quarta-feira, 8 de julho de 2009

CAVACO E A FUNÇÃO LEGISLATIVA


O QUE QUER CAVACO?


Não deixa de ser estranha a notícia hoje publicada nos jornais, a propósito do aviso feito aos partidos pelo Presidente da República sobre as leis a aprovar pelo Parlamento nesta fase final da legislatura, qualquer que seja o prisma por que é encarada.
Segundo fontes da Presidência da República, Cavaco pediu aos partidos que ponderem devidamente as leis que vão aprovar no Parlamento, atendendo ao período pré-eleitoral que se vive, e se abstenham de aprovar de leis fracturantes para a sociedade portuguesa ou se traduzam em elevados encargos para o futuro.
Antes de mais, uma questão pertinente. O que é uma lei fracturante? Fracturante para quem? Aparentemente uma lei fracturante é uma lei que, alterando o status quo, cria uma profunda oposição numa parte significativa da sociedade portuguesa. Por exemplo, a lei que permite a interrupção voluntária da gravidez, o testamento vital, a lei do divórcio e outras, muitas outras, da mesma natureza. A lei é fracturante para aquela parte da sociedade que quer manter o status quo. Só que colocar problema nestes termos significa desde logo tomar partido na sua resolução. Porque quem assim pensa esquece-se ou desvaloriza completamente a fractura que esse mesmo status quo cria na outra parte da sociedade, teoricamente maioritária, que não concorda com ele.
Para o pensamento conservador o que cria a fractura é a mudança, da mesma forma que a imobilidade a cria para o pensamento progressista. A grande diferença está no facto de o pensamento conservador não pôr as duas situações no mesmo plano. Para ele somente a mudança é causadora de perturbação e, como tal, deve ser evitada.
Mas este aviso do Presidente da República revela também alguma dificuldade, aqui já várias vezes assinalada, de convivência no quadro da interdependência de poderes constitucionalmente consagrado na Constituição portuguesa. Na verdade, o Presidente da República não goza de qualquer direito de interferência na função legislativa para além do estabelecido na Constituição.
É preciso que se compreenda que o Presidente da República, a quem não cabe qualquer iniciativa legislativa no sistema político português, desempenha na função legislativa um papel que está claramente balizado na Constituição. E é esse e apenas esse o que lhe cabe desempenhar. Assim:
Ao PR cabe promulgar as leis, condição de existência do próprio acto legislativo.
Em segundo lugar, se o PR não concorda com o texto que lhe é submetido para promulgação, seja porque tem dúvidas sobre a sua constitucionalidade, seja porque se opõe ao seu conteúdo, duas vias se abrem.
Uma é remeter o texto ao Tribunal Constitucional para que este preventivamente se pronuncie sobre a sua conformidade com a Constituição. Se o tribunal se pronunciar no sentido das dúvidas expressas pelo PR, o texto é remetido ao Parlamento, podendo este optar por uma de duas vias: ou confirma o texto por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções; ou reformula-o mediante expurgação das normas inconstitucionais.
A segunda via é o veto político, de que Cavaco tem feito largo uso. Também aqui o Parlamento pode levar em conta as objecções do Presidente ou pura e simplesmente confirmar o texto, mediante aprovação por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, salvo nos caso em que for exigida a maioria de dois terços dos deputados presentes (desde que superior à anterior).
Nos casos em que o Parlamento confirmar o texto, o Presidente tem que o promulgar.
Quando o veto recaia sobre diploma do Governo, este terá sempre de acatar a decisão do tribunal ou o veto do Presidente, se quiser manter a forma normativa usada. Mas poderá enviar o texto ao Parlamento como proposta de lei, recomeçando então o processo legislativo, que seguirá, quanto a esta questão, os termos acima referidos.
O que não existe é qualquer outro poder presidencial limitador da actividade legislativa do Parlamento ou do Governo. Tão-pouco o Parlamento fica diminuído na sua competência legislativa por a legislatura estar a findar. Se o Presidente da República vetar um diploma, depois de encerrada a sessão legislativa, o Parlamento pode ser extraordinariamente convocado para confirmar o texto, mecanismo a que o próprio Cavaco já recorreu quando foi Primeiro-ministro.
Por outras palavras, o Governo ou a Assembleia Legislativa em fim de legislatura mantêm intactos os seus poderes e não são comparáveis, nem como tal podem ser tratados, a um governo de gestão ou a uma Assembleia dissolvida.
Ao novo Parlamento fica sempre ressalvado direito de revogar a legislação aprovada neste período.

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