quinta-feira, 13 de março de 2014

A REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA


 

UMA ANÁLISE POLÍTICA
 
 

 

O prefácio de Cavaco aos Roteiros VIII, apesar da convicção com que foi escrito e da douta análise que o seu autor quis trazer ao conhecimento dos portugueses sobre o seu futuro a curto, médio, longo e longuíssimo prazo, teve a virtualidade de deitar por terra de um dia para o outro o “relógio” de Portas, o “milagre económico” de Pires de Lima, “ os sinais positivos e encorajadores” de Passos Coelho, a “lengalenga” de Seguro sobre a via alternativa com base num programa que não depende dele e fez soar as campainhas de alarme em milhares de portugueses que ainda não tinham interiorizado em toda a sua extensão o futuro que os espera se o “consenso” por que Cavaco tanto almeja fosse mesmo para levar à prática.

Cavaco com a crueza própria de quem está a falar de números sem sequer lhe passar pela cabeça que por detrás de cada número está uma pessoa achou perfeitamente normal que nos próximos vinte anos as contas públicas portuguesas gerem em cada ano, em média, um superávide primário de cerca de 3% do PIB para pagamento de juros e amortização de cerca de metade da dívida, com vista a reduzi-la a 60% do PIB. É claro que Cavaco não pode deixar de saber quais as consequências que daí resultariam para a economia portuguesa, nem tão-pouco pode entrar em linha de conta com taxas de crescimento irrealistas (4% ao ano) para atenuar o efeito catastrófico de tal política, pois tem de saber pela experiência recente que tais taxas de crescimento são inatingíveis, não apenas para Portugal, como para qualquer país da União Europeia, e que a própria taxa de juro implícita do stock da dívida, que ele estima em 4%, depende de factores que Portugal não controla. Portanto, o que desta política de austeridade, vigente no mínimo pelo lapso de tempo correspondente ao de uma geração, necessariamente resultaria seria uma total destruição do que resta do estado social.

E é isto o que também está em causa na questão da dívida. Mantendo-se Portugal algemado ao Tratado orçamental e a outras políticas que entretanto têm sido aprovadas por Bruxelas (“six pack” e “two pack”), a asfixia financeira do Estado terá como consequência inevitável a degradação para um nível na prática correspondente à destruição do serviço nacional de saúde, da escola pública e da segurança social. Aliás, essa é a estratégia do neoliberalismo: retirar o Estado de tudo o que possa ser desempenhado por privados e eliminar a sua intervenção correctora na actividade económica, deixando-a totalmente entregue às leis do mercado.

É neste quadro que a questão da dívida tem de ser colocada. Dir-se-á: o que foi emprestado tem de ser pago. Só que não há racionalidade nesta afirmação. Porque nenhum Estado, nenhum devedor pode pôr em causa a sua existência e o seu futuro por causa de uma dívida que além do mais resulta da absoluta necessidade que o capital financeiro teve de rentabilizar os seus excedentes obtidos à custa de uma sobreexploração encoberta pelas facilidades de concessão de crédito.

Na verdade, a questão da dívida não pode ser resolvida com a linearidade de quem pensa que o emprestado tem de ser pago. É preciso perceber por que razão se endividou a generalidade dos Estados europeus nestes últimos vinte anos a ponto de em vários deles a dívida se ter tornado insustentável e por que razão, simultaneamente , houve quem adquirisse um tal poder capaz de se impor aos próprios Estados. Os Estados endividaram-se para fazer face a despesas para as quais deixaram de cobrar as receitas devidas e endividaram-se também para garantir a solvabilidade dos devedores privados, em última instância das instituições financeiras. E as instituições financeiras endividaram-se por razões especulativas e para garantir à procura privada um nível de consumo muito superior ao suportável pelos seus rendimentos.

O engodo foi o crédito barato e a razão de ser do endividamento assenta, por um lado, nos critérios de distribuição do rendimento que têm vindo a ser postos em prática desde há mais de trinta anos e, por outro, na eliminação do papel do Estado na economia que chegou ao ponto de até o desapossar do privilégio de emitir moeda. Critérios que passaram a privilegiar fundamentalmente o capital em detrimento do trabalho, tendo-se assim resolvido o aparente paradoxo de conciliar a necessidade de o capital exigir, para se multiplicar, uma procura sempre crescente com a diminuição permanente do rendimento atribuído ao trabalho mediante a introdução de um factor que pudesse mascarar esta indiscutível incongruência – esse factor foi a concessão indiscriminada de crédito sem real conexão com as fontes de rendimento que o poderiam pagar.

Este problema foi particularmente agravado na Europa comunitária depois de Maastricht que liberalizou a economia e criou o mercado interno, deixando-o praticamente a coberto de qualquer intervenção política correctora (somente indirecta: fundos estruturais, no plano dos Estados e despesas sociais, no plano dos cidadãos, constituindo uns e outros novos factores de endividamento público) e depois levado às suas consequência mais dramáticas pela introdução de uma moeda única num espaço económico assimétrico contribuindo essa moeda para agravar ainda mais essas assimetrias.

Como esta política assenta numa agenda ideológica que não esmorece perante nenhuma dificuldade, que inclusive tem sabido transferir para terceiros as consequências pontualmente desastrosas da sua ortodoxia, e como dela resultam grandes vantagens para poucos e enormes desvantagens para muitos, ninguém poderá esperar que os que dela tiram os maiores proveitos aceitem por via negocial reduzi-los para favorecer os mais prejudicados.

É por isso que embora algumas das ideias do Manifesto que apela à reestruturação da dívida, como a de redução da taxa de juro do stock da dívida e o alongamento dos prazos por várias (muitas) décadas, sejam positivas, ele é limitado nas propostas – parte da dívida tem de ser extinta e o pagamento da restante tem de estar consignado a uma percentagem das exportações – e irrealista na sua concretização prática.

É impensável supor a existência de qualquer política credível e condizente com os interesses dos países endividados saída de um acordo comunitário. O “consenso europeu” sobre essa matéria está expresso no Tratado Orçamental e nas demais imposições da União Europeia. A teia que o neoliberalismo urdiu no seio da União Europeia, transformando-a no exemplar mais acabado dessa doutrina económica, a ponto de tal doutrina poder ser coercivamente imposta por constar de textos jurídicos a que as partes deram o seu assentimento, não deixa margem a qualquer heterodoxia.

 Portugal só recobrará a sua independência se sair do euro e não hesitar na resolução unilateral da questão da dívida, se a opção por uma via negocial se revelar inviável ou se inaceitável for o resultado que dela decorre. E não faltam modelos históricos, uns mais conhecidos que outros, em que Portugal se possa inspirar.

É um caminho difícil, certamente. Mas é o único compatível com a dignidade nacional e o único que a prazo permitirá um futuro melhor. A escolha tem de ser feita entre um sacrifício que agrava a situação e mantém a dependência por tempo indeterminado e um sacrifício, igualmente difícil de suportar, libertador e que abre um verdadeiro caminho alternativo.

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