domingo, 2 de março de 2014

NA PERIFERIA DA RÚSSIA


 

UM APONTAMENTO SOBRE A QUESTÃO DAS NACIONALIDADES NA URSS E SUAS SEQUELAS



 

Lenine desconfiava do chauvinismo e do imperialismo russo e tinha-o permanentemente presente na questão das nacionalidades. A questão das nacionalidades foi das mais discutidas nos primórdios da Revolução de Outubro, durante e depois da Guerra Civil. Antes da constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e já depois de as potências da Europa ocidental terem abandonado o território do antigo Império Russo, em finais de 1919, o Comité Central e o Politburo do Partido Bolchevique, dando cumprimento, por um lado, às promessas de autodeterminação dos povos oprimidos e temendo, por outro, que as potências regionais da Europa oriental e da Ásia ocidental (Turquia, Finlândia e Polónia) fossem instrumentalizadas para atacar o comunismo soviético na periferia do território herdado do Império dos Czares, criaram em 1919 os Estados soviéticos independentes da Ucrânia, da Letónia e da Bielorrússia e em 1920 o Azerbaijão, a Arménia e a Geórgia, integrados na Federação Transcaucasiana, embora já antes, em 1918, Estaline tivesse redigido os decretos de reconhecimento das independências da Estónia e da Lituânia.

Contrariamente ao que por vezes se tenta fazer crer, em alguns destes novéis Estados não havia antes da sua constituição fronteiras naturais ou étnicas definidas. O Azerbaijão, por exemplo, nunca tinha existido e outros por terem oscilado de dependência também tinham complicações fronteiriças que se mantêm até hoje. Por outro lado, embora houvesse um sentimento nacionalista em muitas regiões da periferia do Império, ele era mais de recusa do chauvinismo russo do que propriamente de um verdadeiro desejo de independência, além de que em alguns desses territórios a presença russa era muito forte e mesmo naqueles onde a etnia nacional era demograficamente dominante a sua cultura era russófila, como era o caso da Bielorrússia e da Ucrânia.

O problema das nacionalidades mesmo sem ser tratado no contexto de uma revolução profundamente transformadora das estruturas económicas e mentais, como era o caso da Revolução de Outubro, tinha histórias e experiências diferentes no ocidente e no oriente europeu. No Ocidente europeu dominava o Estado nação, mesmo quando a nação era feita pelo Estado, enquanto a experiência do Império Austro-Húngaro e do Império Otomano era a de grandes extensões territoriais constituídas por agrupamentos nacionais relativamente autónomos.

Por haver histórias diferentes a ocidente e a leste e também por se estar na presença de uma situação revolucionária nova que herdava um império gigantesco, é que a questão das nacionalidades foi discutidíssima nos primórdios da Revolução de Outubro e continuou a ser uma questão nevrálgica durante toda a existência da União Soviética, apesar de alguns, menos avisados, a partir de certa altura terem suposto que a questão das nacionalidades estava superada.

A primeira grande questão que se pôs a propósito do estatuto constitucional daquele imenso território herdado do czarismo foi a de saber como estruturar politicamente a ligação entre a Rússia e os territórios cuja autonomia ou a independência haviam sido reconhecidas pela Revolução.

Estaline, Comissário do Povo para as Nacionalidades, pretendia, à semelhança do que já estava negociado com a Ucrânia, incorporar as novas repúblicas na federação russa como repúblicas autónomas, unificando, sempre que a situação o justificasse, a gestão centralizada de determinados sectores, como os transportes, por exemplo. A primeira ideia foi, portanto, a de constituir uma imensa federação no seio da Rússia. Mas o Comité Central opôs-se a essa orientação. Lenine entendia que as concessões constitucionais arbitradas nos primeiros tempos da Revolução tinham de ser mantidas. A própria Ucrânia, segundo Lenine, não poderia ser incorporada como república autónoma. Estaline foi cedendo gradualmente, tendo começado por aceitar uma União das novas repúblicas com a Federação Russa, mas essa construção ainda não correspondia à ideia de Lenine e de outros para os quais o chauvinismo russo continuava a constituir potencialmente um factor de adulteração dos princípios socialistas. Para a corrente dominante era essencial que as novas repúblicas entrassem na nova “construção constitucional” em pé de igualdade com a Federação Russa. Ou seja, era preciso demarcar fronteiras à Rússia, tal com se demarcavam à Ucrânia, à Bielorrússia e a todas as demais repúblicas.

É conveniente que se diga antes de prosseguir que a própria criação das repúblicas autónomas no seio da Federação Russa não foi despida de controvérsia. A entrega do poder aos grupos étnicos autónomos (Bashkirs, Tártaros, Kirgiz, Chuvash, Vots, Finlandeses Carelianos, etc., etc.) não agradava aos russos que se sentiam reduzidos a uma espécie de cidadãos de segunda...onde antes eram de primeiríssima categoria. Só mesmo a profunda ignorância e uma propaganda de terceira categoria pode fazer crer que a Revolução não fez um esforço gigantesco para melhorar as condições de vida dos não russos, como qualquer historiador digno desse nome obviamente confirma.

O objectivo dos bolcheviques era destruir o velho Império e os seus mitos coloniais sem contudo criar uma miríade de Estados separados ou fomentar uma desagregação que seria fatal para a sorte da Revolução. Só que não havia modelo nem paradigma, num mundo ainda dominado pelos impérios coloniais geograficamente contínuos ou descontínuos não havia nada que pudesse ser copiado. Era preciso inventar tudo. Criar tudo de novo. E é então na sequência das profundas e demoradas discussões atrás referidas e das negociações com os representantes das novas repúblicas que em 31 de Dezembro de 1922 é assinado o tratado de constituição da URSS composta pela Rússia, a Ucrânia, a Bielorrússia e a Federação Transcaucasiana, que englobava o Azerbaijão, a Geórgia e a Arménia.

A situação mais complexa e a mais difícil de resolver e que levou mesmo ao grande conflito entre Lenine, já muito doente e quase no fim da vida, e Estaline, foi a questão da Geórgia, das relações do Partido Bolchevique com os comunistas da Geórgia. 

Os georgianos pretendiam que a Geórgia entrasse na União Soviética como estado autónomo, em igualdade com a Ucrânia e com a Bielorrússia. Estaline entendia, principalmente por razões geoestratégicas, que não havia razões para desmembrar a Federação Transcaucasiana, argumentando em defesa da sua tese (para efeitos externos) com os laços de solidariedade que se tinham criado entre os povos do Cáucaso durante a Guerra Civil e a guerra contra as potências estrangeiras. Na realidade, Estaline temia a influência da Turquia e a sua instrumentalização pelas potências ocidentais na desagregação de uma zona tão nevrálgica e simultaneamente tão vulnerável como a do Cáucaso.

Lenine, apesar de sempre distinguir entre o nacionalismo do opressor e o do oprimido, acabou por dar razão a Estaline nesta questão, convencendo os georgianos a aceitar a sua entrada na União integrados na Federação Transcaucasiana. Mas o Cáucaso que sempre foi e continua a ser até hoje uma fonte de complicações tinha outros problemas para resolver. Por um lado, havia os enclaves azeris no território da Arménia e os enclaves arménios de Nagorno-Karabakh no Azerbaijão. E tanto o Azerbaijão como a Arménia queriam a integração desses territórios, apesar da descontinuidade geográfica, nas respectivas repúblicas. Por outro, no que respeita à Geórgia, havia o problema da Ossétia do Sul e da Abkasia que se recusavam integrar a República da Geórgia, contrariando a vontade dos comunistas georgianos que queriam que aqueles territórios fizessem parte da nova república. Além de que no Cáucaso do norte havia ainda para complicar mais as coisas a presença dos Cossacos do Cáucaso que não aceitavam ficar na dependência da Federação Transcaucasiana nem ceder as terras que tinham conquistado nos tempos dos czares aos seus ancestrais proprietários.

Para cativar os muçulmanos, não apenas os do Cáucaso, mas também os da longa franja meridional da Rússia, e retirar argumentos ou pretextos à Turquia para intervir ou instabilizar o Azerbaijão, as pretensões do Azerbaijão foram satisfeitas para desagrado da Arménia. Vê-se agora, em consequência da desagregação da URSS, que a questão, como é óbvio, não ficou resolvida com essa cedência, tendo desde o fim da década de 80 até meados da de 90 havido sérios confrontos entre arménios e azeris pelo controlo do território que continua a ser maioritariamente habitado por arménios. O enclave é hoje uma das Repúblicas do Cáucaso não reconhecidas pela comunidade internacional, podendo a todo o momento num contexto de crise voltar a deflagrar o conflito entre as duas partes.

No que toca à Geórgia, Estaline, que conhecia a região e os seus problemas melhor que ninguém, dadas as suas origens, não estava de acordo com as pretensões dos comunistas georgianos. Sabia que tanto a Abekásia como a Ossétia tinham histórias, culturas e até línguas diferentes das da Geórgia, além de que via na teimosia georgiana um perigoso sintoma nacionalista que urgia contrariar. Depois de uma relativa humilhação pública sofrida num comício em Tbilisi, em que teve como resposta às suas palavras um profundo silêncio em contraste com os aplausos generosos tributados a um orador menchevique que concordava com o ponto vista dos comunistas georgianos, Estaline resolveu a questão a seu modo: substituiu os camaradas georgianos que se opunham às suas teses por outros georgianos que as aceitavam.

Foi este acto que levou a um grande conflito com Lenine e ao pedido de instauração de um inquérito disciplinar, não apenas a ele, mas a todos os que o acompanharam na “questão georgiana”, que depois, com o agravamento da doença de Lenine e subsequente morte, acabou por não dar em nada.

Os métodos usados por Estaline na “questão georgiana” eram politicamente condenáveis, mas hoje a moderna historiografia, nomeadamente a Ocidental, tende a dar-lhe razão quanto ao fundo. De facto, a Abkasia e a Ossétia não são georgianas.

O pior é que com o andar dos tempos, principalmente a partir da década de trinta, as belas palavras de Estaline sobre o fomento da língua, dos costumes, da cultura dos povos das novas repúblicas como único meio de tornar o socialismo cativante para as nações antes submetidas ao jugo dos czares foram ficando gradualmente cada vez mais afastadas da prática e, ao que parece, por puro cálculo político, Estaline voltou a dar um papel de grande destaque aos russos na condução de toda a União, não obstante a manutenção de uma retórica que poderia indiciar o contrário.

Estaline era um político muito hábil e também um grande estadista, mais do que um revolucionário. Muita gente pensa que quando se usa a força como argumento não é preciso saber actuar politicamente. É falso. A manutenção no poder daquilo que hoje é comum chamar-se um ditador exige tanta perícia politica como a continuidade no poder por via dos chamados procedimentos democráticos, quaisquer que sejam os meios de coerção à disposição. Sem consenso, nenhum governante se aguenta, variando obviamente a extensão desse consenso em função das características e da cultura política de cada povo. E Estaline cedo terá percebido que um Estado com a extensão da URSS, cuja maior fatia era constituída pela Rússia milenar, não poderia ser governado por um “estrangeiro”, apesar das profundas mudanças de mentalidade que a Revolução tinha em vista alcançar, se esse “estrangeiro” não desse provas inequívocas de identificação com o essencial da “alma russa”. Talvez por isso, nos momentos de descontracção, em jantares privados ou até públicos depois de estabelecida a convivialidade do anfitrião com os convidados, Estaline não se coibia de a si próprio se identificar “como um asiático georgiano russificado”. Com esta definição dizia tudo: anti-ocidental, oriundo de uma das novas repúblicas independentes e de cultura russa.

Mas não foi apenas a concessão de um exagerado papel de destaque aos russos na condução da União que caracterizou a governação de Estaline a partir da década de trinta, foi também um abrandamento ou mesmo a subversão dos princípios com que nos primórdios da Revolução fora tratada a questão das nacionalidades, porventura por supor que afastadas as primitivas “dissidências” não se correriam doravante os mesmos perigos de ressurgimento do “nacionalismo pequeno-burguês” que antes estavam permanentemente presentes. E assim a sua política oscilou entre medidas de grande brutalidade, como a transferência forçada dos tártaros, e a aceitação de posições que antes havia terminantemente recusado, como a inclusão da Ossétia do Sul e da Abkásia na Geórgia. 

Mais tarde, Khrushchev, por razões difíceis de explicar, salvo as que resultam do seu irreprimível voluntarismo, resolveu integrar a Crimeia na Ucrânia como “prenda” pelo 300.º aniversário da unificação da Rússia e da Ucrânia. A Crimeia, terra por onde no decurso de séculos passou muita gente do Oriente e do Ocidente dada a sua privilegiada situação estratégica e que politicamente foi estando ao longo da sua história sob diversos domínios, foi incorporada no Império Russo em fins século XVIII.

Estrategicamente situada entre o Mar Negro e o mar Azov, ligada à Ucrânia por um istmo e separada da Rússia por um estreito, a Crimeia, russificada pelos czares e herdada já russa pela Revolução, dominantemente povoada por russos, foi palco de violentes batalhas durante a II Guerra Mundial, na sequência da qual foram deportados em 1944 os Tártaros da Crimeia, que todavia não eram etnicamente dominantes. Neste quadro, a sua integração na República Socialista e Soviética da Ucrânia, em 1954, não tinha qualquer justificação, salvo o facto irrelevante, do ponto de vista das nacionalidades, de constituir geograficamente uma espécie de apêndice do território ucraniano.

Exactamente por se tratar de um território sem cultura e sem tradições ucranianas, mas antes de fortíssima influência cultural e demográfica russa, se torna pouco compreensível a decisão de Khrushchev. O facto de ele ter vivido desde muito novo na Ucrânia, em Donetsk, nada poderá explicar já que tal circunstância, em qualquer contexto, seria absolutamente irrelevante para o efeito em causa; também não se vislumbra qual a racionalidade de uma decisão colegial que aliás só poderia dar lugar a novas mexidas num xadrez complexo e sempre muito sensível como era o das fronteiras e territórios das repúblicas federadas; como último ratio poderá aventar-se o facto de a integração constituir uma espécie de dádiva ao Partido Comunista da Ucrânia retribuível com o apoio à posição de Khrushchev no Kremlin – uma posição que, como se sabe agora, nunca esteve muito consolidada.

Seja como for, a verdade é que para além das naturais dificuldades e problemas geoestratégicos levantados pela desagregação da URSS que afectam em primeira linha a actual Federação Russa, como parte principal dessa “herança” e grande potência mundial, nomeadamente no plano militar, essa desagregação não deixou ainda de suscitar desde há mais duas décadas a velha voracidade das potências europeias pelo alargamento das suas áreas de influência e a tentação hegemónica dos Estados Unidos nos quatro cantos do mundo. Por outro lado, para além dos problemas levantados pela própria desagregação e da recomposição de forças que ela originou, há ainda os problemas resultantes das “questões mal resolvidas” que ressurgem em momentos de crise com inusitada ferocidade como é agora o caso da Crimeia e também já foi num passado recente o da Abkasia e da Ossétia do Sul, além do de Nagorno-Karabakh

E ninguém pode esperar, principalmente com base nos “procedimentos” recentemente usados na Ucrânia, que uma grande potência como a Rússia assista impassível ao desenrolar de acontecimentos da maior importância na proximidade das suas fronteiras, que afectam os seus interesses nacionais e a sua segurança, sabendo-se que esses mesmos acontecimentos, para além das razões endógenas que os ditaram, estão sendo aproveitados e instigados por outros países para defesa dos seus próprios interesses e conquista de posições geoestratégicas.

As coisas são como são e um dos fenómenos que não pode nem deve ser desprezado nos tempos que correm, por mais que se pense o contrário, é problema nacional que tende sempre a sobrepor-se às demais considerações, não passando a defesa de posições ideológicas, como aquelas que o Ocidente invocava durante a Guerra Fria e continua frequentemente a invocar agora para conquistar posições ou para fazer a guerra a quem contraria os seus desígnios imperiais, de um disfarce ou de uma hipócrita justificação para tentar alcançar ou segurar o que já supunha ter ao alcance da mão.

Será igualmente errado supor que as coisas se passarão agora como se passavam no tempo da Guerra Fria. Não será assim. Agora já não há Estados socialistas, que não tinham qualquer semelhança com os Estados capitalistas, apesar da perversão que tantas vezes acompanhou a concretização do conceito. Agora tudo será diferente e muito mais perigoso.

Por fim, também ninguém se espante por aos russos se abrir um leque de opções para “normalizar” a situação na Ucrânia, nomeadamente na Ucrânia russófila do sul e do sudeste bem como obviamente na Crimeia, com base nos precedentes abertos pelos americanos e Israel, e sempre  aceites pelos seus complacentes aliados. Cada um tem o Kosovo que merece ou até o Iraque. Mas basta o Kosovo…

 

 

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