UM APONTAMENTO SOBRE A
QUESTÃO DAS NACIONALIDADES NA URSS E SUAS SEQUELAS
Lenine desconfiava do chauvinismo e do imperialismo russo e
tinha-o permanentemente presente na questão das nacionalidades. A questão das nacionalidades
foi das mais discutidas nos primórdios da Revolução de Outubro, durante e
depois da Guerra Civil. Antes da constituição da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) e já depois de as potências da Europa ocidental
terem abandonado o território do antigo Império Russo, em finais de 1919, o
Comité Central e o Politburo do Partido Bolchevique, dando cumprimento, por um lado, às promessas de autodeterminação dos povos oprimidos e temendo, por outro, que as potências
regionais da Europa oriental e da Ásia ocidental (Turquia, Finlândia e Polónia)
fossem instrumentalizadas para atacar o comunismo soviético na periferia do
território herdado do Império dos Czares, criaram em 1919 os Estados soviéticos
independentes da Ucrânia, da Letónia e da Bielorrússia e em 1920 o Azerbaijão,
a Arménia e a Geórgia, integrados na Federação Transcaucasiana, embora já antes,
em 1918, Estaline tivesse redigido os decretos de reconhecimento das independências da Estónia e
da Lituânia.
Contrariamente ao que por vezes se tenta fazer crer, em
alguns destes novéis Estados não havia antes da sua constituição fronteiras
naturais ou étnicas definidas. O Azerbaijão, por exemplo, nunca tinha existido
e outros por terem oscilado de dependência também tinham complicações
fronteiriças que se mantêm até hoje. Por outro lado, embora houvesse um
sentimento nacionalista em muitas regiões da periferia do Império, ele era mais
de recusa do chauvinismo russo do que propriamente de um verdadeiro desejo de
independência, além de que em alguns desses territórios a presença russa era
muito forte e mesmo naqueles onde a etnia nacional era demograficamente dominante
a sua cultura era russófila, como era o caso da Bielorrússia e da Ucrânia.
O problema das nacionalidades mesmo sem ser tratado no
contexto de uma revolução profundamente transformadora das estruturas económicas
e mentais, como era o caso da Revolução de Outubro, tinha histórias e
experiências diferentes no ocidente e no oriente europeu. No Ocidente europeu
dominava o Estado nação, mesmo quando a nação era feita pelo Estado, enquanto a
experiência do Império Austro-Húngaro e do Império Otomano era a de grandes
extensões territoriais constituídas por agrupamentos nacionais relativamente
autónomos.
Por haver histórias diferentes a ocidente e a leste e também
por se estar na presença de uma situação revolucionária nova que herdava um império
gigantesco, é que a questão das nacionalidades foi discutidíssima nos
primórdios da Revolução de Outubro e continuou a ser uma questão nevrálgica durante
toda a existência da União Soviética, apesar de alguns, menos avisados, a partir de certa altura terem
suposto que a questão das nacionalidades estava superada.
A primeira grande questão que se pôs a propósito do estatuto
constitucional daquele imenso território herdado do czarismo foi a de saber
como estruturar politicamente a ligação entre a Rússia e os territórios cuja
autonomia ou a independência haviam sido reconhecidas pela Revolução.
Estaline, Comissário do Povo para as Nacionalidades,
pretendia, à semelhança do que já estava negociado com a Ucrânia, incorporar as
novas repúblicas na federação russa como repúblicas autónomas, unificando, sempre
que a situação o justificasse, a gestão centralizada de determinados sectores, como os
transportes, por exemplo. A primeira ideia foi, portanto, a de constituir uma
imensa federação no seio da Rússia. Mas o Comité Central opôs-se a essa
orientação. Lenine entendia que as concessões constitucionais arbitradas nos
primeiros tempos da Revolução tinham de ser mantidas. A própria Ucrânia,
segundo Lenine, não poderia ser incorporada como república autónoma. Estaline
foi cedendo gradualmente, tendo começado por aceitar uma União das novas
repúblicas com a Federação Russa, mas essa construção ainda não correspondia à
ideia de Lenine e de outros para os quais o chauvinismo russo continuava a
constituir potencialmente um factor de adulteração dos princípios socialistas.
Para a corrente dominante era essencial que as novas repúblicas entrassem na
nova “construção constitucional” em pé de igualdade com a Federação Russa. Ou
seja, era preciso demarcar fronteiras à Rússia, tal com se demarcavam à Ucrânia, à Bielorrússia e a todas as demais repúblicas.
É conveniente que se diga antes de prosseguir que a própria
criação das repúblicas autónomas no seio da Federação Russa não foi despida de
controvérsia. A entrega do poder aos grupos étnicos autónomos (Bashkirs,
Tártaros, Kirgiz, Chuvash, Vots, Finlandeses Carelianos, etc., etc.) não
agradava aos russos que se sentiam reduzidos a uma espécie de cidadãos de
segunda...onde antes eram de primeiríssima categoria. Só mesmo a profunda
ignorância e uma propaganda de terceira categoria pode fazer crer que a
Revolução não fez um esforço gigantesco para melhorar as condições de vida dos
não russos, como qualquer historiador digno desse nome obviamente confirma.
O objectivo dos bolcheviques era destruir o velho Império e
os seus mitos coloniais sem contudo criar uma miríade de Estados separados ou
fomentar uma desagregação que seria fatal para a sorte da Revolução. Só que não
havia modelo nem paradigma, num mundo ainda dominado pelos impérios coloniais
geograficamente contínuos ou descontínuos não havia nada que pudesse ser
copiado. Era preciso inventar tudo. Criar tudo de novo. E é então na sequência
das profundas e demoradas discussões atrás referidas e das negociações com os
representantes das novas repúblicas que em 31 de Dezembro de 1922 é assinado o
tratado de constituição da URSS composta pela Rússia, a Ucrânia, a Bielorrússia
e a Federação Transcaucasiana, que englobava o Azerbaijão, a Geórgia e a
Arménia.
A situação mais complexa e a mais difícil de resolver e que
levou mesmo ao grande conflito entre Lenine, já muito doente e quase no fim da
vida, e Estaline, foi a questão da Geórgia, das relações do Partido Bolchevique
com os comunistas da Geórgia.
Os georgianos pretendiam que a Geórgia entrasse na União
Soviética como estado autónomo, em igualdade com a Ucrânia e com a
Bielorrússia. Estaline entendia, principalmente por razões geoestratégicas, que
não havia razões para desmembrar a Federação Transcaucasiana, argumentando em
defesa da sua tese (para efeitos externos) com os laços de solidariedade que se
tinham criado entre os povos do Cáucaso durante a Guerra Civil e a guerra
contra as potências estrangeiras. Na realidade, Estaline temia a influência da
Turquia e a sua instrumentalização pelas potências ocidentais na desagregação
de uma zona tão nevrálgica e simultaneamente tão vulnerável como a do Cáucaso.
Lenine, apesar de sempre distinguir entre o nacionalismo do
opressor e o do oprimido, acabou por dar razão a Estaline nesta questão,
convencendo os georgianos a aceitar a sua entrada na União integrados na
Federação Transcaucasiana. Mas o Cáucaso que sempre foi e continua a ser até
hoje uma fonte de complicações tinha outros problemas para resolver. Por um
lado, havia os enclaves azeris no território da Arménia e os enclaves arménios
de Nagorno-Karabakh no Azerbaijão. E tanto o Azerbaijão como a Arménia queriam a
integração desses territórios, apesar da descontinuidade geográfica, nas
respectivas repúblicas. Por outro, no que respeita à Geórgia, havia o problema da
Ossétia do Sul e da Abkasia que se recusavam integrar a República da Geórgia,
contrariando a vontade dos comunistas georgianos que queriam que aqueles
territórios fizessem parte da nova república. Além de que no Cáucaso do norte
havia ainda para complicar mais as coisas a presença dos Cossacos do Cáucaso
que não aceitavam ficar na dependência da Federação Transcaucasiana nem ceder
as terras que tinham conquistado nos tempos dos czares aos seus ancestrais proprietários.
Para cativar os muçulmanos, não apenas os do Cáucaso, mas
também os da longa franja meridional da Rússia, e retirar argumentos ou
pretextos à Turquia para intervir ou instabilizar o Azerbaijão, as pretensões
do Azerbaijão foram satisfeitas para desagrado da Arménia. Vê-se agora, em
consequência da desagregação da URSS, que a questão, como é óbvio, não ficou
resolvida com essa cedência, tendo desde o fim da década de 80 até meados da de
90 havido sérios confrontos entre arménios e azeris pelo controlo do território
que continua a ser maioritariamente habitado por arménios. O enclave é hoje uma
das Repúblicas do Cáucaso não reconhecidas pela comunidade internacional,
podendo a todo o momento num contexto de crise voltar a deflagrar o conflito
entre as duas partes.
No que toca à Geórgia, Estaline, que conhecia a região e os
seus problemas melhor que ninguém, dadas as suas origens, não estava de acordo
com as pretensões dos comunistas georgianos. Sabia que tanto a Abekásia como a
Ossétia tinham histórias, culturas e até línguas diferentes das da Geórgia,
além de que via na teimosia georgiana um perigoso sintoma nacionalista que
urgia contrariar. Depois de uma relativa humilhação pública sofrida num comício
em Tbilisi, em que teve como resposta às suas palavras um profundo silêncio em
contraste com os aplausos generosos tributados a um orador menchevique que
concordava com o ponto vista dos comunistas georgianos, Estaline resolveu a
questão a seu modo: substituiu os camaradas georgianos que se opunham às suas
teses por outros georgianos que as aceitavam.
Foi este acto que levou a um grande conflito com Lenine e ao
pedido de instauração de um inquérito disciplinar, não apenas a ele, mas a
todos os que o acompanharam na “questão georgiana”, que depois, com o agravamento
da doença de Lenine e subsequente morte, acabou por não dar em nada.
Os métodos usados por Estaline na “questão georgiana” eram
politicamente condenáveis, mas hoje a moderna historiografia, nomeadamente a
Ocidental, tende a dar-lhe razão quanto ao fundo. De facto, a Abkasia e a
Ossétia não são georgianas.
O pior é que com o andar dos tempos, principalmente a partir
da década de trinta, as belas palavras de Estaline sobre o fomento da língua,
dos costumes, da cultura dos povos das novas repúblicas como único meio de
tornar o socialismo cativante para as nações antes submetidas ao jugo dos
czares foram ficando gradualmente cada vez mais afastadas da prática e, ao que parece,
por puro cálculo político, Estaline voltou a dar um papel de grande destaque
aos russos na condução de toda a União, não obstante a manutenção de uma
retórica que poderia indiciar o contrário.
Estaline era um político muito hábil e também um grande
estadista, mais do que um revolucionário. Muita gente pensa que quando se usa a
força como argumento não é preciso saber actuar politicamente. É falso. A
manutenção no poder daquilo que hoje é comum chamar-se um ditador exige tanta
perícia politica como a continuidade no poder por via dos chamados
procedimentos democráticos, quaisquer que sejam os meios de coerção à disposição.
Sem consenso, nenhum governante se aguenta, variando obviamente a extensão
desse consenso em função das características e da cultura política de cada
povo. E Estaline cedo terá percebido que um Estado com a extensão da URSS, cuja
maior fatia era constituída pela Rússia milenar, não poderia ser governado por
um “estrangeiro”, apesar das profundas mudanças de mentalidade que a Revolução
tinha em vista alcançar, se esse “estrangeiro” não desse provas inequívocas de
identificação com o essencial da “alma russa”. Talvez por isso, nos momentos de
descontracção, em jantares privados ou até públicos depois de estabelecida a
convivialidade do anfitrião com os convidados, Estaline não se coibia de a si
próprio se identificar “como um asiático georgiano russificado”. Com esta definição
dizia tudo: anti-ocidental, oriundo de uma das novas repúblicas independentes e
de cultura russa.
Mas não foi apenas a concessão de um exagerado papel de
destaque aos russos na condução da União que caracterizou a governação de
Estaline a partir da década de trinta, foi também um abrandamento ou mesmo a subversão
dos princípios com que nos primórdios da Revolução fora tratada a questão das
nacionalidades, porventura por supor que afastadas as primitivas “dissidências”
não se correriam doravante os mesmos perigos de ressurgimento do “nacionalismo
pequeno-burguês” que antes estavam permanentemente presentes. E assim a sua
política oscilou entre medidas de grande brutalidade, como a transferência
forçada dos tártaros, e a aceitação de posições que antes havia terminantemente
recusado, como a inclusão da Ossétia do Sul e da Abkásia na Geórgia.
Mais tarde, Khrushchev, por razões difíceis de explicar,
salvo as que resultam do seu irreprimível voluntarismo, resolveu integrar a
Crimeia na Ucrânia como “prenda” pelo 300.º aniversário da unificação da Rússia
e da Ucrânia. A Crimeia, terra por onde no decurso de séculos passou muita
gente do Oriente e do Ocidente dada a sua privilegiada situação estratégica e
que politicamente foi estando ao longo da sua história sob diversos domínios,
foi incorporada no Império Russo em fins século XVIII.
Estrategicamente situada entre o Mar Negro e o mar Azov,
ligada à Ucrânia por um istmo e separada da Rússia por um estreito, a Crimeia,
russificada pelos czares e herdada já russa pela Revolução, dominantemente
povoada por russos, foi palco de violentes batalhas durante a II Guerra
Mundial, na sequência da qual foram deportados em 1944 os Tártaros da Crimeia,
que todavia não eram etnicamente dominantes. Neste quadro, a sua integração na
República Socialista e Soviética da Ucrânia, em 1954, não tinha qualquer
justificação, salvo o facto irrelevante, do ponto de vista das nacionalidades,
de constituir geograficamente uma espécie de apêndice do território ucraniano.
Exactamente por se tratar de um território sem cultura e sem
tradições ucranianas, mas antes de fortíssima influência cultural e demográfica
russa, se torna pouco compreensível a decisão de Khrushchev. O facto de ele ter
vivido desde muito novo na Ucrânia, em Donetsk, nada poderá explicar já que tal
circunstância, em qualquer contexto, seria absolutamente irrelevante para o
efeito em causa; também não se vislumbra qual a racionalidade de uma decisão
colegial que aliás só poderia dar lugar a novas mexidas num xadrez complexo e
sempre muito sensível como era o das fronteiras e territórios das repúblicas
federadas; como último ratio poderá aventar-se o facto de a integração
constituir uma espécie de dádiva ao Partido Comunista da Ucrânia retribuível
com o apoio à posição de Khrushchev no Kremlin – uma posição que, como se sabe
agora, nunca esteve muito consolidada.
Seja como for, a verdade é que para além das naturais
dificuldades e problemas geoestratégicos levantados pela desagregação da URSS
que afectam em primeira linha a actual Federação Russa, como parte principal
dessa “herança” e grande potência mundial, nomeadamente no plano militar, essa
desagregação não deixou ainda de suscitar desde há mais duas décadas a velha
voracidade das potências europeias pelo alargamento das suas áreas de
influência e a tentação hegemónica dos Estados Unidos nos quatro cantos do
mundo. Por outro lado, para além dos problemas levantados pela própria
desagregação e da recomposição de forças que ela originou, há ainda os
problemas resultantes das “questões mal resolvidas” que ressurgem em momentos
de crise com inusitada ferocidade como é agora o caso da Crimeia e também já
foi num passado recente o da Abkasia e da Ossétia do Sul, além do de
Nagorno-Karabakh
E ninguém pode esperar, principalmente com base nos
“procedimentos” recentemente usados na Ucrânia, que uma grande potência como a
Rússia assista impassível ao desenrolar de acontecimentos da maior importância
na proximidade das suas fronteiras, que afectam os seus interesses nacionais e a sua
segurança, sabendo-se que esses mesmos acontecimentos, para além das razões
endógenas que os ditaram, estão sendo aproveitados e instigados por outros países
para defesa dos seus próprios interesses e conquista de posições
geoestratégicas.
As coisas são como são e um dos fenómenos que não pode nem
deve ser desprezado nos tempos que correm, por mais que se pense o contrário, é
problema nacional que tende sempre a sobrepor-se às demais considerações, não
passando a defesa de posições ideológicas, como aquelas que o Ocidente invocava
durante a Guerra Fria e continua frequentemente a invocar agora para conquistar
posições ou para fazer a guerra a quem contraria os seus desígnios imperiais,
de um disfarce ou de uma hipócrita justificação para tentar alcançar ou segurar
o que já supunha ter ao alcance da mão.
Será igualmente errado supor que as coisas se passarão agora
como se passavam no tempo da Guerra Fria. Não será assim. Agora já não há
Estados socialistas, que não tinham qualquer semelhança com os Estados
capitalistas, apesar da perversão que tantas vezes acompanhou a concretização
do conceito. Agora tudo será diferente e muito mais perigoso.
Por fim, também ninguém se espante por aos russos se abrir um
leque de opções para “normalizar” a situação na Ucrânia, nomeadamente na
Ucrânia russófila do sul e do sudeste bem como obviamente na Crimeia, com base
nos precedentes abertos pelos americanos e Israel, e sempre aceites pelos seus complacentes
aliados. Cada um tem o Kosovo que merece ou até o Iraque. Mas basta o Kosovo…
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