QUE SAÍDA?
Como muito temos aqui falado das
limitações da democracia representativa e dos problemas de legitimidade a ela
associados, talvez valha a pena republicar um texto escrito há mais de um ano
sobre este mesmo assunto, por ser hoje, porventura, mais actual do que quando
foi publicado pela primeira vez neste blogue (1/02/12).
E também seria errado supor que as deficiências
da democracia representativa estão potenciadas pelo facto de entre nós termos
um governo colaboracionista típico de países sob ocupação. Esse facto, embora
verdadeiro, não altera o essencial do que abaixo se diz sobre a crise profunda
da democracia representativa.
A
congruência da maior parte da gente que tem governado o país é, como se sabe,
nula. Dizem hoje uma coisa, amanhã fazem outra; prometem com juras solenes
cumprir um programa e antes que o eco das palavras se esbata já estão a fazer o
contrário do que prometeram.
Isto
a gente sabe. O que talvez muitos desconheçam é que estes comportamentos são
potenciados e favorecidos pela democracia representativa tal como é praticada
nos nossos dias.
Com
o tempo a democracia representativa, nomeadamente a que resulta da eleição em
listas partidárias fechadas, acabou consagrando o mandato incondicionado como
princípio incontestável, deixando de haver durante a sua vigência qualquer
possibilidade de controlo dos eleitos, salvo o que resulta da pressão da
opinião pública, cada vez mais ferreamente condicionada e manipulada pelo
poder, do establishment, que tudo faz para que a opinião pública tenda a
coincidir com a opinião publicada, sendo esta altamente limitada e controlada
pelos detentores dos órgãos de informação.
O
mandato incondicionado supostamente fundado na legitimidade eleitoral permite
ao eleito actuar com total liberdade, no contexto do cálculo político que ele
próprio faz da sua actuação em função da próxima eleição. E como entre a
prática dos actos de incumprimento das promessas e a nova eleição medeia um
lapso de tempo relativamente longo é sempre possível no clima eleitoral típico
das campanhas esbater essa questão e focar a atenção do eleitor apenas ou quase
só nas promessas relativas ao novo mandato.
O
que não significa que o eleitor esqueça completamente o que se passou antes.
Não esquece, nomeadamente em tempos de crise, mas isso não impede que no novo
mandato se repita exactamente o mesmo e assim sucessivamente. E quem se reveza
no poder também não tem, por razões óbvias, nenhum interesse em alterar este
estado de coisas.
A
eleição uninominal, embora tenda a limitar a representação dos partidos
minoritários, poderia alterar parcialmente as consequências mais gravosas da
incondicionalidade do mandato, se não fosse dar-se o caso de a eleição ser
hoje, em percentagem apreciável, determinada pelo dinheiro, principalmente se a
principal fonte (visível) de financiamento eleitoral continuar a ser o partido,
por ser ele que, em última instância, merece a confiança dos grandes
financiadores. E estaríamos passado pouco tempo caídos na mesma situação, com
inconvenientes colaterais (ausência, ou quase, de representação dos partidos
minoritários) que a eleição em lista fechada de certo modo esbate.
Talvez
seja bom recordar que duas das mais importantes questões da filosofia política
ocidental são a conservação do poder e o controlo do poder. A primeira,
largamente dominante durante séculos e que hoje renasceu com extraordinário
vigor, interessa ao príncipe; a segunda, inconsiderada durante muito
mais que um milénio, interessa ao povo. Não é aqui o lugar adequado para
descrever a longa evolução que gradualmente foi permitindo ao povo passar de
sujeito passivo do poder exercido pelo príncipe a interveniente activo
no processo político e depois a titular, ele próprio, de um poder – soberano –
cujo exercício também tinha (teoricamente) o direito de controlar.
Desde
há cerca de duzentos anos foi-se aceitando a ideia - embora, no início, com
plena consciência de todos os perigos que ela encerrava - que a “democracia
representativa” era a forma de governo que melhor permitiria ao povo
exercer o poder (através dos seus representantes eleitos) e simultaneamente
controlá-lo (por via de um conjunto de mecanismos, no essencial, actuantes a
posteriori, teoricamente destinados a inviabilizar o despotismo,
dentre os quais assume particular importância a temporalidade dos mandatos).
Contrariamente
ao que por vezes se ouve dizer, isto não significa que antes da consolidação da
democracia representativa como forma de governo não tivesse havido outras
tentativas, algumas relativamente bem conseguidas, de controlo do poder,
nomeadamente por via dos chamados corpos intermédios, que na prática
funcionavam como uma verdadeira divisão (horizontal) do poder, com a vantagem,
relativamente à actual divisão (vertical) do poder, de esse poder moderador ser
exercido por entidades pertencentes a diversos estratos sociais enquanto a
actual separação de poderes não impede que todos os poderes estejam dominados
ou hegemonizados pela mesma classe ou pelos mesmos interesses.
E
é essa a razão pela qual os maiores obstáculos ao poder hegemónico continuarem
a ser, ainda hoje, os tais corpos intermédios. Daí a luta feroz que o
capitalismo trava actualmente tanto no plano político como no ideológico para
desagregar essas forças de resistência que, apesar de bastantes debilitadas,
continuam a ser as únicas que levantam dificuldades à sua insaciável
voracidade.
Esta
quase completa ausência de controlo do poder político saído dos actos
eleitorais leva necessariamente à conclusão de que não há “aprofundamento”
possível da democracia representativa. Ela tenderá a ser, nos tempos que
correm, cada vez mais um “embuste participado” no qual os eleitores, por falta
de alternativa, intervêm de boa-fé, assegurando a quem governa a legitimidade
formal suficiente para deixar o poder constituído a coberto de qualquer
substituição inorgânica.
Portanto,
por “este lado” a coisa tem pouca saída. O “aprofundamento da democracia”
pressupõe um poder político popular que controle, sem partilha, o poder
económico e seja ideologicamente hegemónico, o que nunca acontecerá se ao
inimigo – o capital - forem facultadas as armas de destruição da própria
democracia. É essa hegemonia que é preciso conquistar. Sem ela nunca haverá
verdadeira democracia.
A
igualdade como princípio, isto é, como ponto de partida e objectivo de chegada,
é indissociável do conceito de democracia. À medida que o princípio da
igualdade foi sendo postergado e até tido, como é hoje o caso, por inimigo da
democracia por, segundo o argumento mais corrente, causar graves danos à
liberdade individual e à capacidade individual de “empreendedorismo” e à medida
que foram sendo implementadas políticas que davam expressão prática àquelas
ideias, a democracia foi perdendo terreno, a ponto de hoje se ter tornado,
nomeadamente no Ocidente, numa caricatura assente numa encenação ritual na qual
o povo participa como figurante, mas de cuja participação não tira quaisquer
vantagens. As vantagens vão integralmente para o pequeno núcleo que controla o
poder (núcleo político, económico, financeiro e também ideológico) e o exerce
em benefício próprio, arcando o povo, a maioria esmagadora do povo, com as
perdas correspondentes.
Nada
pior para a sorte de milhões de pessoas em todo mundo do que ter aqueles que
agora os governam ungidos por uma falsa concepção da legitimidade. De facto,
nada pior para o futuro colectivo do que justificar a “barbárie” que assola o
mundo ocidental com base em considerações de legitimidade quando essa
legitimidade substantivamente não existe.
Talvez
seja conveniente recordar que a democracia representativa não nasceu ungida
desta legitimidade indiscutível que hoje lhe serve de capa protectora. A
questão do mandato imperativo foi uma das mais apaixonantes discussões que
acompanharam o seu nascimento. Como chamar representante a alguém que esteja
desobrigado de cumprir o mandato? Como aceitar as consequências de actos
praticados pelo representante fora do mandato? Que valor têm tais actos para o
representado?
As
respostas parecem óbvias e todavia o mandato imperativo não logrou impor-se.
Hoje, a questão volta a ser actual. Porventura mais do que há duzentos anos. É
que nunca como agora se assistiu a uma tão grave divergência entre o poder
concedido e o poder exercido.
Como
resolver? Uma coisa certa: se a democracia só puder sobreviver como
representativa, então ela vai ter que ser substituída por outra forma de
governo que assegure uma real proximidade entre os governantes e os reais
interesses da maioria esmagadora dos governados…
Não
adianta argumentar com a ideia de que pior do que as perversões da democracia
representativa é a tendência hoje corrente (e alguma vez deixou de ser assim?)
de governantes de outro país ou de forças fácticas poderosas imporem aos
governantes eleitos as medidas da governação. Apesar gravidade das situações
que se conhecem, de que é exemplo mais elucidativo a recente tentativa de
Berlim impor um gauleiter a Atenas, tudo isso faz parte da mesma
questão. Autonomizar esta parte do problema só serve para assegurar uma
sobrevida à democracia representativa tal como existe.