terça-feira, 29 de junho de 2010

CAVACO FAZ ESCOLA




AINDA A QUESTÃO DA DÍVIDA

Já aqui por várias vezes foi abordada a questão da dívida e o modo como Cavaco a trata. Nunca no tratamento desta questão Cavaco, que a propósito e a despropósito não se cansa de exibir a sua formação académica em ciências económicas e financeiras, a tratou sob este prisma.
Nas suas críticas e nas suas abordagens ao tema o que sempre está presente é a censura individual e social das pessoas e das sociedades que não sabem conter-se dentro das suas posses. O endividado é olhado como uma personalidade perversa ou, pelo menos, portadora de comportamentos desviantes, por não saber gerir a sua pessoa e bens com a parcimónia imposta pelos seus rendimentos.
O supremo ideal de Cavaco, capaz de assegurar a felicidade pátria, era a de um português com poupanças (que não tinham necessariamente de ser investidas em títulos do BPN), duas reformas (alcançadas com o esforço de quem descontou durante vários anos por dois empregos a tempo inteiro) e, se possível, um ordenado, por função a exercer já no cair da vida.
Há nesta maneira de ver as coisas uma censura moral muito típica das sociedades tradicionais e rurais de que o salazarismo era um bom exemplo.
Curiosamente, em linguagem moderna, falada por um dos ícones da nova direita (Pedro Lomba), a questão põe-se mais ou menos nos mesmos termos. O que muda é a natureza da censura. Agora o que se condena é o hedonismo de quem quer ter acesso ao que está acima das suas posses, o irrealismo de um consumo desmedido, a compra de carro e casa própria por quem não tem meios para tanto. E, obviamente, um Estado gastador, em infra-estruturas e contribuições sociais, que, pelo seu comportamento, dá um mau exemplo a toda a sociedade.
Entre estas análises e as de Pina Moura que fala numa extraordinária democratização do crédito proporcionada pelo capitalismo moderno, venha o diabo e escolha.
Em primeiro lugar, o que é espantoso é o tratamento desta questão como um assunto exclusivamente nacional. Como um grave affaire doméstico com que nós, portugueses, nos debatemos, esquecendo-se quem assim pensa que existe um problema idêntico ou mais grave em todas as sociedades capitalistas avançadas. E em segundo lugar, que nem sequer passe pela cabeça destes ilustres analistas como poderia viver o capitalismo moderno sem esta verdadeira orgia consumista, e, portanto, sem crédito. Sim, eles omitem o que aconteceria ao capitalismo na sua actual configuração se houvesse uma queda dramática da procura interna em todos países endividados. A dívida é sempre tratada como uma questão unilateral, que apenas respeita ao devedor, mais uma vez se olvidando quem tem esta triste e primária visão das coisas o mundo de situações que está do outro lado da relação
É evidente que o crédito sempre existiu desde os primórdios do mercantilismo. Mas entre a letra de crédito dos antigos mercadores, cuja prática e o espírito se mantiveram até à explosão da sociedade de consumo dos nossos dias, e o que hoje se passa vai uma diferença abissal geradora de uma mudança qualitativa para a qual o actual capitalismo não consegue encontrar solução.
Tudo parecia correr sobre esferas desde 1991. O capitalismo cada vez mais pujante ia de vento em popa, fazendo gala da sua extraordinária capacidade de destruição criadora, que Schumpeter tinha teorizado nos anos quarenta em “Capitalismo, socialismo e democracia” e Greenspan, à frente da Reserva Federal, endeusado no dealbar do século XXI, desenvolvendo níveis de consumo antes inimagináveis até que uma crise financeira sem precedentes na sua história veio pôr em causa todos os “dogmas” em que assentava esta grandiosa construção.
Como hoje se sabe, a actual crise é em última instância uma crise da dívida. Ou dito de outro modo: uma crise financeira gerada pelo excessivo endividamento de quem não pode pagar. Já antes da crise se sabia que o moderno capitalismo era gerador de profundas desigualdades e acentuava, como há mais de sete décadas se não via, o fosso entre os que têm muito e cada vez mais e os que têm pouco e cada vez menos. E que este fosso estava sendo aparentemente atenuado pela facilidade de acesso ao crédito - o tal acesso que Pina Moura denominou “democratização do crédito” - indispensável para manter o altíssimo nível de procura do capitalismo actual. Se a isto juntarmos o modo como o capital financeiro especulou e aldrabou sobre a própria dívida teremos, em palavras simples, a explicação da crise e a razão da dívida
Fazer discursos morais acerca desta questão, censurando as pessoas que se endividam ou exigindo ou pedindo às pessoas que se não endividem e se comportem de outra maneira é tão estúpido como depois de uma ampla campanha em defesa do civismo e do bom comportamento social exigir a revogação do Código Penal com base na crença de que doravante todos se vão comportar correctamente em sociedade.
A questão da dívida só se resolve com uma profunda reforma do capitalismo e com regulamentações em vastos domínios onde agora tende a imperar a lei da selva. Enquanto a desigualdade na distribuição dos rendimentos se mantiver e o emprego for cada vez mais precário não haverá nenhuma saída para dar a volta a isto. Tudo tenderá a agravar-se tanto mais quanto mais as actuais políticas tendam a generalizar-se e a impor-se.

3 comentários:

Anónimo disse...

A verdade é que o cidadão comum explica a situação através de "teses" próximas das da direita ruralista ou mais moderna. É o que ouvimos na rua, seja em Portugal ou na Grécia. Isto é tudo muito complicado. De facto não há credores sem devedores, mas isso isenta de culpas os indivíduos e as sociedades que se endividam para além do razoável? Que podem pensar os indivíduos e as sociedades que se privaram de consumos pressupondo que estavam a emprestá-lo a outros que lho devolveriam quando dele necessitassem e vêm a descobrir que as suas estimadas poupanças foram "torradas" em férias, bons carros e outros luxos ou investimentos sem critério? Não é legítimo. Por exemplo: Que compreensão poderão ter os credores dos portugueses (credores portugueses ou estrangeiros) para com a nossa situação quando vem a lume o regime de rapina roubo e "gaspillage" com que colectivamente fomos coniventes? Isto é muito terra a terra, com certeza pouco científico, parece coincidir com os ralhetes do Cavaco (este esquece que foi com ele que a bola começou a rolar, das sinecuras e reformas nem vale a pena falar) mas é assim que as pessoas comuns vêm as coisas, parece-me.

António disse...

Absolutamente de acordo. Aqui há 4 ou 5 anos os bancos quase que obrigavam as pessoas a irem pedir dinheiro para tudo o que pensassem precisar, tais eram as facilidades apregoadas. Claro que não seria por bom samaritanismo - era o capitalismo a alimentar-se na sua espiral descontrolada.
Sobre mais regulação: cada vez se reconhece mais a sua absoluta necessidade. Mas terá sido ainda hoje que o homem da PT veio dizer que há regulação a mais. mais uma vez o capitalismo selvagem a despontar a cabeça.
Obrigado pelos seus textos.

Anónimo disse...

Ao anónimo das 22:30

A v/explicação é simplista e muito parcial. Se tudo se explica pela via do Sistema que autonomia fica para os indivíduos, somos bactérias acéfalas? O alibi do massacre da publicidade e marketing faz-me lembrar os violadores justificam os actos pela provocação das agredidas., frequentemente devido, dizem, à forma como se vestem. E, bem vistas as coisas, não poderá haver uma ponta, uma pontinha de razão na atenuante apresentada? (Ui, o que eu digo!!)
É tão parcial esta esta explicação como a dos moralistas que vêm nos desvarios dos consumidores toda a justificação. Se assim fosse, como se justificava que, afinal, uma grande parte dos portugueses não se encontre individualmente endividado, sendo que muitos desses tinham os mesmos rendimentos e estavam sujeitos aos mesmos sedutores apelos?
LG