UMA ANÁLISE POLÍTICA
O prefácio de Cavaco aos Roteiros VIII, apesar da convicção
com que foi escrito e da douta análise que o seu autor quis trazer ao
conhecimento dos portugueses sobre o seu futuro a curto, médio, longo e
longuíssimo prazo, teve a virtualidade de deitar por terra de um dia para o
outro o “relógio” de Portas, o “milagre económico” de Pires de Lima, “ os
sinais positivos e encorajadores” de Passos Coelho, a “lengalenga” de Seguro sobre
a via alternativa com base num programa que não depende dele e fez soar as
campainhas de alarme em milhares de portugueses que ainda não tinham
interiorizado em toda a sua extensão o futuro que os espera se o “consenso” por
que Cavaco tanto almeja fosse mesmo para levar à prática.
Cavaco com a crueza própria de quem está a falar de números
sem sequer lhe passar pela cabeça que por detrás de cada número está uma pessoa
achou perfeitamente normal que nos próximos vinte anos as contas públicas
portuguesas gerem em cada ano, em média, um superávide primário de cerca de 3%
do PIB para pagamento de juros e amortização de cerca de metade da dívida, com
vista a reduzi-la a 60% do PIB. É claro que Cavaco não pode deixar de saber
quais as consequências que daí resultariam para a economia portuguesa, nem
tão-pouco pode entrar em linha de conta com taxas de crescimento
irrealistas (4% ao ano) para atenuar o efeito catastrófico de tal política,
pois tem de saber pela experiência recente que tais taxas de crescimento são
inatingíveis, não apenas para Portugal, como para qualquer país da União
Europeia, e que a própria taxa de juro implícita do stock da dívida, que ele
estima em 4%, depende de factores que Portugal não controla. Portanto, o que
desta política de austeridade, vigente no mínimo pelo lapso de tempo
correspondente ao de uma geração, necessariamente resultaria seria uma total
destruição do que resta do estado social.
E é isto o que também está em causa na questão da dívida.
Mantendo-se Portugal algemado ao Tratado orçamental e a outras políticas que
entretanto têm sido aprovadas por Bruxelas (“six pack” e “two pack”), a asfixia
financeira do Estado terá como consequência inevitável a degradação para um
nível na prática correspondente à destruição do serviço nacional de saúde, da
escola pública e da segurança social. Aliás, essa é a estratégia do
neoliberalismo: retirar o Estado de tudo o que possa ser desempenhado por
privados e eliminar a sua intervenção correctora na actividade económica,
deixando-a totalmente entregue às leis do mercado.
É neste quadro que a questão da dívida tem de ser colocada.
Dir-se-á: o que foi emprestado tem de ser pago. Só que não há racionalidade
nesta afirmação. Porque nenhum Estado, nenhum devedor pode pôr em causa a sua
existência e o seu futuro por causa de uma dívida que além do mais resulta da
absoluta necessidade que o capital financeiro teve de rentabilizar os seus
excedentes obtidos à custa de uma sobreexploração encoberta pelas facilidades
de concessão de crédito.
Na verdade, a questão da dívida não pode ser resolvida com a
linearidade de quem pensa que o emprestado tem de ser pago. É preciso
perceber por que razão se endividou a generalidade dos Estados europeus nestes
últimos vinte anos a ponto de em vários deles a dívida se ter tornado
insustentável e por que razão, simultaneamente , houve quem adquirisse um tal poder capaz de se impor aos próprios Estados. Os Estados endividaram-se para fazer face a despesas para as
quais deixaram de cobrar as receitas devidas e endividaram-se também para
garantir a solvabilidade dos devedores privados, em última instância das
instituições financeiras. E as instituições financeiras endividaram-se por
razões especulativas e para garantir à procura privada um nível de consumo
muito superior ao suportável pelos seus rendimentos.
O engodo foi o crédito barato e a razão de ser do
endividamento assenta, por um lado, nos critérios de distribuição do rendimento que têm vindo
a ser postos em prática desde há mais de trinta anos e, por outro, na eliminação do papel do Estado na economia que chegou ao ponto de até o desapossar do privilégio de emitir moeda. Critérios que passaram a
privilegiar fundamentalmente o capital em detrimento do trabalho, tendo-se assim
resolvido o aparente paradoxo de conciliar a necessidade de o capital exigir,
para se multiplicar, uma procura sempre crescente com a diminuição permanente
do rendimento atribuído ao trabalho mediante a introdução de um factor que
pudesse mascarar esta indiscutível incongruência – esse factor foi a concessão
indiscriminada de crédito sem real conexão com as fontes de rendimento que o
poderiam pagar.
Este problema foi particularmente agravado na Europa
comunitária depois de Maastricht que liberalizou a economia e criou o mercado
interno, deixando-o praticamente a coberto de qualquer intervenção política
correctora (somente indirecta: fundos estruturais, no plano dos Estados e
despesas sociais, no plano dos cidadãos, constituindo uns e outros novos
factores de endividamento público) e depois levado às suas consequência mais
dramáticas pela introdução de uma moeda única num espaço económico assimétrico contribuindo
essa moeda para agravar ainda mais essas assimetrias.
Como esta política assenta numa agenda ideológica que não
esmorece perante nenhuma dificuldade, que inclusive tem sabido transferir para
terceiros as consequências pontualmente desastrosas da sua ortodoxia, e como
dela resultam grandes vantagens para poucos e enormes desvantagens para muitos,
ninguém poderá esperar que os que dela tiram os maiores proveitos aceitem por
via negocial reduzi-los para favorecer os mais prejudicados.
É por isso que embora algumas das ideias do Manifesto que
apela à reestruturação da dívida, como a de redução da taxa de juro do stock da
dívida e o alongamento dos prazos por várias (muitas) décadas, sejam positivas,
ele é limitado nas propostas – parte da dívida tem de ser extinta e o pagamento
da restante tem de estar consignado a uma percentagem das exportações – e
irrealista na sua concretização prática.
É impensável supor a existência de qualquer política credível
e condizente com os interesses dos países endividados saída de um acordo
comunitário. O “consenso europeu” sobre essa matéria está expresso no Tratado
Orçamental e nas demais imposições da União Europeia. A teia que o
neoliberalismo urdiu no seio da União Europeia, transformando-a no exemplar mais
acabado dessa doutrina económica, a ponto de tal doutrina poder ser coercivamente
imposta por constar de textos jurídicos a que as partes deram o seu
assentimento, não deixa margem a qualquer heterodoxia.
Portugal só recobrará
a sua independência se sair do euro e não hesitar na resolução unilateral da
questão da dívida, se a opção por uma via negocial se revelar inviável ou se
inaceitável for o resultado que dela decorre. E não faltam modelos históricos,
uns mais conhecidos que outros, em que Portugal se possa inspirar.
É um caminho difícil, certamente. Mas é o único compatível
com a dignidade nacional e o único que a prazo permitirá um futuro melhor. A
escolha tem de ser feita entre um sacrifício que agrava a situação e mantém a
dependência por tempo indeterminado e um sacrifício, igualmente difícil de
suportar, libertador e que abre um verdadeiro caminho alternativo.
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