quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

WIKILEAKS - AGORA FALANDO SÉRIO


O DESCRÉDITO

Embora muita gente diga, o Autor deste blogue incluído, que o Wikileaks não revelou nada com que não se contasse, a verdade é que a confirmação escrita, proveniente de fonte fidedigna, daquilo que se suspeitava existir, produz um efeito devastador na consciência moral daqueles que ainda acreditavam na existência de uma política minimamente séria.
Tal como as escutas do futebol lançaram definitivamente o descrédito sobre a modalidade, apesar de antes do seu conhecimento já se suspeitar o pior, também na política a confirmação de que há agentes políticos corruptos, quer por fazem reverter em proveito próprio bens que são de todos, quer porque atendem mais à defesa de interesses estrangeiros do que à de interesses nacionais cuja protecção era suposto caber-lhes, deixa na generalidade dos cidadãos uma desilusão profunda sobre tudo o que doravante diga respeito à coisa pública.
A publicação de documentos que, em princípio, se não destinavam ao conhecimento público, pôs a nu a pequenez da generalidade dos agentes políticos para os quais nunca mais se pode olhar senão cinicamente e com desprezo.
De forma alguma com isto se quer dizer que os “papéis” da Wikileaks não devessem ser publicados. Pelo contrário, a Wikileaks demonstrou quão longe ainda estamos dessa desejada meta que leva ao esbatimento da grande dicotomia: público/secreto ou entre o poder visível e controlável e o poder invisível e incontrolável.
Historicamente, a res publica contrapunha-se ao principado exactamente por naquela haver um controlo público do poder, enquanto neste prevalece o segredo de Estado como forma normal de governação, ou seja, os arcana imperii.
De Kant, que teorizava o poder político como poder aberto, com base na famosa fórmula transcendental segundo a qual “todas as acções relativas ao direito de outros homens cuja máxima não seja conciliável com a publicidade são injustas”, até Habermas, que justifica o exercício da dominação política pela sua submissão à obrigação democrática da publicidade, toda a teorização da legitimação democrática do exercício do poder assenta na transparência, na publicidade das acções e no seu controlo pelo público.
É nisto que a res publica se distingue dos já referidos arcana imperii dominantes no tempo do poder absoluto. A ideia de que o poder é tanto mais eficaz quanto mais oculto for e mais distante estiver dos olhares indiscretos do povo, é uma ideia que aponta no sentido da divinização do poder, que o tornará tanto mais indiscutível quanto mais invisível for, como Deus.
A estas considerações os defensores do poder oculto juntam ainda duas outras razões – uma de natureza pragmática, outra de natureza valorativa.
A pragmática parte do pressuposto filosófico de considerar intrínseco à natureza do poder a ideia de que as acções de quem manda são tanto mais eficazes quanto mais rápidas e imprevisíveis forem; a valorativa assenta no desprezo pelo povo e na desconfiança na sua capacidade para se ocupar racionalmente dos assuntos que lhe dizem respeito.
Esta concepção de exercício do poder, concebido como poder oculto, secreto, longe das vistas do vulgo, leva a que o “soberano” não dê conhecimento prévio das decisões que vai tomar, oculte as decisões que tomou ou as apresente de forma diferente do que realmente são. Em duas palavras, leva à permanente simulação e dissimulação.
Pelo contrário, a res publica exige a visibilidade de poder, sendo a assembleia dos cidadãos, na expressão mais pura da democracia directa, o lugar onde, por definição, o poder se exerce à vista de todos e com a participação de todos. Já nas assembleias representativas, a publicidade está assegurada não apenas àqueles que nela participam, mas a todos, que podem assistir, sem restrições, aos seus trabalhos. Aliás, a ideia de representação está intrinsecamente ligada à publicidade do poder: não há representação secreta, oculta, que se manifeste e desenvolva em segredo.
É assim essencial à ideia de democracia o conjunto de direitos e de liberdades que garantam o controlo público do exercício do poder e permitam subtrair ao funcionamento oculto a acção daqueles que o querem exercer fora de qualquer controlo ou crítica pública.
Hoje, tem de reconhecer-se, este objectivo é muito difícil de alcançar, não apenas porque os grandes “mediadores” entre o poder e o público estão cada vez mais concentrados nas mãos de uns poucos que igualmente têm interesse e tiram vantagem da invisibilidade do poder, mas também pelo papel encobridor da ideologia que faz com que permanentemente se ocultem as reais motivações das decisões, mostrando-as sempre na sua feição enganadora e dissimulada.
Pior que tudo: hoje, através dos meios científicos e tecnológicos à disposição de poder, é este que goza da possibilidade prática de controlar até ao mais ínfimo pormenor a vida dos cidadãos, tornando-os verdadeiramente prisioneiros do poder omnisciente de quem se serve do Estado.
Por todas estas razões, viva, sem excepções, a publicação de tudo o que estiver escondido e que seja possível trazer para a luz do dia. Uma, duas, muitas Wikileaks é o que nós precisamos!

1 comentário:

Graza disse...

Há de facto muita gente e precisar de rever alguns conceitos. Bem precisavam de começar por aqui, por este texto.