa sociedade em que o modo de produção capitalista exista em estado puro, apenas haverá duas classes – a burguesia, detentora dos meios de produção, e o proletariado, proprietário da força de trabalho que terá necessariamente que pôr no mercado para viver. Nenhuma sociedade, porém, existe com esta configuração. Há sempre elementos que vem do modo de produção anterior, outros que antecipam transformações, outros ainda provenientes de modos de produção historicamente dominantes. Dito de outro modo: há vários modos de produção na sociedade contemporânea que coexistem com o modo de produção capitalista, que é o modo dominante. A esta diversidade de modos de produção chama Marx formação social. Exactamente porque os modos de formação comportam vários modos de produção é que existem outras classes além das classes antagónicas (burguesia e proletariado), como os camponeses, os trabalhadores independentes, o subproletariado, entre outras - classes que estão permanentemente presentes na teorização e na praxis marxista na chamada “política de alianças”.
E o que é importante perceber na análise marxista, compreensão que o artigo de VPV manifestamente não alcança, é que a existência das classes baseia-se nas diversas posições que as pessoas ocupam no processo produtivo, enquanto o antagonismo existente entre elas situa-se no plano político. Estes dois níveis estão ligados, mas não coincidem. A base económica do antagonismo só atinge dimensão política quando ultrapassa o simples conflito personalizado e se transforma num conflito geral entre patrões e trabalhadores. Aliás, Marx diz: “Os indivíduos só formam uma classe quando estão comprometidos na luta comum contra outra classe”. A identidade de interesses não é suficiente para fundamentar a existência de uma classe, é preciso que nasça uma comunidade; é preciso mais do que isso, é preciso que nasça a consciência de classe. Onde essa consciência não existir haverá uma classe em si (an sich), mas não uma classe para si (für sich).
Marx explica muito bem esta diferença “Na Guerra Civil em França” e no “18 de Brumário de Napoleão Bonaparte”. Os camponeses franceses nunca conseguiram agir como uma classe, apesar da identidade de interesses, exactamente porque as condições do processo produtivo os isolam uns dos outros e os põem em contacto directo e familiar com o patrão. Na indústria, pelo contrário, é a grande fábrica capitalista que oferece as condições ideais para o nascimento da consciência de classe. A consciência de classe tende por isso a desenvolver-se mais facilmente onde mais obstáculos houver á difusão da ideologia da classe dominante. A classe dominante nega o antagonismo; faz como VPV, apresenta um quadro harmónico da realidade social. Quando a classe dominada se deixa influenciar pela ideologia da classe dominante e tende a fazer seus os “valores” da classe antagónica obviamente que ela perde ou não adquire a consciência de classe e, embora não deixe de ser uma classe em si, não é uma classe para si.

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