O PROCOLO MODIFICATIVO DE 2004
Já aqui tinha feito dois comentários ao Acordo Ortográfico, cujo anexo li na íntegra. Dada a perspectiva em que me coloquei, apreciação política do Acordo, tendo em conta o seu conteúdo, não dei importância aos textos propriamente jurídicos, nem aos dos respectivos protocolos modificativos. Apercebi-me vagamente pelos títulos dos artigos dos jornais que havia uma polémica sobre a data da sua entrada em vigor, mas somente agora, ao ler o livro de VGM, me inteirei verdadeiramente da importância do problema.
Para que se possa perceber o que está em causa, convém descrever o que se passou. E o que se passou foi o seguinte:
Em 16 de Dezembro de 1990, foi assinado (e a assinatura significa em direito internacional que a fase das negociações está terminada e que o texto a que se chegou exprime a vontade dos negociadores, só podendo voltar a reabrir-se por acordo unânime de todos os intervenientes) o Acordo Ortográfico pelos sete países negociadores (Portugal, Brasil e os cinco PALOP). Para a entrada em vigor do Acordo, previa-se, como é vulgar neste tipo de acordos, chamados multilaterais restritos, a sua ratificação pelos sete países intervenientes. A ratificação (em sentido amplo) é o conjunto de actos através dos quais cada país, de acordo com as normas do seu direito interno, exprime a seu consentimento a ficar vinculado por um acordo internacional. No entanto, os negociadores do tratado para pressionarem a ratificação pelos órgãos competentes dos respectivos Estados indicaram como data da sua entrada em vigor o primeiro de Janeiro de 1994. Mas como logo a seguir acrescentaram que ele só vigoraria “após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados” junto do depositário – o Governo da República Portuguesa - da aposição daquela data não decorreria qualquer injunção, uma vez que, como já se disse, somente com a ratificação de todos o Acordo entraria em vigor.
Mais tarde, em 17 de Julho de 1998, os mesmos Estados negociaram um Protocolo Modificativo do Acordo para alterar o incumprido artigo 3.º, ou seja, o que estabelecia uma data certa para a entrada em vigor do Acordo. E, em substituição do texto anterior, estabeleceram pura e simplesmente que Acordo entraria em vigor após depósito dos instrumentos de ratificação de todos os Estados, isto é, depois de ratificado por todos. Além desta alteração, o Protocolo Modificativo modificava também o artigo 2.º do Acordo, que estabelecia uma data para a elaboração de um “vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas”. Agora, em vez da fixação de uma data, diz-se que os Estados tomarão as providências necessárias com vista ao fim acima referido.
Em 25 de Julho de 2004, os mesmos negociadores assinaram um Segundo Protocolo Modificativo por via do qual abrem ao novel Estado de Timor Leste a possibilidade de adesão e alteram radicalmente o modo de entrada em vigor do Acordo. Em vez da ratificação por todos os Estados - normal, insisto, neste tipo de acordos, tanto mais que o seu objectivo é a unificação da grafia da língua portuguesa - diz-se agora: “O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa” e estabelece-se também que o Protocolo Modificativo entrará "em vigor no primeiro dia do mês seguinte à data em que três Estados membros da CPLP tenham depositado, junto da República Portuguesa os respectivos instrumentos de ratificação ou documentos equivalentes que os vinculem ao Protocolo”.
Do ponto de vista jurídico formal não há qualquer objecção a que o texto de um acordo já assinado, mas ainda não aprovado nem ratificado pelos Estados que participaram na negociação, seja alterado. As negociações podem reabrir -se, com vista à alteração do antes acordado, se essa for a vontade unânime dos negociadores.
Do ponto de vista político, poder-se-á dizer que a alteração é catastrófica. Mas essa já é outra questão. De facto, admitir que um tratado multilateral restrito e fechado (ou seja, a que terceiros não podem aderir sem autorização das partes), que tem por objectivo a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa”, possa entrar em vigor com apenas três ratificações, é, no fundo, permitir a quebra dessa unidade e permiti-la numa base jurídica, o que é muito mais grave.
Interessa todavia esclarecer que o disposto no art. 3.º do Segundo Protocolo Modificativo, segundo o qual: “ O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”, apenas significa que o dito acordo entrará em vigor para os Estados que o ratificarem, contanto que sejam três, mas, como é óbvio, não vigorará relativamente aos restantes. Esta técnica de entrada em vigor, própria dos acordos multilaterais gerais, destinada a permitir, por um lado, que um tratado possa entrar em vigor apesar de não estar ratificado por todos os signatários e, por outro, assegurar que essa vigência assente num número relativamente significativo de ratificações, não tem o menor cabimento nos acordos multilaterais restritos. Mas não será, só por isso, ilegal.
Então o que é necessário para que o Acordo Ortográfico entre em vigor na ordem interna portuguesa? Em primeiro lugar, é preciso que ele esteja regularmente aprovado e ratificado e que, além disso, seja publicado; depois, que ele vincule internacionalmente o Estado Português: o Acordo só é direito interno por ser, e enquanto for, direito internacional.
Uma vez que o Brasil, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe já depositaram os respectivos instrumentos de ratificação, bastará então a aprovação pelo Parlamento e subsequente ratificação pelo Presidente da República do Segundo Protocolo Modificativo, e sua publicação, para que o Acordo Ortográfico entre em vigor na ordem interna portuguesa? Creio que não. Esse procedimento é necessário para que o segundo Protocolo Modificativo entre em vigor. Mas a aprovação do Segundo Protocolo Modificativo não implica por si só a entrada em vigor do Acordo. Para que o Acordo entre em vigor é necessário um novo processo de aprovação e de ratificação. De nada adianta afirmar, como se faz na proposta de Resolução a aprovar pela AR, que o Acordo Ortográfico já foi aprovado e ratificado pelo Estado Português em Agosto de 1991. Não é verdade. O acordo que foi aprovado não é o mesmo que agora entrará em vigor depois da aprovação do Segundo Protocolo Modificativo. Era outro muito diferente. Era um Acordo que, independentemente de se entender que não alcançaria os objectivos em vista, visava a unificação da grafia, na medida em que só entraria em vigor se por todos os Estados signatários fosse ratificado. Este, o que agora entrará em vigor, é obviamente um acordo que põe de parte esse objectivo, na medida em que expressamente consagra a possibilidade de haver duas grafias: a que agora existe, mais a que o Acordo consagra. Por isso tem de ser objecto de uma nova ponderação, tanto pelo Parlamento, como pelo Presidente da República.
Se o Acordo, nos termos em que foi negociado, já era em si uma tonteria, não obstante as boas intenções de quem o negociou, a aprovação deste Segundo Protocolo Modificativo, que altera uma regra básica de toda a estrutura do acordo, é uma manifestação de irresponsabilidade política só possível num país que actua no domínio internacional sem direcção política centralizada. Independentemente da justeza das críticas que possam ser formuladas ao Acordo, e do meu ponto de vista a mais certeira é a de que o Acordo é desnecessário (a grafia é hoje o mais forte elo de ligação entre o português de Portugal e o do Brasil), a nova situação criada por este Segundo Protocolo Modificativo é destruidora da unidade da língua portuguesa.
Assim sendo, do ponto de vista português, duas hipóteses se colocam: uma, a do Estado, é não o ratificar sem que os demais sete Estados signatários o tenham feito; outra, a dos cidadãos, é reagir juridicamente contra a ratificação que o Estado Português venha a fazer. Na verdade, não tenho por líquido que o supra citado artigo 3.º do Segundo Protocolo Modificativo seja constitucional. É, como se compreende, uma questão que não pode ser abordada aqui, mas ao consagrar-se juridicamente uma situação destruidora da unidade da unidade da língua, provavelmente estará a violar-se a Constituição.
Já aqui tinha feito dois comentários ao Acordo Ortográfico, cujo anexo li na íntegra. Dada a perspectiva em que me coloquei, apreciação política do Acordo, tendo em conta o seu conteúdo, não dei importância aos textos propriamente jurídicos, nem aos dos respectivos protocolos modificativos. Apercebi-me vagamente pelos títulos dos artigos dos jornais que havia uma polémica sobre a data da sua entrada em vigor, mas somente agora, ao ler o livro de VGM, me inteirei verdadeiramente da importância do problema.
Para que se possa perceber o que está em causa, convém descrever o que se passou. E o que se passou foi o seguinte:
Em 16 de Dezembro de 1990, foi assinado (e a assinatura significa em direito internacional que a fase das negociações está terminada e que o texto a que se chegou exprime a vontade dos negociadores, só podendo voltar a reabrir-se por acordo unânime de todos os intervenientes) o Acordo Ortográfico pelos sete países negociadores (Portugal, Brasil e os cinco PALOP). Para a entrada em vigor do Acordo, previa-se, como é vulgar neste tipo de acordos, chamados multilaterais restritos, a sua ratificação pelos sete países intervenientes. A ratificação (em sentido amplo) é o conjunto de actos através dos quais cada país, de acordo com as normas do seu direito interno, exprime a seu consentimento a ficar vinculado por um acordo internacional. No entanto, os negociadores do tratado para pressionarem a ratificação pelos órgãos competentes dos respectivos Estados indicaram como data da sua entrada em vigor o primeiro de Janeiro de 1994. Mas como logo a seguir acrescentaram que ele só vigoraria “após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados” junto do depositário – o Governo da República Portuguesa - da aposição daquela data não decorreria qualquer injunção, uma vez que, como já se disse, somente com a ratificação de todos o Acordo entraria em vigor.
Mais tarde, em 17 de Julho de 1998, os mesmos Estados negociaram um Protocolo Modificativo do Acordo para alterar o incumprido artigo 3.º, ou seja, o que estabelecia uma data certa para a entrada em vigor do Acordo. E, em substituição do texto anterior, estabeleceram pura e simplesmente que Acordo entraria em vigor após depósito dos instrumentos de ratificação de todos os Estados, isto é, depois de ratificado por todos. Além desta alteração, o Protocolo Modificativo modificava também o artigo 2.º do Acordo, que estabelecia uma data para a elaboração de um “vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas”. Agora, em vez da fixação de uma data, diz-se que os Estados tomarão as providências necessárias com vista ao fim acima referido.
Em 25 de Julho de 2004, os mesmos negociadores assinaram um Segundo Protocolo Modificativo por via do qual abrem ao novel Estado de Timor Leste a possibilidade de adesão e alteram radicalmente o modo de entrada em vigor do Acordo. Em vez da ratificação por todos os Estados - normal, insisto, neste tipo de acordos, tanto mais que o seu objectivo é a unificação da grafia da língua portuguesa - diz-se agora: “O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa” e estabelece-se também que o Protocolo Modificativo entrará "em vigor no primeiro dia do mês seguinte à data em que três Estados membros da CPLP tenham depositado, junto da República Portuguesa os respectivos instrumentos de ratificação ou documentos equivalentes que os vinculem ao Protocolo”.
Do ponto de vista jurídico formal não há qualquer objecção a que o texto de um acordo já assinado, mas ainda não aprovado nem ratificado pelos Estados que participaram na negociação, seja alterado. As negociações podem reabrir -se, com vista à alteração do antes acordado, se essa for a vontade unânime dos negociadores.
Do ponto de vista político, poder-se-á dizer que a alteração é catastrófica. Mas essa já é outra questão. De facto, admitir que um tratado multilateral restrito e fechado (ou seja, a que terceiros não podem aderir sem autorização das partes), que tem por objectivo a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa”, possa entrar em vigor com apenas três ratificações, é, no fundo, permitir a quebra dessa unidade e permiti-la numa base jurídica, o que é muito mais grave.
Interessa todavia esclarecer que o disposto no art. 3.º do Segundo Protocolo Modificativo, segundo o qual: “ O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”, apenas significa que o dito acordo entrará em vigor para os Estados que o ratificarem, contanto que sejam três, mas, como é óbvio, não vigorará relativamente aos restantes. Esta técnica de entrada em vigor, própria dos acordos multilaterais gerais, destinada a permitir, por um lado, que um tratado possa entrar em vigor apesar de não estar ratificado por todos os signatários e, por outro, assegurar que essa vigência assente num número relativamente significativo de ratificações, não tem o menor cabimento nos acordos multilaterais restritos. Mas não será, só por isso, ilegal.
Então o que é necessário para que o Acordo Ortográfico entre em vigor na ordem interna portuguesa? Em primeiro lugar, é preciso que ele esteja regularmente aprovado e ratificado e que, além disso, seja publicado; depois, que ele vincule internacionalmente o Estado Português: o Acordo só é direito interno por ser, e enquanto for, direito internacional.
Uma vez que o Brasil, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe já depositaram os respectivos instrumentos de ratificação, bastará então a aprovação pelo Parlamento e subsequente ratificação pelo Presidente da República do Segundo Protocolo Modificativo, e sua publicação, para que o Acordo Ortográfico entre em vigor na ordem interna portuguesa? Creio que não. Esse procedimento é necessário para que o segundo Protocolo Modificativo entre em vigor. Mas a aprovação do Segundo Protocolo Modificativo não implica por si só a entrada em vigor do Acordo. Para que o Acordo entre em vigor é necessário um novo processo de aprovação e de ratificação. De nada adianta afirmar, como se faz na proposta de Resolução a aprovar pela AR, que o Acordo Ortográfico já foi aprovado e ratificado pelo Estado Português em Agosto de 1991. Não é verdade. O acordo que foi aprovado não é o mesmo que agora entrará em vigor depois da aprovação do Segundo Protocolo Modificativo. Era outro muito diferente. Era um Acordo que, independentemente de se entender que não alcançaria os objectivos em vista, visava a unificação da grafia, na medida em que só entraria em vigor se por todos os Estados signatários fosse ratificado. Este, o que agora entrará em vigor, é obviamente um acordo que põe de parte esse objectivo, na medida em que expressamente consagra a possibilidade de haver duas grafias: a que agora existe, mais a que o Acordo consagra. Por isso tem de ser objecto de uma nova ponderação, tanto pelo Parlamento, como pelo Presidente da República.
Se o Acordo, nos termos em que foi negociado, já era em si uma tonteria, não obstante as boas intenções de quem o negociou, a aprovação deste Segundo Protocolo Modificativo, que altera uma regra básica de toda a estrutura do acordo, é uma manifestação de irresponsabilidade política só possível num país que actua no domínio internacional sem direcção política centralizada. Independentemente da justeza das críticas que possam ser formuladas ao Acordo, e do meu ponto de vista a mais certeira é a de que o Acordo é desnecessário (a grafia é hoje o mais forte elo de ligação entre o português de Portugal e o do Brasil), a nova situação criada por este Segundo Protocolo Modificativo é destruidora da unidade da língua portuguesa.
Assim sendo, do ponto de vista português, duas hipóteses se colocam: uma, a do Estado, é não o ratificar sem que os demais sete Estados signatários o tenham feito; outra, a dos cidadãos, é reagir juridicamente contra a ratificação que o Estado Português venha a fazer. Na verdade, não tenho por líquido que o supra citado artigo 3.º do Segundo Protocolo Modificativo seja constitucional. É, como se compreende, uma questão que não pode ser abordada aqui, mas ao consagrar-se juridicamente uma situação destruidora da unidade da unidade da língua, provavelmente estará a violar-se a Constituição.
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