A CONTRADIÇÃO COM QUE SE DEBATE O MODERNO CAPITALISMO
Passou relativamente despercebido entre nós um dos últimos artigos de Paul Krugman sobre a contradição em que se debate o “moderno capitalismo” – de um lado os que defendem a austeridade e o equilíbrio orçamental, do outro os que advogam uma política de fortes estímulos fiscais, com subalternização da questão do défice, deixada para mais tarde -, no qual satirizava a posição dos primeiros, comparando-a aos sacrifícios humanos exigidos pelos sacerdotes de antigos cultos pagãos para aplacar a ira dos deuses.
Diz Krugman que quando as economias começavam a sair modestamente da crise, embora com altos níveis de desemprego, e os grandes bancos estavam salvos, os “novos sacerdotes” deste culto moderno passaram a advogar o equilíbrio orçamental e a redução da dívida como objectivos imediatos, mais importantes do que o crescimento e relançamento do emprego.
E embora a história económica demonstre que as medidas de austeridade e de contracção orçamental prejudicam drasticamente o crescimento ou levam mesmo à recessão, não favorecendo, portanto, a criação de emprego antes o retraindo, nem beneficiando, a prazo, as perspectivas orçamentais que teoricamente lhes servem de fundamento, nem por isso os “novos sacerdotes” mudam de opinião, certos como estão de que somente uma política de austeridade (e dos sacrifícios que ela encerra) será capaz de aplacar a “ira dos deuses”.
Este dilema está patente no “moderno capitalismo”, desde o início da crise financeira: logo que a crise eclodiu em toda a sua magnitude, Bush e os republicanos, na América, e Angela Merkel e o seu partido, na Alemanha, defenderam a falência das empresas em crise e o consequente afastamento do Estado, deixando que as coisas se resolvessem por si. Somente quando a crise atingiu proporções antes insuspeitadas e se começou a perspectivar a falência em cadeia do sistema financeiro mundial é que, de um lado e do outro do Atlântico, se passou a defender a intervenção, em alta escala, do Estado, para impedir a ruína do sistema financeiro e, com ela, o desabamento da “economia real”.
É bom que se diga que, embora houvesse uma certa convergência ideológica entre a posição de Bush e a de Merkel, a coincidência de posições também era ditada por análises actuais e históricas diferentes que, todavia, convergiam no sentido de uma posição política relativamente semelhante.
Enquanto na América a tradição económica republicana vai no sentido de um afastamento do Estado de toda a actividade económica, sem que com isto se queira defender ou sugerir qualquer tipo de neutralidade estadual – aliás, historicamente desmentida pela política fiscal dos republicanos relativamente às grandes empresas e aos mais altos rendimentos – deixando que o tecido económico se auto-regenere quando qualquer grave “moléstia” o afecta, e um não menor desprezo pelas consequências sociais da crise, na Alemanha pairava a ideia de que o seu sistema financeiro passaria relativamente incólume pela tormenta e pairava também o espectro de que a “injecção” de avultadas somas financeiras na economia acarretaria inevitavelmente uma espiral inflacionista que nunca se sabe como se desenvolve, nem que consequências pode trazer (enfim, a memória da hiperinflação de Weimar a impor as suas regras…).
Mas de um e outro lado do Atlântico havia também quem, na esteira de Keynes, tomando como exemplo a política económica de Roosevelt, subsequente à Grande Depressão, defendesse uma forte intervenção do Estado na economia, mediante a aplicação de medidas de estímulo, tanto de apoio directo às empresas em crise como por via da realização de grandes obras públicas, capazes de relançar a procura, combater a deflação, promover o crescimento e o emprego, mesmo que à custa ou, inevitavelmente à custa, do agravamento do défice, assunto que seria resolvido mais tarde, logo que a economia retomasse um ciclo de crescimento e prosperidade.
Passada que foi a primeira fase da crise – aquela que afectou o sistema financeiro e o deixou muito perto do colapso – e uma vez restabelecida à custa dos Estados, o mesmo é dizer dos contribuintes, a solvabilidade do sistema bancário, logo as velhas divergências voltaram à tona, agora de forma ainda mais vincada, entre as duas vias de “recuperação da crise”.
Na América, Obama, um pouco na sequência do que Bush foi obrigado a fazer no termo do seu mandato, defendeu e fez aprovar um grande plano de resgate do sistema bancário, medidas de apoio ao sector automóvel e algumas outras, nomeadamente na área do imobiliário, sem que contudo tenha conseguido intervir significativamente no domínio das pequenas e médias empresas, fortemente afectadas pelas políticas de crédito restritivas postas em prática pelos bancos. Apesar de todas estas limitações, a resposta relativamente positiva da economia, embora sem reflexos visíveis no domínio do emprego, encorajou os republicanos a privilegiarem doravante o combate ao défice e à dívida – pelo qual, eles, mais do que ninguém, são responsáveis em consequência das políticas belicistas que desencadearam – e levou-os a contestar, com a ajuda dos democratas mais conservadores, toda e qualquer medida de agravamento do défice ou da dívida, sem quaisquer preocupações, como sempre, pelas consequências sociais desta política, aliás sabiamente dissimuladas por via de uma propaganda, muito ao jeito americano, que imputa à presença do Estado a responsabilidade pela actual situação. Sem uma linha de rumo clara, Obama tem hesitado entre apostar numa política marcadamente keynesiana, sem preocupações imediatas pelo défice e pela dívida, e uma política intermédia que pretende satisfazer ambas as partes sem no fim de contas contentar ninguém.
Na Europa, como se sabe, passado que foi o susto da falência dos bancos e depois de postos à disposição do sistema financeiro praticamente a custo zero centenas de milhares de milhões de euros, vingou a tese do reequilíbrio orçamental, em três anos, à custa de pesadíssimos programas de austeridade. Programas que certamente agradam aos bancos mas que não deixarão de se reflectir muito negativamente nas economias dos países mais endividados.
A adopção desta política pelos diferentes países da EU, ou da zona euro, não terá, ao contrário do que frequentemente se diz, os mesmos efeitos nas diversas economias. As economias menos competitivas e, por isso mais endividadas, verão, por um lado, agravar-se o fosso que as separa das mais competitivas e, por outro, diminuir consideravelmente o rendimento de largas camadas das suas populações.
O facto de os países citados estarem enquadrados num espaço económico como o da União Europeia, sujeito a regras comuns em tudo quanto seja liberalismo económico, faz com eles não tenham qualquer hipótese de adoptar políticas alternativas de combate à crise, não apenas porque, se as pusessem em prática, seriam fortemente causticados pelos mercados financeiros, mas também porque, em virtude da sua estrutura económica, a maior parte das políticas de estímulo que eventualmente viessem a adoptar, como as grandes obras públicas, acabariam por se reflectir mais positivamente em países terceiros do que no próprio país, o qual, em última instância, até poderiam prejudicar.
Já na América as coisas passam-se de forma radicalmente diferente. Em primeiro lugar, os efeitos das medidas de estímulo produzem-se, em grande medida, no próprio país; em segundo lugar, como as estatísticas demonstram, ao aumento de défice e da dívida não corresponde um aumento da taxa de juro (pelo contrário, até tem descido); e, em terceiro lugar, porque a maior parte da dívida está contraída na moeda nacional – e não numa moeda comum - cujo controlo lhe pertence em absoluto. Finalmente, se a economia crescer, em consequência da adopção daquelas políticas, o facto de tal acrescimento ser acompanhado de alguma inflação só terá vantagens, em termos nacionais. O efeito conjugado da inflação e do crescimento fará diminuir a dívida!
Há oitenta anos, sem que com isto se pretende negar as divergências de análise e de propostas dentro do próprio sistema, sempre havia uma preocupação comum que tornava aquelas divergências menos marcadas: evitar o colapso do sistema capitalista e a sua substituição pelo sistema socialista. Hoje, o capitalismo funciona sem freios de qualquer espécie e nem sequer hesita na adopção de políticas socialmente muito gravosas contanto que elas sejam as que mais favoreçam o lucro, no caso, do capital financeiro, hoje o verdadeiro “senhor” da política.
Como se sabe, na última cimeira do G 20 vingou, com pequenas “nuances” a tese europeia, defendida pela Alemanha, de que a crise se combate com medidas de austeridade que apontem, o mais rapidamente possível, para a eliminação dos défices orçamentais com vista ao almejado propósito de alcançar o equilíbrio orçamental, o novo alfa e ómega da civilização capitalista.
Na próxima cimeira, de Novembro, em Seul, vão debater-se as duas teses de “combate à crise”.
Do lado da Europa, por imposição da Alemanha, será defendida a política que no “espaço europeu” tem sido seguida sem contemplações – austeridade.
Do lado dos Estados Unidos, Obama muito causticado entre os que advogam o equilíbrio orçamental (exactamente os mesmos que mais o desequilibraram) e o quase nulo crescimento da economia e do emprego, parece decidido a optar por novas políticas de estímulo à economia. Se tal vier a acontecer, o que está longe de poder considerar-se adquirido, poderá tal posição vir a ter alguma influência positiva na Europa…
Passou relativamente despercebido entre nós um dos últimos artigos de Paul Krugman sobre a contradição em que se debate o “moderno capitalismo” – de um lado os que defendem a austeridade e o equilíbrio orçamental, do outro os que advogam uma política de fortes estímulos fiscais, com subalternização da questão do défice, deixada para mais tarde -, no qual satirizava a posição dos primeiros, comparando-a aos sacrifícios humanos exigidos pelos sacerdotes de antigos cultos pagãos para aplacar a ira dos deuses.
Diz Krugman que quando as economias começavam a sair modestamente da crise, embora com altos níveis de desemprego, e os grandes bancos estavam salvos, os “novos sacerdotes” deste culto moderno passaram a advogar o equilíbrio orçamental e a redução da dívida como objectivos imediatos, mais importantes do que o crescimento e relançamento do emprego.
E embora a história económica demonstre que as medidas de austeridade e de contracção orçamental prejudicam drasticamente o crescimento ou levam mesmo à recessão, não favorecendo, portanto, a criação de emprego antes o retraindo, nem beneficiando, a prazo, as perspectivas orçamentais que teoricamente lhes servem de fundamento, nem por isso os “novos sacerdotes” mudam de opinião, certos como estão de que somente uma política de austeridade (e dos sacrifícios que ela encerra) será capaz de aplacar a “ira dos deuses”.
Este dilema está patente no “moderno capitalismo”, desde o início da crise financeira: logo que a crise eclodiu em toda a sua magnitude, Bush e os republicanos, na América, e Angela Merkel e o seu partido, na Alemanha, defenderam a falência das empresas em crise e o consequente afastamento do Estado, deixando que as coisas se resolvessem por si. Somente quando a crise atingiu proporções antes insuspeitadas e se começou a perspectivar a falência em cadeia do sistema financeiro mundial é que, de um lado e do outro do Atlântico, se passou a defender a intervenção, em alta escala, do Estado, para impedir a ruína do sistema financeiro e, com ela, o desabamento da “economia real”.
É bom que se diga que, embora houvesse uma certa convergência ideológica entre a posição de Bush e a de Merkel, a coincidência de posições também era ditada por análises actuais e históricas diferentes que, todavia, convergiam no sentido de uma posição política relativamente semelhante.
Enquanto na América a tradição económica republicana vai no sentido de um afastamento do Estado de toda a actividade económica, sem que com isto se queira defender ou sugerir qualquer tipo de neutralidade estadual – aliás, historicamente desmentida pela política fiscal dos republicanos relativamente às grandes empresas e aos mais altos rendimentos – deixando que o tecido económico se auto-regenere quando qualquer grave “moléstia” o afecta, e um não menor desprezo pelas consequências sociais da crise, na Alemanha pairava a ideia de que o seu sistema financeiro passaria relativamente incólume pela tormenta e pairava também o espectro de que a “injecção” de avultadas somas financeiras na economia acarretaria inevitavelmente uma espiral inflacionista que nunca se sabe como se desenvolve, nem que consequências pode trazer (enfim, a memória da hiperinflação de Weimar a impor as suas regras…).
Mas de um e outro lado do Atlântico havia também quem, na esteira de Keynes, tomando como exemplo a política económica de Roosevelt, subsequente à Grande Depressão, defendesse uma forte intervenção do Estado na economia, mediante a aplicação de medidas de estímulo, tanto de apoio directo às empresas em crise como por via da realização de grandes obras públicas, capazes de relançar a procura, combater a deflação, promover o crescimento e o emprego, mesmo que à custa ou, inevitavelmente à custa, do agravamento do défice, assunto que seria resolvido mais tarde, logo que a economia retomasse um ciclo de crescimento e prosperidade.
Passada que foi a primeira fase da crise – aquela que afectou o sistema financeiro e o deixou muito perto do colapso – e uma vez restabelecida à custa dos Estados, o mesmo é dizer dos contribuintes, a solvabilidade do sistema bancário, logo as velhas divergências voltaram à tona, agora de forma ainda mais vincada, entre as duas vias de “recuperação da crise”.
Na América, Obama, um pouco na sequência do que Bush foi obrigado a fazer no termo do seu mandato, defendeu e fez aprovar um grande plano de resgate do sistema bancário, medidas de apoio ao sector automóvel e algumas outras, nomeadamente na área do imobiliário, sem que contudo tenha conseguido intervir significativamente no domínio das pequenas e médias empresas, fortemente afectadas pelas políticas de crédito restritivas postas em prática pelos bancos. Apesar de todas estas limitações, a resposta relativamente positiva da economia, embora sem reflexos visíveis no domínio do emprego, encorajou os republicanos a privilegiarem doravante o combate ao défice e à dívida – pelo qual, eles, mais do que ninguém, são responsáveis em consequência das políticas belicistas que desencadearam – e levou-os a contestar, com a ajuda dos democratas mais conservadores, toda e qualquer medida de agravamento do défice ou da dívida, sem quaisquer preocupações, como sempre, pelas consequências sociais desta política, aliás sabiamente dissimuladas por via de uma propaganda, muito ao jeito americano, que imputa à presença do Estado a responsabilidade pela actual situação. Sem uma linha de rumo clara, Obama tem hesitado entre apostar numa política marcadamente keynesiana, sem preocupações imediatas pelo défice e pela dívida, e uma política intermédia que pretende satisfazer ambas as partes sem no fim de contas contentar ninguém.
Na Europa, como se sabe, passado que foi o susto da falência dos bancos e depois de postos à disposição do sistema financeiro praticamente a custo zero centenas de milhares de milhões de euros, vingou a tese do reequilíbrio orçamental, em três anos, à custa de pesadíssimos programas de austeridade. Programas que certamente agradam aos bancos mas que não deixarão de se reflectir muito negativamente nas economias dos países mais endividados.
A adopção desta política pelos diferentes países da EU, ou da zona euro, não terá, ao contrário do que frequentemente se diz, os mesmos efeitos nas diversas economias. As economias menos competitivas e, por isso mais endividadas, verão, por um lado, agravar-se o fosso que as separa das mais competitivas e, por outro, diminuir consideravelmente o rendimento de largas camadas das suas populações.
O facto de os países citados estarem enquadrados num espaço económico como o da União Europeia, sujeito a regras comuns em tudo quanto seja liberalismo económico, faz com eles não tenham qualquer hipótese de adoptar políticas alternativas de combate à crise, não apenas porque, se as pusessem em prática, seriam fortemente causticados pelos mercados financeiros, mas também porque, em virtude da sua estrutura económica, a maior parte das políticas de estímulo que eventualmente viessem a adoptar, como as grandes obras públicas, acabariam por se reflectir mais positivamente em países terceiros do que no próprio país, o qual, em última instância, até poderiam prejudicar.
Já na América as coisas passam-se de forma radicalmente diferente. Em primeiro lugar, os efeitos das medidas de estímulo produzem-se, em grande medida, no próprio país; em segundo lugar, como as estatísticas demonstram, ao aumento de défice e da dívida não corresponde um aumento da taxa de juro (pelo contrário, até tem descido); e, em terceiro lugar, porque a maior parte da dívida está contraída na moeda nacional – e não numa moeda comum - cujo controlo lhe pertence em absoluto. Finalmente, se a economia crescer, em consequência da adopção daquelas políticas, o facto de tal acrescimento ser acompanhado de alguma inflação só terá vantagens, em termos nacionais. O efeito conjugado da inflação e do crescimento fará diminuir a dívida!
Há oitenta anos, sem que com isto se pretende negar as divergências de análise e de propostas dentro do próprio sistema, sempre havia uma preocupação comum que tornava aquelas divergências menos marcadas: evitar o colapso do sistema capitalista e a sua substituição pelo sistema socialista. Hoje, o capitalismo funciona sem freios de qualquer espécie e nem sequer hesita na adopção de políticas socialmente muito gravosas contanto que elas sejam as que mais favoreçam o lucro, no caso, do capital financeiro, hoje o verdadeiro “senhor” da política.
Como se sabe, na última cimeira do G 20 vingou, com pequenas “nuances” a tese europeia, defendida pela Alemanha, de que a crise se combate com medidas de austeridade que apontem, o mais rapidamente possível, para a eliminação dos défices orçamentais com vista ao almejado propósito de alcançar o equilíbrio orçamental, o novo alfa e ómega da civilização capitalista.
Na próxima cimeira, de Novembro, em Seul, vão debater-se as duas teses de “combate à crise”.
Do lado da Europa, por imposição da Alemanha, será defendida a política que no “espaço europeu” tem sido seguida sem contemplações – austeridade.
Do lado dos Estados Unidos, Obama muito causticado entre os que advogam o equilíbrio orçamental (exactamente os mesmos que mais o desequilibraram) e o quase nulo crescimento da economia e do emprego, parece decidido a optar por novas políticas de estímulo à economia. Se tal vier a acontecer, o que está longe de poder considerar-se adquirido, poderá tal posição vir a ter alguma influência positiva na Europa…
2 comentários:
Doutor Correia Pinto,
parabéns pela análise.
Mais uma vez, não tendo formação académica em economia, consegue entender, e explicar por miúdos, o que muitos economias não conseguem sequer entender.
Consegue pôr o link do artigo do Krugman que citou na mensagem? Não o consigo encontrar.
Já está feito o link.
Obrigado
CP
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