E A NÓS, O QUE
INTERESSA?
O que está em jogo, como toda a gente percebe, é um conflito de
influências entre, por um lado, os Estados Unidos e a União Europeia (esta desempenhando o duplo
papel de ponta de lança dos interesses e da estratégia americana no leste
europeu e simultaneamente acautelando os dos seus membros mais influentes nessa
mesma região) e, por outro, a Rússia.
Aparentemente trata-se do clássico conflito de
influências em que cada um dos lados tenta ganhar vantagem sobre o outro. Mas
há no conflito ucraniano aspectos novos que, não sendo devidamente tomados em
conta, inviabilizarão a compreensão da sua verdadeira natureza e do modo de lidar com ele.
Voltando um pouco ao passado mais recente: durante a Guerra
Fria os conflitos de influência tinham sempre a mesma natureza e eram ditados
pelos mesmos objectivos. Dois sistemas em confronto, pretendendo cada uma das partes
ganhar vantagem sobre a outra agregando para o seu lado novos aderentes sempre
com vista a um objectivo comum: um sistema suplantar o outro.
Se o conflito ocorria
numa zona demarcada, por mais vozearia e propaganda que houvesse, já se sabia
antecipadamente como o conflito terminaria: mantinha-se a posição daquele que
actuou dentro da sua zona, qualquer que tivesse sido a natureza da acção desencadeada.
Se o conflito ocorria fora das zonas demarcadas, aí ele
poderia expressar-se militarmente e muitas vezes se expressou, confrontando-se os
dois sistemas não directamente mas por “interpostas pessoas”. Foi assim em
África e também na Ásia.
Na América Latina, que em rigor não era zona demarcada,
prevalecia a “doutrina Monroe”, à época velha de mais de um século, em
defesa da qual os Estados Unidos recorreram a invasões, a golpes de estado e à
instauração de ferozes ditaduras, tanto em grandes como em pequenos países.
Cuba não constitui uma excepção porque quando tudo começou não estava no horizonte
dos revolucionários o alinhamento por um dos lados em confronto. Isso só veio a
acontecer um pouco mais tarde. E quando se tornou claro o que tinha acontecido
já era aparentemente tarde para alterar o rumo dos acontecimentos. Mesmo assim,
a CIA organizou com meios aéreos e navais americanos uma invasão,
fundamentalmente integrada por exilados cubanos, que correu mal, muito mal e
deixou pelas ruas da amargura a credibilidade política do recém-empossado
Presidente Kennedy. Cerca de um ano e meio mais tarde, o campo socialista
exagerou na parada e propôs-se instalar mísseis em Cuba. O mundo esteve à beira
da guerra, mas um acordo alcançado in
extremis com muita dificuldade, e com fortes oposições tanto no Kremlin
como no Pentágono e no Congresso, conseguiu evitar a guerra e simultaneamente
assegurar a invulnerabilidade de Cuba a troco do desmantelamento dos mísseis.
Acordo que se manteve para além da Guerra Fria não obstante os Estados Unidos
durante meio século terem tentado tudo para, por meios não militares, desalojar
Castro do poder, quer impondo o bloqueio da Ilha quer tentando múltiplas vezes
o assassinato do líder cubano.
Hoje não há sistemas em confronto. A Guerra Fria acabou com a
vitória das forças capitalistas sobre o socialismo. A Queda do Muro e a
desagregação da União Soviética simbolizam e corporizam essa vitória muito mais
eloquentemente do que qualquer outro acontecimento. Os 15 Estados que
recobraram a independência com o fim do modelo federal soviético tornaram-se
capitalistas, Rússia inclusive, como qualquer outro existente no lado do campo
até então adverso. Nesses Estados, o processo de apropriação dos bens antes
colectivizados traduziu-se, em todos eles, num verdadeiro saque, o mesmo tendo
acontecido, posto que em proporções diferentes e mediante um processo de
mascaramento jurídico, nos demais Estados antes integrantes do Pacto de
Varsóvia.
Até neste processo há interessantes semelhanças entre uns e
outros, entre os de lado de cá e os do lado de lá, já que tanto nuns como
noutros o capitalismo foi precedido de um processo de acumulação primitiva que
lhe permitiu depois consolidar-se. Com a diferença de que no Leste esse
processo foi mais rápido, porque o capital estava mais à mão e já constituído,
carecendo apenas de mudar de dono e de sentido.
Então, se há tantas semelhanças porquê o conflito. Bem. Os
dois sistemas estavam altamente militarizados e armados, tendo cada um deles a
respectiva aliança militar, também elas com áreas demarcadas de actuação e com
princípios comuns: qualquer ataque a um membro da respectiva aliança seria
considerado como um ataque a todas as demais partes.
Então, se havia dois blocos antagónicos e um deles se
extinguiu, tendo deixado de o ser, deixou de haver blocos antagónicos, não
havendo igualmente razão para que se mantenham as respectivas alianças
militares, uma vez que a ameaça (decorrente do confronto de dois sistemas
antagónicos) deixou de existir. E assim aconteceu a Leste. O pacto de Varsóvia
extinguiu-se. Mas a Oeste não aconteceu nada de semelhante. A NATO não se
extinguiu. Pelo contrário, ampliou-se, tanto no número de membros, como no seu
campo de actuação.
A NATO é hoje composta por 28 Estados, quando antes - durante
a Guerra Fria – tinha apenas 16 membros. Dos 12 novos que agora a integram 10
pertenciam ao Pacto de Varsóvia, quer como Estados independentes, quer como
repúblicas federadas da União Soviética e 2 eram neutrais (ou estavam
integrados numa federação neutral – a Jugoslávia).
Se de um lado o bloco se dissolveu e do outro se ampliou indo
toda essa ampliação no sentido de nele integrar ou tentar integrar aqueles que antes
pertenciam ao Pacto de Varsóvia com excepção da Rússia e (até ver) das
ex-repúblicas federadas da União Soviética situadas na Ásia (Cazaquistão,
Quirguistão, Uzbequistão, Turquemenistão e Tadjiquistão) é natural, é
perfeitamente natural, que a Rússia como primeiro e mais importante grande país
saído da URSS se sinta cercada por uma política que visa situar na periferia
das suas fronteiras (no Báltico, no centro, no leste e no sul europeu, e ainda
no Cáucaso) uma poderosíssima aliança militar que só pode ter como inimigo
potencial aquele grande país que nela não está integrado – a Rússia.
E quanto mais o cerco se aperta, maior é o reflexo de defesa
que o cerco provoca. Daí que quando se fala em expansionismo seja necessário definir
com rigor quem realmente se expande. Quem se expande é quem por reflexo de
defesa procura romper ou impedir o cerco ou quem pretende levar a sua
influência financeira, económica e militar a áreas onde nunca antes estivera?
E a situação agrava-se particularmente pelo facto de todos
conhecido de cerca de metade da Ucrânia ser russófila, ou seja, uma parte quase
equivalente a metade do território em que a população ou fala predominantemente
russo ou é mesmo de origem russa.
O que se passou na Ucrânia demonstra que o chamado mundo
Ocidental – os Estados Unidos e os seus satélites da União Europeia- parece ter
perdido completamente a noção das realidades e das proporções, estando sempre
pronto, como qualquer “ana gomes”, a
correr atrás de uma multidão que grite democracia e direitos disto e daquilo,
independentemente de quem grita e de quaisquer que sejam as consequências para
quem vai atrás de quem grita, desde que aquele contra o qual se grita já esteja
previamente diabolizado pela propaganda ocidental.
E foi isso o que se passou na Ucrânia, melhor, em Kiev. Uma
multidão de ucranianos pró-ocidentais, com predomínio de ultranacionalistas xenófobos,
principalmente em relação à Rússia, e outra extrema-direita de matiz nazi-fascista
(que, como se sabe, está longe de constituir uma novidade na Ucrânia), com
completo desprezo pela opinião e posição de outra metade do país, instigada pelo
“mundo livre”, tomou o poder e pretendeu impor a sua lei a todo o território.
Os instigadores foram imediatamente atrás destes acontecimentos, homologando o golpe
e ignorando o resto do povo. Em princípio, o agrément do Ocidente teria sido suficiente para “legitimar” o
assalto e recolher dele os devidos proveitos se não se desse o caso de ali ao
lado estar a Rússia.
E agora estão à vista as consequências dessa marginalização.
A Rússia ocupou posições no terreno e não vai sair delas sem que o equilíbrio
seja restabelecido. E apenas três vias se abrem: a guerra, a divisão da Ucrânia
ou sua federalização com ampla autonomia das partes, sendo esta última a única
forma de assegurar na Ucrânia uma convivência entre todos sem tentações
hegemónicas, com respeito recíproco das partes, capaz de abrir o caminho a uma
verdadeira democracia.
Esta solução, sendo a mais justa e razoável, é também a única
que realmente interessa e convém a quem não tem uma visão imperialista do mundo
e das relações internacionais. E ao contrário do que diz o comentador a soldo
que a RTP mandou para Kiev, sob a falsa capa de repórter, aos russos não
interessa um pretexto para impor uma solução militar. A quem esse pretexto
interessa é à extrema-direita ucraniana na esperança de envolver o Ocidente numa
perigosíssima disputa militar, pretexto que só ainda não conseguiu urdir por
geograficamente se encontrar muito afastada das forças russas.
E também não vale a pena estar a exigir a retirada das forças
russas da Crimeia sem simultaneamente aceitar e impor a deposição do governo em
funções em Kiev, porque uma coisa não vai acontecer sem a outra. A busca de uma
solução diplomática exige equilíbrio e sentido das realidades. Para haver
eleições com o governo fascista no poder em Kiev e hostil à Rússia e aos russos,
também as eleições do outro lado da Ucrânia terão de se fazer sob a protecção
dos russos.
Por isso, o mais prudente é acordar o novo modelo
constitucional ucraniano numa base de equilíbrio e respeito recíproco, garantindo
na diferença a unidade do país.
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