A IMPOSSIBILIDADE DE UMA POLÍTICA EXTERNA COMUM
Sarkozy, presidente de turno da UE, foi, em nome da União, a Moscovo e a Tblissi com um plano de paz para fazer cessar as hostilidades no Cáucaso. Segundo as agências noticiosas, o plano teria sido aceite pelas duas partes, embora declarações posteriores atribuídas ao Presidente da Geórgia façam crer que o último ponto do plano não teria sido aceite por este. Se tal acontecer, as hostilidades vão seguramente continuar.
O quinto ponto é o que prevê o início de discussões internacionais sobre o estatuto e as modalidades de segurança nas regiões da Ossétia e da Abekázia, ou seja, por outras palavras, manter indefinidamente o status quo saído da guerra.
A proposta da UE, da iniciativa Sarkozy, aparentemente representa a convergência possível entre as posições dos 27 sobre o conflito. Mas só aparentemente, pois é sabido que tanto a NATO – a estrutura militar da NATO – como os EUA estão longe de se ver representados em tal proposta. Por isso é que os representantes da “nova Europa”, Polónia, Ucrânia, Letónia, Estónia e Lituânia, se apressaram a ir a Tblissi manifestar a sua solidariedade ao aliado incondicional dos Estados Unidos.
Esta viagem, diga-se dela diplomaticamente o que se disser, é a constatação óbvia de que, para lá das ambiguidades que já existiam na Europa a 15, existem agora, na política externa europeia, duas linhas políticas claramente definidas: a representada pela França e pela Alemanha (apesar das aproximações democratas-cristãs às teses de Washington), e também pela Espanha quando é governada pelos socialistas, a que se associam ambiguamente a Itália (quando governada pela direita), Portugal e alguns outros, e a representada pelos que assumem sem reservas a posição americana (países bálticos, Polónia, República Checa, Eslováquia e ainda e sempre, mas com as devidas distâncias, o Reino Unido).
Esta divisão, que não é tão radical como por vezes se pretende, tem porém o condão de irritar as grandes potências fundadoras por não lhes permitir apresentar com alguma credibilidade e força uma linha política com nuances e especificidades relativamente à americana. Mais tarde ou mais cedo esta questão vai ser resolvida, já que não é crível que a França ou a Alemanha, quando se dispõem a desempenhar o papel de mediadores num conflito europeu, possam admitir que um grupo de países da União manifeste a uma das partes a sua inequívoca solidariedade, mediante a presença na capital desse país de cinco chefes de estado e de governo. Enfim, a questão já estaria resolvida se a Grã-Bretanha estivesse mais próxima das teses continentais.
Sem menosprezar as diferenças apontadas, a verdade é que, mesmo sem elas, ainda estaríamos muito longe de uma política europeia mais próxima da actual correlação de forças a nível mundial. Depois da queda do muro e da desagregação da URSS, a União Europeia, tão inebriada quanto Washington pela vitória, reforçou o seu “complexo” eurocêntrico, paradoxalmente numa época que marcava como nenhuma outra o seu declínio. Convencida por força do triunfalismo americano da época de Clinton que estavam relançadas as condições para a criação de um mundo unipolar, sob a égide dos Estados Unidos, a Europa teve e tem alguma dificuldade em se aperceber do mundo que entretanto ia surgindo e que aos poucos se consolidava. Por um lado, a força de poderosos países emergentes, com ou sem armas nucleares, e por outro a dificuldade de impor pela força as chamadas “posições ocidentais”a regiões ou a países que antes as aceitavam sem dificuldade, desde que situados na sua área de influência.
Muitos exemplos, nestes últimos trinta anos, poderiam ser dados. Porém, o que se passa nas relações com a Rússia é paradigmático: derrotada a União Soviética, a Rússia não deixou desde então de ser humilhada pelos Estados Unidos, sempre com a cumplicidade da Europa, salvo algumas distâncias marcadas por Chirac e Scheröder. Primeiro, foi a vergonhosa intervenção do FMI na economia russa, sob Yeltsin; depois, a intervenção na Jugoslávia à margem do direito internacional e o posterior reconhecimento do Kosovo; a seguir, o alargamento da Aliança Atlântica até às suas fronteiras, quando já nada justificava (nem justifica) a sua existência; e ainda a colocação de um escudo antimísseis na República Checa e na Polónia; finalmente, como se tudo isto não bastasse, a “eleição” de vários presidentes da república ou primeiros-ministros americanos ou de longa vivência na América como governantes de países que antes pertenceram à URSS, de que é exemplo mais chocante o actual presidente da Geórgia.
Teria a Europa interesse nesta política? Em que é que a Europa poderia lucrar com a criação de um inimigo poderoso a algumas centenas ou a poucos milhares de quilómetros das suas capitais e do qual em grande medida depende energeticamente? Não se vislumbra deste lado de cá da Europa qualquer interesse que possa justificar tal política. Não assim do lado americano. Acabada a guerra-fria, o complexo militar industrial representado pelo Pentágono, apesar dos múltiplos conflitos militares de intensidade diversa em que desde então se envolveu, tinha e tem absoluta necessidade de manter um estado de tensão que justifique os fabulosos investimentos em armamento que somente uma “ameaça” de outra envergadura poderia justificar. E hoje, tal como ontem, somente a Rússia estava em condições de desempenhar esse papel. Daí as persistentes e humilhantes provocações de Washington, nas quais a Europa se deixou pouco a pouco enredar. A guerra da Geórgia seria uma boa ocasião para marcar distâncias, mas, como já se viu, a Europa parece não estar em condições de o poder fazer.