O PASSADO PRÓXIMO
Mesmo agora que o euro está no fim dos seus dias continua a haver por aí muita gente aferrada à ideia de que foram os desvarios da “malta” do sul que fez colapsar o projecto.
Esta tese sobre a causa do que aconteceu não teria grande importância se apenas fosse defendida pela gente do Governo e afins. A subserviência com que se têm comportado, a ponto de por vezes nem se perceber bem se falam como governantes ou como burocratas de quinta ordem de uma qualquer organização internacional encarregada de impor o neoliberalismo até às últimas consequências, bem como o miserável aproveitamento que têm feito da crise para imporem uma agenda política revanchista e anti-popular, são de per si fundamentos mais do que suficientes para lhes retirar qualquer credibilidade.
O pior é que há gente que, não tendo uma agenda coincidente com a do Governo, está igualmente convencida de que houve um desvario colectivo, evitável, que está na génese de tudo o que agora está a acontecer.
Num tempo já marcado pela irreversibilidade das consequências decorrentes da institucionalização da zona euro, geneticamente marcada por falhas políticas e técnicas gravíssimas, pode perguntar-se que importância tem continuar a discutir tão acaloradamente este assunto.
A importância resulta do consenso que à esquerda se terá de fazer sobre o futuro de Portugal. É que enquanto as causas do fracasso do euro não estiverem devidamente escalpelizadas a esquerda vai ter certamente dificuldades em “acertar o passo” relativamente ao futuro.
A primeira de todas as causas daquele fracasso é o neoliberalismo, a prevalência das ideias neoliberais na institucionalização da moeda única e depois no seu funcionamento.
A primeira pergunta que qualquer pessoa deve fazer é a seguinte: por que razão deve ser imputada aos Estados devedores a responsabilidade pelo fracasso?
A resposta das “Merkels deste mundo”, bem como dos seus servis seguidores, é óbvia. A responsabilidade cabe aos Estados endividados por que foram eles que deixaram de respeitar os critérios do “Pacto de Estabilidade e Crescimento”.
Depois desta resposta tão óbvia uma outra pergunta não menos óbvia terá igualmente que se fazer. Por que razão é que os constrangimentos do PEC estavam apenas previstos para os Estados? Por que não havia igualmente limitações, nomeadamente quanto à dívida, para os privados?
Aí as “Merkels deste mundo”, nesta fase do campeonato, vão começar a titubear procurando apresentar falsas explicações. A verdadeira razão - a razão de quem gizou as regras do PEC - é, porém, esta: Para os Estados era necessário prever regras porque os políticos actuam frequentemente de modo irracional sem outras limitações que não seja a tardia - e irreversível, quanto aos efeitos já produzidos - sanção eleitoral, enquanto os particulares estão sempre limitados pela acção regeneradora e correctora do mercado!
Ou seja, para os privados não é necessário estabelecer regras, porque os mercados lá estarão para as impor nunca permitindo que os desvarios se consumem. Ou corrigindo-os mal comecem a assomar.
Esta máxima neoliberal é o ponto de partida de toda a construção. O mercado regula a vida, regula a política, regula tudo, logo não devem ser admitidas interferências que possam pôr em causa a natural acção reguladora dos mercados.
E daqui, a acrescer ao que já existia na EU antes do euro, resulta tudo o que agora está à vista.
Sem unidade política democrática, sem uniformidade fiscal, sem orçamento comunitário digno desse nome capaz de assegurar as funções próprias de um orçamento federal ou para-federal, a iniciativa privada dos países menos competitivos endividou-se em todo lado bem acima do PIB do seu país. Porquê? Porque o euro breve se revelou para estes países uma moeda demasiado barata para importar e para contrair empréstimos, mas excessivamente cara para exportar…essa a razão por que ela (a iniciativa privada) se refugiou nas actividades onde o lucro era seguro, a concorrência mínima ou inexistente e o risco aparentemente nulo.
Por outro lado, o principal centro de fornecimento de capital, nomeadamente a Alemanha, fez batota. Estando, como estava e ainda está, integrada num conjunto que somente poderia funcionar razoavelmente desde que houvesse um certo equilíbrio entre as partes, ela que já era uma das mais competitivas, promoveu durante mais de década uma desvalorização competitiva dos salários, agravando ainda mais o fosso que a separava dos menos competitivos.
A Alemanha pode invocar as razões que se conhecem para assim ter procedido, o que não poderia era desconhecer, antecipar, as consequências a que tal politica levaria. Se a Europa falhar, como vai falhar, a primeira responsável será a Alemanha e depois todos os demais, vítimas incluídas, que durante dez anos nunca foram capazes de perceber o que se estava a passar.
A causa da falência do euro não está, portanto, no défice fiscal dos países em dificuldades (alguns até tiveram superávide, ou défice mínimo, durante anos), nem na dívida contraída (nalguns era mínima, bem inferior à da Alemanha), mas no défice de conta corrente desses países, esse sim, em alguns deles, gigantesco. Défice privado em crescendo e depois aumento da dívida pública para acudir ao défice privado.
Não ver isto é não ver a realidade. Para o que já bastam os “economistas oficiais”, não sendo nada aconselhável fazer parceria com eles.
No próximo post, ou num dos próximos, algumas considerações sobre por onde trilhar um caminho diferente.
9 comentários:
Gostei da lição. Excelente.
Já nos devíamos ter preparado e tomar rumo, os avisos de economistas credenciados vão-nos dando pistas....
"Ainda temos uma possibilidade de lançar a ponte e mudar a rota. Se isso falhar, um plano como este de Mosler e Pilkington pode ser o equivalente dos nossos barcos salva-vidas. Deveríamos, contudo, manter sempre em mente que nossos barcos salva-vidas serão lançados em mares gélidos e, enquanto neles desamparados, muito perecerão. "
(Resistir/info)
Será?
Como lição está excelente como, aliás, o autor vem habituando quem por aqui passa. Simplesmente, para mim, que sou um simples e relativamente desarmado observador, permanecem muitos aspectos sem explicação no "quadro" embora concorde que o essencial da crise é do sistema capitalista e se insere na crescente perda de importância das potências europeias. Em resumo, não se vê,não vejo, reflectido no quadro a realidade que observamos quando percorremos o país onde tropeçamos, a todo o instante, com exemplos de contributos para o Problema, que dificilmente podem deixar de nos ser imputados. Por outro lado sabemos de países que, confrontados com dificuldades de tão grande ou maior monta, souberam resguardar-se. O que eu acho é que a explicação não integra coisas que eu tive oportunidade de observar como, por exemplo, a diferença de comportamento das pessoas desses país quando expostos aos mesmos estímulos que nós. Pense-se no que foi o FSE em Portugal e na Finlândia. Em Portugal foi foi uma colossal fraude de que uns poucos se apropriaram de milhões mas em que milhões, aproveitando tostões, não pestanejaram em, alegremente, participar da mesma.
Enquanto as teorias explicativas para a Crise não integrarem este tipo de aspectos, tem muita dificuldade em ser compreendida pelo homem comum.
lg
Sigo, atento.
Sim, está bem dito, mas existe uma vertente que está ignorada.
Tudo isto sucede porque os países, um a um até à desgraça final, não têm saída.
A Finlândia e a Suécia e a Alemanha por ex.º lá chegarão, é uma questão de tempo.
Se a Itália vendesse máquinas, frigoríficos, carros etc. como o fazia há alguns anos atrás ou tivesse perspectivas de os continuar a vender e até de aumentar as vendas, isso de os privados estarem muito endividados, não seria grande problema.
O verdadeiro problema é que os mercados não estão a ver como é que os carros e as máquinas da China e da India vão deixar de chegar cá à Europa e aos USA.
Ninguém quer falar disto, mas esse é também o problema de Portugal por muitos erros que tenham sido cometidos desde Cavaco.
Volta Sócrates que estás perdoado...que em Paris ao erguer uma taça do bom champangne, dirá perguntando-se: será que do extremo oriente não beberei um néctar assim?
Alfredo Santos
Por baixo da espuma financeira, (sem menosprezar os efeitos sobre a economia real), há a REALIDADE! A realidade é que posso comprar umas calças feitas no extremo-oriente por 7-8 euros e rectificar a baínha custa 10-12 euros!!! Concordou-se que indústrias baseadas em mão de obra pouco qualificada não era o futuro, portanto, as deslocalizações eram interpretadas como um movimento positivo mas, as qualificações não foram além de cursos de antropologia, sociologia, comunicação, etc. etc. (nada contra estas áreas do conhecimento!) e, por fim, as famosas novas "oportunidades"! A factura haveria de chegar, era uma questão de tempo.
Neste post não foi abordada expressamente a questão da concorrência dos emergentes, porque o tema era outro. A questão dos emergentes tem sido recorrentemente tratada aqui. Mas trazer à discussão essa questão só reforça a responsabilidade da Alemanha. Por outras palavras, para compensar a queda do comércio com os emergentes, a Alemanha reforçou as suas relações comerciais com a zona euro, mediante a conjugação simultânea de dois factores: capital barato e desvalorização competitiva dos salários.
Depois continuaremos esta conversa...que agora estou muito longe.
JMCPinto
Caríssimo José M. Correia Pinto,
Fiz link deste “post” na última atualização do meu blogue.
Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt
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