BREVE NOTA
Não interessa referir aqui as reacções daqueles que
discutiram e analisaram o Manifesto. Essa terá sempre de considerar-se uma
consequência normal subsequente à publicação de um documento daquela natureza. Muitos
o fizeram e nós também neste blogue. Também não interessa discutir a posição
daqueles que imputam a alguns dos signatários do Manifesto a situação em que
nos encontramos por força de políticas a que eles deram voz enquanto
governantes. Essa é uma manifestação de superioridade moral totalmente
descabida no contexto desta discussão, além do mais porque essa concepção pré-moderna
de medir a política pela moral nunca leva a bons resultados. A política tem as
suas regras próprias e omiti-las ou não as querer reconhecer acaba por levar à
supremacia das teses neoconservadoras que no actual momento histórico são
exactamente aquelas que mais invocam a moral como suporte dos seus intentos
imperialistas.
Aliás, e desculpem a franqueza, só mesmo por estupidez e uma
grande dose de ignorância se pode imputar o endividamento dos Estados a uma
acção culposa, censurável dos governantes. Esta é maneira mais simples de
escamotear o problema e fazer de conta que ele não existiria se não fosse o
perverso comportamento de alguns ou, no mínimo, a sua irresponsável
atitude em lugares chave da política nacional. O endividamento tem as suas causas, ele está intimamente relacionado
com a actual fase do processo de desenvolvimento capitalista de domínio do
capital financeiro. E acontece em todo o lado, sejam os governantes mais ou
menos competentes, mais ou menos virtuosos. Mas não é disso que agora queremos
tratar.
O que queremos agora tratar, embora sumariamente, é da
reacção do Governo e de todos os que ao longo destes últimos três anos têm
defendido a sua política que mais não é que a política da União Europeia e do
FMI, repetida até à exaustão pelos órgãos mais representativos destas
instituições e plasmada em documentos coercivos, juridicamente vinculativos, a
que os Estados, todos os Estados, mesmo os mais sacrificados por ela, deram o
seu assentimento.
E esta reacção do Governo, dos seus apoiantes, do FMI, da UE,
do BCE, dos Estados membros da UE está conforme com a política que desde
Maastricht vem sendo posta em prática na Europa mas cuja verdadeira face só se
tornou mais visível a partir da crise financeira internacional e das suas repercussões
na zona euro. E a linha de rumo fundamental desta política é a seguinte: não
adianta estar a discutir o que podem a UE ou Estados que a compõem fazer para aliviar
o peso da dívida ou a política de austeridade que lhe anda associada porque
isso não é matéria que possa ficar sujeita à discricionariedade da acção
política. Isso é matéria de natureza económica regulada por leis cuja
formulação é insusceptível de ser influenciada pela acção política. É matéria
dos mercados, não da política. E não sendo da política isso também significa
que se trata de matéria subtraída à decisão democrática. Como diz Medina Carreira
com a crueza de quem não tem de ir a votos: não adianta os políticos andarem a prometer
que vão fazer isto e aquilo ou que vão manter ou desenvolver o serviço nacional
de saúde, porque isso não depende deles. Depende da economia. E as leis da economia não
vão a votos!
Aliás, a todo o momento o BCE, o FMI, a Comissão Europeia, o
Conselho Europeu reafirmam que a política de desendividamento é para continuar.
Nem outra coisa é de esperar depois da ratificação do Tratado Orçamental e de outros instrumentos
jurídicos que têm vindo a ser aprovados. Ora, o desendividamento pressupõe que
anualmente se gerem excedentes orçamentais (superávides primários) em montante
suficiente para em cada ano fazer face ao pagamento dos juros e à amortização
da dívida (serviço da dívida). Que não haja, portanto, a contracção de novos
empréstimos para atender ao serviço da dívida, pois somente por aquele meio se
alcançará a meta mágica de uma dívida aquém dos 60% do PIB. Como, por outro
lado, não há inflação (essa é estatutariamente a política do Banco Central), que
obviamente faria diminuir o peso da dívida, e como não é crível que os Estados
europeus em média ou até somente alguns deles cresçam durante vinte anos (o lapso
de tempo concedido pelo Tratado para o desendividamento) a uma taxa média satisfatória,
da ordem dos três, quatro por cento, o desendividamento – a fazer-se – só poderá
acontecer pela via da contracção da despesa. E escusado será perguntar qual
despesa que vai ser cortada, porque a resposta é óbvia: a despesa que financia
o Estado social.
Este é que é o problema. O grande problema do nosso tempo. Um
problema com solução? Certamente que sim, mas não seguramente à volta de uma
mesa do Conselho Europeu, ou de qualquer outro órgão político do establishment. Nesse contexto o problema
só poderá agravar-se, nunca resolver-se. Ele tem de ser resolvido fora desse
enquadramento. E em algum lado ele vai começar a ser resolvido. Provavelmente
num país de dimensão média com aspirações a grande potência. Provavelmente pelo
lado direito da política. Era melhor que não fosse assim, mas se for esse o
caso, isso poderá não ser tão mau como se supõe desde que possa contribuir para
romper esta gigantesca teia urdida pelo capital financeiro que paralisa a acção
política dos povos relativamente à economia.
7 comentários:
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Também eu gostaria que não fosse pelo lado direito, mas se for esse o do gato que melhor come os ratos, que seja. Talvez sirva para outros gatos mais próximos aprenderem a caçar ratos.
Pois é, eu também acredito que a FN vai vencer as eleições em França - as locais e as Europeias. O que é que isso vai dar? Não sei, não tenho bola de cristal. Mas que é preciso romper o cerco, disso não tenho qualquer dúvida. Dramático é que o obscurantismo - intelectual, político, cultural - de que se alimenta a extrema-direita, tenha numa mistificação da esquerda (que em Portugal também tem nome) a sua energia vital.
É preciso voltar ao chão e reconhecer que apesar da sua -aparente por um lado, efectiva por outro - complexidade, a sociedade do séc. XXI continua a padecer dos males de uma sociedade estratificda em classes e que só a sua superação pode rasgar caminhos alternativos. Um certo mundanismo pretensioso, que não passa afinal de provincianismos bacoco, tem levado muitos a joelhar perante o altar do capital. É altura pois de cada um, como o Saramago tão bem escreveu, se levantar do chão.
Três notas, para um texto enxuto:
Primeira - subscrevo
Segunda - há um contributo útil do manifesto: possibilitar a discussão
Terceira - há um contributo perverso no manifesto: fechar a discussão no circuito das regras das instituições comunitárias
Nos anos trinta do século passado, houve quem pensasse o mesmo em relação a Hitler e ao nazismo. Viu-se o resultado.
É singular que a alguém que se presume de esquerda agrade a subida ao poder de um partido da extrema-direita francesa (sendo que ainda há pouco um dos seus membros defendeu o encerramento dos ciganos em campos de concentração; mas isso, como diria o outro, não passa de um detalhe)
É suposto (teórico) o poder político democrático servir o bem comum regulando a especulação, punindo a fraude, etc.. Admitir a impossibilidade disso é a declaração de falência do sistema com fundamento em que as «leis da economia» são super políticas e escamotear o bandeio entre políticos eleitos e especuladores. Os bois devem poder ser chamados pelo nome.
Os textos são interpretados por quem os lê e não por quem os escreve. Neste blogue não há, nunca houve, nem haverá censura. Os leitores dizem o que entendem que devem dizer sobre os textos que leram do mesmo modo que o seu autor também escreve o que entende que deve escrever sobre os assuntos de que trata. E escreve sem autocensura sem qualquer esforço, provavelmente porque conheceu a censura durante tempo suficiente para compreender os seus malefícios. E só espera que os leitores façam o mesmo, apesar de saber que infelizmente nem sempre assim acontece nomeadamente quando omitem o que neles há de mais essencial.
Sem pretender vincular ninguém ao seu pensamento, o que o autor entende é que no contexto político-económico em que vivemos o mais importante é o país recuperar a sua independência. E recuperar a independência significa antes de mais subordinar a economia à decisão política. Se essa decisão tiver sido formada democraticamente, tanto melhor. Se não for, paciência, é um problema de que se tratará numa segunda fase. Nesta fase o que importa é romper com a pseudodemocracia neoliberal que afasta a política da economia, remetendo esta para uma inevitabilidade imposta pelas pseudo-leis que a guiam.
Infelizmente, a esquerda ainda não demonstrou ter a capacidade necessária para lutar vitoriosamente contra este estado de coisas, talvez por causa da pseudolegitimidade que parece estar por detrás desta ideologia. Ao passo que contra a direita clássica, a tal da qual o comentador tem tantos (e justificados) receios, a esquerda já demonstrou múltiplas vezes dispor dos meios necessários para a derrotar.
Acredito desde há muito que, tal como o legislador morre de parto, também o escritor não se pode emancipar da palavra que libertou.
A lei é (devia ser) um caso extremo, mas nestes incertos dias não raro se ouvem vozes do além para parir interpretações vinculativas, da lei da morte de libertando.
O autor de uma reflexão dá a sua visão e expõe-se, mas é lícito que antye esse texto tenha a liberdade de opinar, o que tem um valor especial porque, sujeito embora a nova interpretação, emana da mesma fonte.
Também eu concordo inteiramente com um (post) e outro (comentário).
Não creio que a independência venha dos lados de Bruxelas ou de Washington. É nesses sítios que ela tem que ser conquistada, embora esse processo - que não seja a ferros - possa conhecer ritmos e tempos diversos.
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