sábado, 2 de março de 2013

A LEI DAS RENDAS


ANOTAÇÕES HISTÓRICAS COM INTERESSE ACTUAL
1 - A iniciativa legislativa do PCP apoiada pelo BE e pelo PS - Na passada quarta-feira voltou a discutir-se no Parlamento a Lei das Rendas (Lei n.º 6/2006 com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto), desta vez por iniciativa do PCP, que propôs a revogação pura e simples da lei aprovada pela actual maioria, repondo assim em vigor a lei 6/2006,aprovada pelo PS.
O projecto de lei do PCP foi apoiado pelo BE e pelo PS. Apesar do apoio alargado – e pouco habitual- de que o projecto beneficiou, a lei revogatória não foi aprovada por oposição da maioria PSD/CDS.
Da discussão havida no Parlamento percebeu-se que os deputados do PCP e do Bloco, que mais têm batalhado pela revogação da lei, estavam bem dentro do seu regime e das brutais consequências que a sua entrada em vigor vai começar a ter muito brevemente. A participação do PS nesta luta contra a “Lei das Rendas” em defesa dos idosos, deficientes e pobres, e, em geral, dos inquilinos com contrato anterior a 1990,  é louvável tendo a sua actuação no sentido da revogação sido mais importante do que as alterações que pretendia propor, cujo sentido nunca explicitou muito bem.
Do lado do PS foi particularmente importante a intervenção de Miguel Coelho por, sem rodeios, ter defrontado a actual maioria com as consequências que inequivocamente visa com a vigência da lei – o despejo dos arrendatários anteriores a 1990.

Já Ramos Preto, embora tivesse apoiado a proposta do PCP, não se dispensou da bravata habitual destas lides parlamentares por o PCP – certamente para obter o apoio do PS – ter eliminado a parte do projecto que, além da revogação da actual lei, exigia também o congelamento das rendas enquanto durasse a actual situação económica do país. Ramos Preto congratulou-se por o PCP desejar agora repor em vigor a lei contra a qual votara em 2006 e por ter abandonado a proposta de um regime típico do Estado Novo (o congelamento das rendas).
Aqui é que Ramos Preto se engana, e muito, ao supor que o congelamento das rendas é uma invenção do Estado Novo.
2- Brevíssimo resumo histórico do regime arrendamento para habitação no último século - O contrato de arrendamento para habitação, com este nome ou com outro, tem sido ao longo dos séculos uma matéria que o legislador, desde as Ordenações afonsinas, tem tratado com muita cautela pelas consequências sociais que necessariamente implica uma legislação desfavorável ou desequilibrada relativamente aos interesses do inquilino.
Deixando de lado os tempos remotos e falando apenas dos mais próximos, é bom não esquecer que foi na I República, pela impropriamente chamada Lei do Inquilinato (Decreto n.º 5411, de 17 de Abril de 1919), que se impôs a renovação obrigatória (sucessiva) dos contratos de arrendamento, se proibiu o aumento das rendas sob pena de crime de desobediência qualificada, mesmo que o aumento tivesse ocorrido com a concordância do inquilino e se enumeraram taxativamente as causas de despejo.

Já antes tinha havido outras proibições da mesma natureza, embora temporalmente limitadas à duração da Guerra e até um ano após o Armistício.
Depois, em 1924, suspenderam-se as acções de despejo (Lei n.º 1662 de 4 de Setembro de 1924), excepto nos casos taxativamente enunciados (falta de pagamento de renda, sublocação não permitida, utilização para fins ilícitos, etc.).
Nos anos subsequentes, em virtude da grande desvalorização da moeda, permitiu-se o aumento controlado das rendas até certo limite.
Mais tarde, pela Lei 2030, de 22 de Junho de 1948 – e esta é que é a legislação mais emblemática do Estado Novo em matéria de arrendamento - autorizou-se, para os arrendamentos habitacionais fora de Lisboa e Porto, anteriores a 1 de Janeiro de 1943, o aumento gradual das rendas, até se atingir o duodécimo do rendimento ilíquido inscrito na matriz em 1938, mas suspenderam-se as avaliações fiscais dos prédios destinados a habitação, em Lisboa e Porto, permitindo-se semestralmente aumentos até àquele montante não superiores (cada um deles) a 20%.
E no essencial foi esta a legislação que continuou a vigorar até ao novo Código Civil (1966), cujo regime inscrito  na lei preambular mantinha em Lisboa e Porto a suspensão das avaliações fiscais para efeitos de actualização de rendas dos prédios urbanos destinados a habitação.
Logo a seguir ao 25 de Abril – DL n.º 217/74, de 27 de Maio – foram congeladas por 30 dias as “rendas de prédios urbanos aos níveis praticados em 24 de Abril passado” (1974), constituindo crime de especulação a infracção a esta disposição.
Em 12 Setembro de 1974, foi publicado o DL n.º 445/ 74 que estendeu a todo o país a suspensão das avaliações fiscais para efeitos de actualização de rendas de prédios destinados a habitação. Quanto à renda a fixar para novos arrendamentos de prédios que já tivessem estado arrendados, a renda não poderia ser superior à fixada no último contrato, desde que posterior a 31 de Dezembro de 1971. Se a última renda fixada fosse anterior àquela data, a lei estabelecia uma série de coeficientes de actualização que iam desde 92,6 para os arrendamento anteriores a 1900 até um coeficiente de 1,07 para os de 1970. Para as casas colocadas pela primeira vez no mercado de arrendamento a renda seria a que resultasse do livre jogo da oferta e da procura.
Depois de algumas alterações menores, o regime introduzido pelo 25 de Abril - DL n.º 445/74 - foi revogado pelo DL n.º 148/81 de 4 de Junho, que permitiu nos novos arrendamentos a renda livre, inclusive em contratos relativos a prédios já arrendados que entretanto tivessem vagado, e a actualização das rendas condicionadas segundo um coeficiente anual a aprovado pelo governo. Todavia, a primeira grande alteração, em democracia, ao regime do arrendamento para habitação ocorreu em 1985 – Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro – que, no essencial, determinou que, nos contratos de renda livre, a renda inicial fosse fixada por livre negociação das partes. Por outro lado, a partir desta data, todas as rendas, qualquer que fosse o regime do arrendamento, ficavam sujeitas a actualizações anuais. Todavia, as rendas dos arrendamentos anteriores a 1980 podiam ser corrigidas na vigência do contrato mediante a aplicação de factores de correcção extraordinária referidos ao último ano da fixação da renda. Esses coeficientes de correcção iam desde 1,21 para os arrendamentos de 1979 até 8,42 para os arrendamentos anteriores a 1955.
Depois desta lei, a grande reforma – o Regime do Arrendamento Urbano (RAU) – é a que consta do Decreto–Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, publicado com um Preâmbulo que explica e descreve todo o regime do arrendamento em Portugal desde o Código de Seabra (1867).

No RAU permite-se que a renda seja fixada livremente, actualizável nos termos convencionados entre as partes, valendo o contrato pelo prazo que nele for fixado. Para os arrendamentos anteriores, a renda continuaria a ser actualizada de acordo com os coeficientes anualmente publicados, mantendo-se quanto a estes o regime da renovação automática.
A seguir ao RAU, a nova reforma – o NRAU, Novo Regime do Arrendamento Urbano – foi aprovada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que estabelecia entre 3 e 10 anos um regime faseado de actualização das rendas no qual intervinham diversos factores e avaliações independentes do estado de conservação do locado. Esta lei, como se sabe, acaba de ser completamente desvirtuada pelas alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto, aprovada pelo CDS/PSD.
3 - CONCLUSÕES - Este resumo, muito resumido, do regime do arrendamento urbano para habitação desde 1919 até hoje serve para demonstrar:
Que o arrendamento para a habitação sempre mereceu do legislador até 14 de Agosto de 2012, ao longo das diferentes épocas históricas aqui referidas, um cuidado muito especial no que respeita à protecção da posição contratual do inquilino;
Que as mudanças de regime ao longo de quase um século foram sempre acompanhadas de graduais regimes de transição aplicáveis aos arrendamentos anteriores, mantendo direitos adquiridos, de modo a não colocar em perigo de um dia para o outro a habitação familiar;
Que o legislador tendia a distinguir entre os arrendamentos em Lisboa e Porto e os restantes, nos casos em que o aumento ou a actualização da renda se fazia por referência à avaliação fiscal do prédio arrendado.
Que desde 1990 há em Portugal um regime de renda livre, actualizável nos prazos convencionados entre as partes, sem qualquer imposição legal de renovação sucessiva dos contratos, contrariamente ao que todos os dias se pretende fazer crer quando se fala de arrendamento para habitação.
Com a lei da Ministra Cristas aprovada pelo CDS/PSD todos estes princípios elementares foram pura e simplesmente postergados.
A lei não estabelece um regime de transição verdadeiro e próprio. A lei estabelece um regime novo para os arrendamentos antigos, altamente gravoso para os inquilinos, propositada e perversamente criado para os obrigar a abandonar os prédios que habitam há décadas por falta de recursos financeiros para acudir às novas rendas, que atingirão na maior parte dos casos aumentos entre 400 a 1000%!
A lei despreza os direitos adquiridos pelos inquilinos nomeadamente o de prorrogação automática dos contratos, quer em função da idade quer em virtude dos anos de arrendamento, aceitando como consequência perfeitamente normal que os actuais arrendatários sejam postos na rua quando forem cinco anos mais velhos! Se, por “milagre”, diga-se, daqui a cinco anos ainda mantivessem as casas que hoje habitam.
A lei trata igualmente o que é diferente: ao estabelecer, em última instância, a fixação do montante da renda por referência ao valor patrimonial tributável do imóvel não toma em conta o facto de esse valor, no Porto e em Lisboa, porventura numa ou outra cidade, ser muitíssimo superior ao de um prédio com as mesmas características situado noutras zonas do país, podendo essa diferença de valor atingir o dobro!
A lei não atribui ao arrendatário o direito de contestar a avaliação do imóvel, apesar de ela ser um elemento decisivo para a fixação da renda que lhe vai ser aplicada.
Uma vez que a maioria recusou, como se esperava, revogar a perversa Lei de Cristas, só resta aos directamente prejudicados, enquanto aquela revogação não ocorre, recorrer ao Tribunal Constitucional, já que seria inadmissível que ficasse impune a actuação de um governo que viola princípios estruturantes do Estado de Direito democrático impostos pela Constituição quando a própria ditadura, que de facto não aceitava limitações ao seu direito de legislar, os respeitou nesta matéria!

4 comentários:

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