quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A PROPÓSITO DO TEA PARTY


UMA IDEIA QUE VEM DE LONGE

Causou compreensível apreensão a vitória nas primárias americanas de vários elementos do Tea Party em estados onde, habitualmente, o tipo de discurso usado pelos candidatos daquele movimento têm pouca penetração. Para além dos efeitos imediatos do movimento nas próximas eleições de 4 de Novembro e da vantagem inesperada que ele poderá trazer aos democratas, que admitem ter mais facilidade de vencer contra adversários ultra-conservadores do que contra o habitual (das últimas três décadas) establishment do Partido Republicano, interessa dizer que a ideia base deste movimento - significativamente chamado Tea Party, em homenagem aos colonos americanos que no século XVIII se insurgiram em Boston contra as consequências do Tea Act aprovado pelo Império Britânico -, a luta contra o Estado, está longe de ser original na história do pensamento político ocidental.
Pode mesmo dizer-se que a história do pensamento político ocidental está muito marcada pela visão positiva ou negativa que se tem do Estado. O fim do Estado, a questão de saber se o Estado deve acabar, depende da visão positiva ou negativa que se tenha acerca da sua existência.
Este problema, do fim do Estado, não se confunde com aquilo a que vulgarmente se chama a crise do Estado. A crise do Estado, qualquer que seja a perspectiva de que se parte, tem a ver com a incapacidade do Estado, de um certo tipo de Estado, seja ele o Estado socialista, ou o Estado capitalista, ou até o Estado social, para responder eficazmente às tarefas que se propõe realizar.
Já a extinção do Estado, saber se o Estado deve ou não acabar, é uma questão que está, como se disse, estritamente ligada, ao juízo negativo ou positivo que sobre ele se tenha. Todavia, a visão negativa do Estado não implica necessariamente a defesa do fim do Estado. Ela é conciliável com uma ideia de Estado como um mal necessário.
Assim, ao lado da visão positiva do Estado, há uma visão negativa, que compreende duas versões: o Estado como um mal necessário e o Estado como um mal não necessário.
A visão positiva remonta a Aristóteles, depois retomada pela filosofia escolástica, para quem a polis tem por função tornar possível uma vida feliz, mas culmina na concepção racional do Estado que vai de Hobbes a Hegel, passando obviamente por Rousseau. O Estado é um imperativo da razão porque fora dele o que existe é o estado de natureza, o “mundo das paixões desenfreadas e dos interesses antagónicos e inconciliáveis”.
É no quadro da visão positiva do Estado que se discute e aprofunda a “república ideal”, que tem sempre como pressuposto a ideia de que o Estado que existe em cada momento histórico é um Estado imperfeito.
Do lado oposto, as mais conhecidas doutrinas que, tendo uma visão negativa do Estado, defendem a sua extinção – um mal não necessário – são a marxista, principalmente Engels, e a anarquista, assentando a primeira na ideia de que, sendo o Estado fruto da divisão da sociedade em classes, de modo a permitir o domínio de uma classe por outra, deixará de se justificar, por desnecessário, numa sociedade sem classes, estágio supremo do comunismo; a segunda, a anarquista, funda-se numa ideia libertária contrária a toda a forma de autoridade e coerção, sonhada possível numa sociedade sem leis, assente na espontânea cooperação de todos os indivíduos.
Já a concepção negativa do Estado como um mal necessário tem raízes muito antigas no pensamento político ocidental. Historicamente, o contraponto ao Estado, disputando-lhe a primazia, é a Igreja e a sociedade civil.
O primitivo pensamento cristão, passando por Santo Agostinho e Santo Isidoro de Sevilha e mais tarde retomado por Lutero, na sua luta contra a acomodação da Igreja e o exercício do poder temporal, encara o Estado como um mal que não pode dispensar, já que é necessário, pelo medo, pôr ordem e freio na massa “perversa” dos homens. O Estado é um “remedium peccati”. Acima do reino dos homens estará porém sempre o reino de Deus, a Cidade de Deus. O Estado não resolve, nem esgota as aspirações do Homem, acima dele está a Igreja, que dele se serve, apesar de imperfeito, para que o Homem possa alcançar o reino de Deus. O Estado é imperfeito, mas é preferível tê-lo a viver na anarquia e na desordem.
A outra concepção, a da prevalência da sociedade civil, estritamente ligada ao desenvolvimento da sociedade capitalista, assenta na ideia de que Estado é ditado pela perversidade humana, mantendo sob controlo os seus vícios e paixões, enquanto a sociedade civil promove a felicidade humana e cuida das suas necessidades. Desde Adam Smith, portanto, desde o desenvolvimento do pensamento liberal, que se vem reclamando para o Estado o desempenho de funções mínimas (a defesa externa e a ordem interna), com base no argumento de que o Estado é tanto melhor quanto menos funções desempenhar.
A verdade é que o Estado nesta configuração não é um mal necessário, mas um bem indispensável para os titulares dos interesses que mais se identificam com a defesa do Estado mínimo. Para os defensores desta tese é indispensável que o Estado proteja a propriedade com a configuração jurídica de que ela se reveste na sociedade capitalista, bem como seja ainda capaz, se o Estado tiver condições para impor uma lógica de domínio, que ele tenha externamente a força suficiente para assegurar a sua hegemonia. Trata-se de um Estado que, além de indispensável, nada tem de fraco, já que a dita sociedade civil em que ele assenta de forma alguma poderia passar sem ele. O que se pretende é que o Estado não intervenha em áreas onde a força muito desigual das partes em presença permite assegurar o domínio das economicamente mais fracas pelas mais fortes.
O Tea Party exacerba de certa maneira este ponto de vista, porque assentando numa ideia relativamente primária – o Estado, Washington, é a causa de todos os males, logo há que abatê-lo – aproxima-se de um anarquismo de direita, aparentemente libertário, mas na realidade bem coercivo relativamente aos emigrantes, aos que defendam valores contrários aos “valores americanos” e até na defesa de um puritanismo moral e religioso que sob alguns aspectos o aproxima dos movimentos religiosos fundamentalistas.
A grande diferença do Tea Party relativamente ao passado próximo é o facto de o seu populismo e primarismo doutrinal contrastarem com a actuação que, pelo menos desde há duas ou três décadas para cá, o Partido Republicano vinha imprimindo à vida política americana. De facto, esta actuação, assente numa doutrina – o neoconservadorismo – ideologicamente coerente, consolidou uma prática política internamente baseada no neoliberalismo e externamente na avaliação dos Estados da comunidade internacional em função do seu regime interno, atribuindo ao Estado americano naquele contexto um papel primordial na defesa do “bem”. O neoconservadorismo, tendo partido de uma crítica contundente e sistemática do New Deal e da Grande Sociedade e aproximando-se sob certos aspectos de alguns valores fundacionais da América, embora tenha defendido a redução do papel do Estado nas áreas que possam ser ocupadas pela iniciativa privada, nunca advogou uma “guerra” contra o Estado contanto que este se mantenha dentro funções que lhe são assinaladas, nem tão pouco filosoficamente pugnou pela ideia de um Estado fraco.
O populismo do Tea Party, que encontra fácil eco nas camadas mais incultas da sociedade americana – e muitas são –, é, porém, um projecto em pleno desenvolvimento, não sendo de descartar a hipótese de vir a permitir um rearranjo das forças políticas americanas, à semelhança do que está a acontecer em vários países da Europa, à volta de ideias racistas e xenófobas que, pressentindo a crise inevitável das sociedades ocidentais, pretendem constituir um último reduto contra o multiculturalismo, o relativismo filosófico, enfim, o pluralismo das modernas sociedades democráticas.
Constituindo de certa forma a globalização uma vitória das forças que têm uma visão negativa do Estado e que advogam uma generalizada diminuição do seu papel em tudo o que possa ser substituído pela sociedade civil - à letra “sociedade burguesa” -, reclamando uma liberdade incondicionada para a movimentação de capitais e de mercadorias, não deixa de ser paradoxal que uma das consequências dessa mesma globalização – a circulação de pessoas – constitua hoje, por toda a parte, a grande preocupação e grande alvo dessas mesmas forças, por a considerarem uma ameaça à matriz da sua civilização.
Mas isto também significa que “grandes vitórias”, não sendo necessariamente de Pirro, também nunca são aquilo que parecem ser. A vitória do capitalismo liberal de feição anglo-saxónica sobre o comunismo soviético longe de implantar uma ordem unidimensional sob a hegemonia da superpotência dominante e seus aliados possibilitou o aparecimento de uma ordem muito mais complexa onde as relações de poder, tanto as ostensivas como as ocultas, são muito mais difíceis de controlar, criando uma instabilidade permanente e tornando praticamente inoperantes os gigantescos potenciais bélicos como instrumentos de dissuasão e de retaliação.

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