UM ARTIGO DO SECRETÁRIO-GERAL DA OMC
O Público do dia 30 de Abril traz um artigo do Secretário Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Angel Gurria, advogando, no melhor estilo neo-liberal, uma maior liberalização do comércio internacional como a receita adequada para superar as várias crises com que o mundo actualmente se defronta.
Segundo o A. do artigo, um novo acordo do comércio multilateral, traduzido numa maior na liberalização do comércio de bens e serviços, seria a solução adequada à actual situação internacional, pelo poderoso impulso que a mesma traria à economia mundial através do aumento da inovação e da produtividade. Depois, avalia os ganhos que uma redução de 50% nas tarifas e nos apoios à agricultura e à indústria poderia gerar, calculados na ordem dos 44 mil milhões de dólares. Insiste na tese de que os países em desenvolvimento, em particular, obteriam acréscimos no ritmo de crescimento do PIB per capita de 2% em cada ano, se se verificasse uma liberalização total das tarifas. Seguidamente defende a lenga-lenga liberal segundo a qual o proteccionismo, embora podendo trazer algum alívio a curto prazo, acaba por desencorajar os produtores a produzirem mais em resposta à subida dos preços nos mercados internacionais e leva inevitavelmente à subida dos preços por reduzir a possibilidade de entrada no mercado de competidores estrangeiros que produzem mais barato.
Ninguém de bom senso nega que o desenvolvimento do comércio internacional tem vantagens, assim como também ninguém nega que uma parte considerável do progresso da humanidade assenta no desenvolvimento do comércio. O problema que hoje se põe não é o de negar esta evidência, mas antes o de questionar o modo como essas vantagens se distribuem entre os diversos actores da comunidade internacional. E quanto a este aspecto, a OMC revela uma total insensibilidade, como ainda esta semana, em Genebra, na reunião das 27 agências das Nações Unidas, foi amplamente sublinhado. De nada vale ao Secretário Geral da OMC advogar por uma maior ajuda no quadro do PAM (Programa Alimentar Mundial) aos países em dificuldades, porque o problema não está em ajudar os pobres e os esfomeados, mas em evitar que haja pobres e esfomeados. E isso não se consegue com uma liberalização cega do comércio internacional, mas com uma liberalização regulada do comércio internacional em todos os seus vectores.
Aliás, quem acompanha as negociações da ronda de Doha na OMC sabe que impera nelas a maior demagogia e o maior cinismo. Vejamos, a título de exemplo, o que se passa com o grupo dos países emergentes, capitaneados pelo Brasil. Pretendem um acesso irrestrito ao mercado europeu em matéria de produtos agrícolas, apesar de já gozarem actualmente de amplíssimas vantagens, mas recusam-se terminantemente a liberalizar os serviços e impõem grandes limitações à produção industrial, tanto relativamente aos bens que produzem, como aos demais. Do lado da Europa, há uma divisão entre os que praticamente não produzem produtos agrícolas e os demais. Depois, os emergentes lutam contra a subsidiação, mas eles próprios laboram em alguns casos com trabalho escravo, no sentido técnico do termo, e nos demais casos sempre com baixíssimos salários, desrespeito frequente pelas regras ambientais e nula ou muito escassa protecção social. Que sentido faz, perante este quadro, deixar de subsidiar a agricultura na Europa para ir engrossar gigantescamente os lucros das grandes empresas do agro-negócio dos países emergentes? E se daqui passássemos para a situação dos países em desenvolvimento, a situação, de grave, passaria a trágica, como em grande medida já passou em consequências das políticas económicas impostas pelo FMI e sempre secundadas, com grande hipocrisia, pela União Europeia, que, a pretexto de que actua na base da “especificidade comunitária”, acaba por fazer, relativamente àqueles países, uma política rigorosamente idêntica à do FMI.
Por outro lado, a recente crise do imobiliário americano, que se propagou a toda a economia mundial, com efeitos ainda não completamente identificados, demonstra também que uma outra vertente desta liberalização irrestrita – a dos mercados financeiros – não pode continuar. Não pode de modo algum aceitar-se uma quase completa ausência de correspondência entre a economia real e a economia especulativa teoricamente, mas só teoricamente, baseada naquela.
Enfim, o que o mundo precisa é de regulação, muita mais regulação e não o contrário. A regulação não é contrária ao desenvolvimento do comércio internacional. É contrária ao “estado de natureza”, ou seja, ao desenvolvimento selvagem do comércio internacional de acordo com a regra do mais forte. Mas exigir isto não é nenhum retrocesso, é apenas lutar contra a barbárie!
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