UMA RARA INTELIGÊNCIA
POLÍTICA
Medeiros Ferreira não conseguiu concretizar um dos seus
maiores sonhos: traduzir em acção política corrente o seu pensamento político.
Dono de uma invejável auto-estima, mas não tendo manifestamente vocação para
liderar um partido político que o pudesse guindar aos mais altos lugares da
política nacional, apaixonado pela política, muito
independente e convencido dos seus méritos pela capacidade de antecipação que
sempre manifestou dos fenómenos políticos e a subsequente constatação de que o
devir lhe dava razão, Medeiros Ferreira “gostava que lhe batessem à porta”, mas
esqueceu-se talvez ingenuamente que os líderes partidários, os chefes políticos, não
nutrem um especial apreço por quem pensa. Podem estimar o pensamento político alheio
desde que seja para dele se apropriarem, em discursos, em proclamações solenes,
enfim, o pensamento político de quem esteja fora e se proponha servi-los de fora, mas em regra recusam o acompanhamento de quem privilegie o pensamento político estratégico
na acção política corrente. Essa a razão por que Medeiros Ferreira nunca ocupou
na política portuguesa um grande cargo ou, se o chegou a ocupar, foi por
pouquíssimo tempo.
O último livro de Medeiros Ferreira – Não há mapa cor-de-rosa A
História (Mal)dita da Integração Europeia - reflecte melhor, muito melhor, que qualquer
outro texto sobre a actualidade política nacional a angústia de quem vê o
futuro do país numa encruzilhada de difícil saída. Um país que durante séculos,
embora de modo porventura mais intenso desde o último quartel do século XIX até
ao terceiro quartel do século XX, viveu o mito do Império e se viu depois
obrigado a construir à pressa um outro mito que pudesse dar sentido a uma nação
centenária - o mito da Europa, construído nos últimos quarenta anos. O mito
imperial de que a nação portuguesa durante tantos séculos se alimentou e que
desesperadamente tentou estender para além do tempo que politicamente o poderia
sustentar esgotou-se simbolicamente, na sua formulação originária, no 25 de
Abril, tendo surgido pouco depois, embora de uma forma tantas vezes postiça e
canhestra, o mito da Europa – que Medeiros Ferreira tanto criticou reclamando-se
de uma visão tratadística, contratualista entre Estados e cidadãos - que
“globalizou” o pensamento pátrio enquanto houve dinheiro a rodos e o clube europeu
era pequeno – “passaram a ser europeístas com o mesmo fervor com que antes eram colonialistas”.
Criticando a ausência de orientação estratégica na condução política externa de
integração de Portugal na Europa desde logo reflectida na deficiente negociação
dos grandes instrumentos comunitários, em que tão insensatamente Portugal se
reviu, apoiando-os numa formulação contrária aos interesses nacionais, Medeiros
Ferreira não chegou nunca a afastar-se da Europa, mas apenas – e isso já não
era pouco – a tentar vê-la tal como ela realmente é, principalmente a partir do
alargamento a Leste e da introdução do euro como expressão máxima da União
Económica e Monetária, a propor as medidas indispensáveis à democratização do
conjunto europeu e também a traçar as vias alternativas de uma política externa
portuguesa. Essa incapacidade de a política portuguesa compreender as profundas
mutações ocorridas na Europa desde há mais de vinte anos constituem sem dúvida
uma das maiores angústias políticas de Medeiros Ferreira para quem o papel de “bom
aluno de maus mestres” vem sendo desde há muito – e não apenas desde agora - um
dos maiores problemas da nossa política externa.
Na política interna talvez seja de sublinhar entre tantas
intervenções cujo mérito é diferentemente avaliado, a rara inteligência
política com que antecipou, com vários anos de antecedência, as consequências
nefastas para o PS e para a esquerda portuguesa em geral de dois dos maiores
erros políticos de Sócrates: ter desprezado a importância política das
presidenciais de 2006 e não ter tido a coragem de afrontar Cavaco nas
presidenciais de 2011. Em ambas as situações o tempo deu-lhe razão. O fim de
Sócrates, vaticinou Medeiros Ferreira em 2006, começaria em 2010 e o seu
afastamento do poder, disse Medeiros Ferreira em finais de 2010, iria ter lugar
bem antes do termo da segunda legislatura. E assim foi com as consequências que
estão à vista…
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