APONTAMENTOS AO CORRER DA PENA
O “Prós e Contras” de ontem tratou essencialmente da crise portuguesa no contexto da crise da dívida e do euro.
Entre o discurso cavernícola dos economistas de serviço, que por acaso até não eram os mesmos do costume, e a mítica ideia de Europa, alimentada por um discurso aparentemente crítico, mas na realidade incapaz de compreender o que realmente se passa, tudo acaba, como sempre, na inevitável convergência sobre a necessidade de “rever” as leis do trabalho e a constatação da incapacidade de tomar “as medidas que se impõem”.
Criados no pensamento único, apesar de alguns terem protagonizado dentro dessa unicidade uma reviravolta coperniciana que os fez passar directamente de Mao Tse Tung para Milton Friedman, estes nossos comentadores foram “educados” num clima político e social tributário do pensamento neoliberal em luta contra o trabalho como factor de produção organizado. Tudo o que possa desagregar e isolar o trabalhador é bom para a economia, sem que sequer lhes passe pela cabeça saber quais as reais consequências desse constante e progressivo empobrecimento da grande maioria, ou seja, de quem trabalha a um nível de retribuição médio-baixo. Isso não importa. O que interessa é que o lucro aumente e, eventualmente, a economia cresça, quando cresce, nem que seja só em proveito de alguns.
Logo, as “medidas que se impõem” são as que garantem este resultado, independentemente das consequências.
Este é o primeiro grande preconceito. Entender que o que é bom para a economia é algo que tecnicamente se exprime numa maior taxa de lucro e, eventualmente, numa taxa de crescimento, independentemente do modo como essa riqueza se redistribui, constitui um grave erro que a actual situação dramaticamente ilustra, além de ter como consequência um resultado socialmente inaceitável.
É claro que não percebendo isto os “nossos comentadores” nunca irão perceber por que há divida e défice ou, quando muito, irão, como Cavaco, imputar essa responsabilidade ao desregramento comportamental dos diversos agentes económicos, situem-se eles no Estado, na direcção das empresas ou pura e simplesmente no plano do consumo! Enfim, tudo consequência de comportamentos que um “homem certinho” jamais teria!
No caso português, o preconceito acima aludido é tão grande que nem sequer lhes permite ver aquilo que as matemáticas demonstram: os salários em Portugal não só não subiram acima da competitividade da economia, como tão-pouco são os seus custos os que, proporcionalmente, mais oneram o custo final do produto, não advindo do custo desse factor de produção a perda de competitividade das empresas.
A segunda questão que os “comentadores oficiais” tratam como uma questão técnica, embora frequentemente a refiram como questão política, é a Europa, melhor dizendo a União Europeia.
Deixando de lado a questão da Europa em toda a sua complexidade, e atendendo apenas à questão da dívida, é preciso perceber que o que neste momento está em jogo é saber se a sua reestruturação (sim, porque a dívida não poderá deixar de, mais tarde ou mais cedo, ser reestruturada) se vai fazer sob a “égide dos devedores” ou sob a “égide dos credores”. E é isto e nada mais que explica a posição da Alemanha.
A própria actuação do BCE, ao contrário do que vulgarmente se pretende fazer crer, prossegue este mesmo objectivo, com uma nuance: a de salvar os grandes devedores dos grandes credores à custa dos contribuintes dos países endividados.
A divergência que possa haver entre o BCE e a Alemanha não tem a ver com os objectivos prosseguidos, que são os mesmos, mas com as consequências que podem resultar da opção por ele adoptada para os atingir. Por outras palavras, a Alemanha receia que a actuação do BCE provoque inflação. E, entre outras consequências socialmente inconvenientes, os credores perdem com a inflação.
Portanto, é completamente falso que o BCE esteja a “ajudar” Portugal (ou outro país) ao comprar dívida no mercado secundário. Quem o BCE está a ajudar são os grandes devedores dos grandes credores à custa dos contribuintes, aos quais, reflexamente, acaba por conceder uma pequena folga quando comparado o resultado da sua actuação com o que resultaria de uma actuação pura e dura como a que o Bundesbank propõe e Merkel defende!
Mas é ainda importante que se diga, principalmente numa altura em que ninguém o diz, que o Fundo de Estabilização Financeira, vulgo "FMI", tanto na sua versão rígida (a actual) como na versão flexível (a proposta por alguns) não resolve qualquer problema, como já se está a ver com a Grécia e com a Irlanda. De facto, os efeitos normalmente associados à intervenção do "FMI" - contracção orçamental, desvalorização, inflação, crescimento - não se verificarão na zona euro. Apenas ocorrererá o primeiro que isoladamente considerado nunca poderá gerar crescimento, mas apenas e só recessão. E sem crescimento e com empréstimos a uma "benemérita" taxa de juro de cerca de 6% - que é a do FEF - jamais a dívida poderá ser paga ou sequer aliviada.
Ou seja, todas as medidas que "estão em cima da mesa" não passam de paliativos.
Saber o que vem depois ou as consequências perversas que isto possa ter para todos, inclusive para quem impõe estas políticas, é uma questão que o capitalismo em regra não coloca quando o que está em causa no imediato é a estabilidade do seu próprio sistema financeiro. Além de que a Alemanha, como a História abundantemente demonstra, tem “vistas curtas”