quinta-feira, 6 de março de 2014

UCRÂNIA: O QUE REALMENTE ESTÁ EM JOGO


 

E A NÓS, O QUE INTERESSA?

O que está em jogo, como toda a gente percebe, é um conflito de influências entre, por um lado, os Estados Unidos e a União Europeia (esta desempenhando o duplo papel de ponta de lança dos interesses e da estratégia americana no leste europeu e simultaneamente acautelando os dos seus membros mais influentes nessa mesma região) e, por outro, a Rússia.

Aparentemente trata-se do clássico conflito de influências em que cada um dos lados tenta ganhar vantagem sobre o outro. Mas há no conflito ucraniano aspectos novos que, não sendo devidamente tomados em conta, inviabilizarão a compreensão da sua verdadeira natureza e do modo de lidar com ele.

Voltando um pouco ao passado mais recente: durante a Guerra Fria os conflitos de influência tinham sempre a mesma natureza e eram ditados pelos mesmos objectivos. Dois sistemas em confronto, pretendendo cada uma das partes ganhar vantagem sobre a outra agregando para o seu lado novos aderentes sempre com vista a um objectivo comum: um sistema suplantar o outro.

 Se o conflito ocorria numa zona demarcada, por mais vozearia e propaganda que houvesse, já se sabia antecipadamente como o conflito terminaria: mantinha-se a posição daquele que actuou dentro da sua zona, qualquer que tivesse sido a natureza da acção desencadeada.

Se o conflito ocorria fora das zonas demarcadas, aí ele poderia expressar-se militarmente e muitas vezes se expressou, confrontando-se os dois sistemas não directamente mas por “interpostas pessoas”. Foi assim em África e também na Ásia.

Na América Latina, que em rigor não era zona demarcada, prevalecia a “doutrina Monroe”, à época velha de mais de um século, em defesa da qual os Estados Unidos recorreram a invasões, a golpes de estado e à instauração de ferozes ditaduras, tanto em grandes como em pequenos países. Cuba não constitui uma excepção porque quando tudo começou não estava no horizonte dos revolucionários o alinhamento por um dos lados em confronto. Isso só veio a acontecer um pouco mais tarde. E quando se tornou claro o que tinha acontecido já era aparentemente tarde para alterar o rumo dos acontecimentos. Mesmo assim, a CIA organizou com meios aéreos e navais americanos uma invasão, fundamentalmente integrada por exilados cubanos, que correu mal, muito mal e deixou pelas ruas da amargura a credibilidade política do recém-empossado Presidente Kennedy. Cerca de um ano e meio mais tarde, o campo socialista exagerou na parada e propôs-se instalar mísseis em Cuba. O mundo esteve à beira da guerra, mas um acordo alcançado in extremis com muita dificuldade, e com fortes oposições tanto no Kremlin como no Pentágono e no Congresso, conseguiu evitar a guerra e simultaneamente assegurar a invulnerabilidade de Cuba a troco do desmantelamento dos mísseis. Acordo que se manteve para além da Guerra Fria não obstante os Estados Unidos durante meio século terem tentado tudo para, por meios não militares, desalojar Castro do poder, quer impondo o bloqueio da Ilha quer tentando múltiplas vezes o assassinato do líder cubano.

Hoje não há sistemas em confronto. A Guerra Fria acabou com a vitória das forças capitalistas sobre o socialismo. A Queda do Muro e a desagregação da União Soviética simbolizam e corporizam essa vitória muito mais eloquentemente do que qualquer outro acontecimento. Os 15 Estados que recobraram a independência com o fim do modelo federal soviético tornaram-se capitalistas, Rússia inclusive, como qualquer outro existente no lado do campo até então adverso. Nesses Estados, o processo de apropriação dos bens antes colectivizados traduziu-se, em todos eles, num verdadeiro saque, o mesmo tendo acontecido, posto que em proporções diferentes e mediante um processo de mascaramento jurídico, nos demais Estados antes integrantes do Pacto de Varsóvia. 

Até neste processo há interessantes semelhanças entre uns e outros, entre os de lado de cá e os do lado de lá, já que tanto nuns como noutros o capitalismo foi precedido de um processo de acumulação primitiva que lhe permitiu depois consolidar-se. Com a diferença de que no Leste esse processo foi mais rápido, porque o capital estava mais à mão e já constituído, carecendo apenas de mudar de dono e de sentido.

Então, se há tantas semelhanças porquê o conflito. Bem. Os dois sistemas estavam altamente militarizados e armados, tendo cada um deles a respectiva aliança militar, também elas com áreas demarcadas de actuação e com princípios comuns: qualquer ataque a um membro da respectiva aliança seria considerado como um ataque a todas as demais partes.

Então, se havia dois blocos antagónicos e um deles se extinguiu, tendo deixado de o ser, deixou de haver blocos antagónicos, não havendo igualmente razão para que se mantenham as respectivas alianças militares, uma vez que a ameaça (decorrente do confronto de dois sistemas antagónicos) deixou de existir. E assim aconteceu a Leste. O pacto de Varsóvia extinguiu-se. Mas a Oeste não aconteceu nada de semelhante. A NATO não se extinguiu. Pelo contrário, ampliou-se, tanto no número de membros, como no seu campo de actuação.  

A NATO é hoje composta por 28 Estados, quando antes - durante a Guerra Fria – tinha apenas 16 membros. Dos 12 novos que agora a integram 10 pertenciam ao Pacto de Varsóvia, quer como Estados independentes, quer como repúblicas federadas da União Soviética e 2 eram neutrais (ou estavam integrados numa federação neutral – a Jugoslávia).

Se de um lado o bloco se dissolveu e do outro se ampliou indo toda essa ampliação no sentido de nele integrar ou tentar integrar aqueles que antes pertenciam ao Pacto de Varsóvia com excepção da Rússia e (até ver) das ex-repúblicas federadas da União Soviética situadas na Ásia (Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Turquemenistão e Tadjiquistão) é natural, é perfeitamente natural, que a Rússia como primeiro e mais importante grande país saído da URSS se sinta cercada por uma política que visa situar na periferia das suas fronteiras (no Báltico, no centro, no leste e no sul europeu, e ainda no Cáucaso) uma poderosíssima aliança militar que só pode ter como inimigo potencial aquele grande país que nela não está integrado – a Rússia.

E quanto mais o cerco se aperta, maior é o reflexo de defesa que o cerco provoca. Daí que quando se fala em expansionismo seja necessário definir com rigor quem realmente se expande. Quem se expande é quem por reflexo de defesa procura romper ou impedir o cerco ou quem pretende levar a sua influência financeira, económica e militar a áreas onde nunca antes estivera?  

E a situação agrava-se particularmente pelo facto de todos conhecido de cerca de metade da Ucrânia ser russófila, ou seja, uma parte quase equivalente a metade do território em que a população ou fala predominantemente russo ou é mesmo de origem russa.

O que se passou na Ucrânia demonstra que o chamado mundo Ocidental – os Estados Unidos e os seus satélites da União Europeia- parece ter perdido completamente a noção das realidades e das proporções, estando sempre pronto, como qualquer “ana gomes”, a correr atrás de uma multidão que grite democracia e direitos disto e daquilo, independentemente de quem grita e de quaisquer que sejam as consequências para quem vai atrás de quem grita, desde que aquele contra o qual se grita já esteja previamente diabolizado pela propaganda ocidental.

E foi isso o que se passou na Ucrânia, melhor, em Kiev. Uma multidão de ucranianos pró-ocidentais, com predomínio de ultranacionalistas xenófobos, principalmente em relação à Rússia, e outra extrema-direita de matiz nazi-fascista (que, como se sabe, está longe de constituir uma novidade na Ucrânia), com completo desprezo pela opinião e posição de outra metade do país, instigada pelo “mundo livre”, tomou o poder e pretendeu impor a sua lei a todo o território. Os instigadores foram imediatamente atrás destes acontecimentos, homologando o golpe e ignorando o resto do povo. Em princípio, o agrément do Ocidente teria sido suficiente para “legitimar” o assalto e recolher dele os devidos proveitos se não se desse o caso de ali ao lado estar a Rússia.

E agora estão à vista as consequências dessa marginalização. A Rússia ocupou posições no terreno e não vai sair delas sem que o equilíbrio seja restabelecido. E apenas três vias se abrem: a guerra, a divisão da Ucrânia ou sua federalização com ampla autonomia das partes, sendo esta última a única forma de assegurar na Ucrânia uma convivência entre todos sem tentações hegemónicas, com respeito recíproco das partes, capaz de abrir o caminho a uma verdadeira democracia.

Esta solução, sendo a mais justa e razoável, é também a única que realmente interessa e convém a quem não tem uma visão imperialista do mundo e das relações internacionais. E ao contrário do que diz o comentador a soldo que a RTP mandou para Kiev, sob a falsa capa de repórter, aos russos não interessa um pretexto para impor uma solução militar. A quem esse pretexto interessa é à extrema-direita ucraniana na esperança de envolver o Ocidente numa perigosíssima disputa militar, pretexto que só ainda não conseguiu urdir por geograficamente se encontrar muito afastada das forças russas.

E também não vale a pena estar a exigir a retirada das forças russas da Crimeia sem simultaneamente aceitar e impor a deposição do governo em funções em Kiev, porque uma coisa não vai acontecer sem a outra. A busca de uma solução diplomática exige equilíbrio e sentido das realidades. Para haver eleições com o governo fascista no poder em Kiev e hostil à Rússia e aos russos, também as eleições do outro lado da Ucrânia terão de se fazer sob a protecção dos russos.

Por isso, o mais prudente é acordar o novo modelo constitucional ucraniano numa base de equilíbrio e respeito recíproco, garantindo na diferença a unidade do país.

 

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