AS DECLARAÇÕES E OS ACTOS
Até há bem pouco tempo as Honduras, pequeno país da América Central, estavam indubitavelmente integradas na esfera de influência norte-americana e ninguém ousava contestar essa pertinência. Pejorativamente chamada “República das Bananas”, as Honduras eram governadas pela United Fruits, que tinha ao seu serviço a oligarquia local, apoiada nas forças de repressão. E assim estaria destinada a continuar, mesmo depois da onda de legitimação democrática que, de norte a sul, varreu todo o continente americano.
Até que, na América Latina, apareceu Hugo Chávez, legitimado democraticamente por múltiplas eleições e referendos, à frente de uma nação que, apesar de riquíssima em recursos naturais, era tristemente célebre pelos casos de corrupção e pelo gigantesco endividamento da era Andrés Pérez (um homem da Internacional Socialista), nomeadamente no segundo mandato (1989/93).
Chávez, reclamando-se da herança de Bolívar e liderando a luta, muito facilitada pela conduta de Bush, contra o grande império do norte, acabou por ter uma influência decisiva em toda a América Latina. Os Estados Unidos, enterrados nestes últimos anos em muitas acções pantanosas noutras partes do mundo e deixando, por força da conjuntura que eles próprios ajudaram a criar, de poder contar com os golpes da CIA para resolver os seus diferendos contra as pretensões de afirmação nacional dos povos da América latina, estão hoje muito longe de ser a voz dominante naquela região do mundo.
Entretanto, o Brasil, mercê do extraordinário desenvolvimento económico alcançado na era Lula e de uma certa, ainda tímida, redistribuição da riqueza como nunca tinha conhecido na sua história, colonial ou posterior, afirmou-se como grande potência emergente com um papel cada vez mais activo no seu continente. Só que as mudanças ocorridas em muitos países da América Latina, por influência do efeito Chávez, foram, principalmente nos objectivos programáticos, muito mais profundas do que as verificadas no Brasil. E em consequência disso a diplomacia brasileira vem fazendo o difícil equilíbrio em se afirmar como potência hegemónica do continente sem simultaneamente, pelo menos nesta fase, fraudar os anseios emancipalistas dos povos marginalizados da América Latina, que não pode deixar de apoiar, sob pena de ver transferido para si o ódio até agora dirigido ao poderoso vizinho do Norte. De certo modo tem-no conseguido sem entrar em conflito com Chávez, antes até na base de uma aliança moldável em função das circunstâncias.
Em todo o caso, o efeito Chávez, além de contar, por razões muito diferentes, com o apoio táctico da Argentina e de Cuba, prosperou na Bolívia, no Equador, na Nicarágua (onde havia uma velha tradição de luta anti-imperialista), influenciou El Salvador, o Paraguai e muito provavelmente, dentro de pouco tempo, o Uruguai.
Recentemente, as Honduras, presididas por um homem vindo de um partido do establishment, deram uma grande reviravolta política e enfileiraram também na luta bolivariana de que Chávez é o grande corifeu. Humilhação suprema para o vizinho do Norte e para a oligarquia local. Presos nos seus movimentos pelos processos de legitimação democrática, que durante anos apregoaram como prova da sua superioridade moral e política, os inimigos de Chávez, principalmente os Estados Unidos e a Colômbia, esta com pouca influência externa, apesar do seu poderosíssimo exército, ficaram com escassa margem de manobra para intervir nos regimes politicamente adversos, como historicamente sempre fizeram, isto é, pela força. Este mesmo mal-estar dos Estados Unidos é partilhado por praticamente todos os países da União Europeia, a começar pela Espanha, que se arroga uma espécie de "direitos históricos" na região e que, por isso mesmo, tem sido um dos alvos preferidos de Chávez, como já foi de Fidel, que lhe chegou a chamar “império de muletas”.
É neste contexto que se dá o golpe nas Honduras, o elo mais fraco da “aliança bolivariana", tendo como pretexto uma pretensa ilegalidade de uma consulta popular proposta pelo Presidente Zelaya. No quadro dos actuais procedimentos de legitimação não haveria muito por onde escolher: impunha-se a condenação do golpe e o regresso à normalidade democrática. Simultaneamente a matilha de comentadores de política internacional ao serviço do Império foi criando um clima favorável ao golpe, pondo a circular uma tese tendente a demonstrar a ilicitude, em partes iguais, das acções da oligarquia hondurenha e do presidente eleito. Havia uma espécie de empate.
Está a esgotar-se o prazo dado pela Organização dos Estados Americanos para o regresso à normalidade democrática e apesar de todos os demais "ultimatos" da comunidade internacional e das suas instituições mais representativas tudo aponta para a manutenção da situação de facto criada pelo golpe nas Honduras. Não haja ilusões, nem ingenuidades, se tal acontecer alguém está apoiando as Honduras, infelizmente muito longe, como país, de poder protagonizar sozinha tal gesto de autonomia. E então estaremos perante um golpe de tipo inovador: publicamente repudiado em uníssono, mas secretamente apoiado com a força suficiente para se manter!