O ENGANO DAS PALAVRAS
Mais do que em qualquer outra época é nas épocas de crise que
as palavras tendem a perder o seu significado corrente, sendo muitas vezes
usadas num sentido propositadamente enganador com vista a por meio deles se
obterem resultados diametralmente opostos ao que elas aparentemente significam.
Nas épocas de grandes convulsões sociais, de grandes
mudanças, acontece com frequência as “palavras chave” desses momentos, umas
vezes reflectindo o programa de quem governa, outras as aspirações dos
governados, serem completamente adulteradas por aqueles que, tendo perdido a
hegemonia, fingem identificar-se com os novos objectivos,
usando as palavras dos que agora governam, embora atribuindo-lhes, com reserva mental,
significados completamente diferentes. Quem não se lembra das declarações dos pides sobre “democracia” a seguir ao 25
de Abril e do “socialismo personalista” do CDS de Freitas do Amaral? Outras
vezes são aqueles que lideram mudanças contra as aspirações populares que usam as
mesmas palavras que consubstanciam aquelas aspirações, também neste
caso com um sentido diferente do que lhes é atribuído, para falsamente
darem a ideia de que estão a ir ao seu encontro e assim tentarem confundir e
dividir o campo adversário.
Face às consequências da presente crise dramaticamente
evidenciadas pelo desemprego em massa e pelas falências em cadeia, além do
agravamento generalizado das condições de vida da maior parte dos cidadãos, “crescimento”
é a nova palavra chave. É o conceito por cuja concretização as massas populares
aspiram como remédio adequado a estancar a sangria dos despedimentos e a relançar
a economia.
É certo que a “Matrona da Saxónia” e seus lacaios, a começar
por Passos Coelho, têm evitado criteriosamente o uso deste conceito, tendo, pelo
contrário, insistido em palavras indiciadoras de programas que aberta e
claramente o contrariam. Ainda há dias, em Bucareste, no Congresso Popular Europeu,
Merkel escarneceu, na presença dos seus confrades, do conceito de crescimento.
Quando estava no uso da palavra, virando-se -se para trás, na direcção do Presidente
da Comissão Europeia, disse: “Era bom que explicassem ali ao José Manuel
Barroso como é que num passe de mágica essa coisa de crescimento se alcança”. E
depois de ter insistido que não é por via de “diretivas europeias” que o
crescimento se conseguirá, debitou a cartilha neoliberal com todos os
ingredientes conhecidos (liberdade, empreendedorismo, combate à
burocracia, etc.). E por cá o nosso homem, isto é, o homem dela, também não
quer ouvir falar em tal palavra.
Mas se Passos Coelho actua desse modo por subserviência, covardia
política ou calculismo manhoso, já o mesmo se não poderá dizer de Merkel que,
sentindo-se relativamente confortável perante o seu eleitorado, rejeita o
conceito por obviamente perceber que a sua concretização prática lhe iria
custar algum dinheiro e simultaneamente temer que essa concretização lhe acarretasse
perda de apoio eleitoral, apesar das vantagens futuras que essa política pudesse
proporcionar.
Acontece, todavia, que os representantes da alta finança
mundial estão preocupados com a situação na Europa, não apenas pelo reflexo que
a situação económica europeia pode ter noutras economias, como também pela
imprevisibilidade das consequências políticas que uma crise prolongada pode
ocasionar. E é essa a razão que levou os altos representantes do Banco Mundial,
do FMI, da Organização Mundial do Comércio, da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico e da Organização Internacional do Trabalho a fazerem
uma ronda pelas grandes capitais europeias (Paris e Berlim), pedindo “medidas
de crescimento”.
O que Hollande realmente pensa sobre o assunto ainda é um
mistério. O Presidente francês acha que a Europa está a sair da crise, fazendo
gala de um optimismo que o próprio Pangloss invejaria, ou talvez não, tendo em
conta que o mestre de Cândido mais não é do que a expressão do pensamento
alemão (Leibniz) contrário ao de Voltaire. Que Hollande acabe por seguir o exemplo
de Cândido quando desencantado da perfeição do mundo que lhe pregavam acabou
por se guiar pela sua própria cabeça, sobrevivendo ao mais terrível dos “terramotos”,
é o que a Europa do Sul realmente espera. Todavia, entre a espera e a realidade
vai uma incomensurável distância.
Deixando Voltaire e voltando ao tema, a resposta de Merkel,
em Berlim, à mesma diligência que teve lugar em Paris, foi “redonda”, mas em
qualquer caso menos arrogante que a proferida em Bucareste.
Mas o que querem dizer os representantes daquelas organizações
económicas internacionais quando reclamam aos governantes mais influentes da
zona euro “medidas de crescimento”?
Em capitalismo, em tempos de crise grave, de depressão ou recessão
prolongada, ou seja, de algo que vai muito para além da parte baixa do ciclo
económico, só há duas formas de atacar o problema: ou mediante uma receita
idêntica à que se aplicou na Europa a seguir à I Guerra Mundial e começou por
se aplicar, nos Estados Unidos, a seguir à Grande Depressão de 1929 sob a presidência
de Hoover, de resto algo muito semelhante ao que agora se está a fazer na Europa;
ou mediante a aplicação das teses inovadoras e revolucionárias de Keynes.
As teses keynesianas foram hegemónicas na Europa até Thatcher,
e, principalmente, nos Estados Unidos, até
à presidência de Reagan, apesar de os choques petrolíferos terem gerado uma
situação que parecia contrariar o pensamento de Keynes – inflação e estagnação,
simultaneamente. De facto, a famosa “estagflação”
pôs em causa um dos mais relevantes axiomas keynesianos (inexistência de desemprego
com inflação), levando a que os discípulos da velha Escola de Viena, agora em
Chicago, aliados aos neoconservadores, tivessem encontrado na persistência
daquela situação a grande oportunidade para pôr em causa as teses keynesianas e
poderem voltar a pôr em prática os grandes princípios da economia liberal. A
partir daí eles disputaram gradualmente a hegemonia de Keynes, a ponto de o
terem suplantado claramente a partir da presidência de Reagan e do consulado de
Thatcher, como acima se disse.
Mais que Milton Friedman (um ex-keynesiano), o grande
inspirador deste pensamento político-económico de substracto filosófico foi Hayek.
É ele, porventura mais com os seus livros políticos, principalmente “O Caminho para a Servidão”, do que com
as suas teses económicas, que acaba por guiar a acção de Thatcher na Europa e
que nos Estados Unidos inspira Reagan. É ele também, disso não haja dúvidas, o
mestre de Merkel, Schäuble e Gaspar.
É bom não esquecer, todavia, que foi Friedman e não Hayek que,
a partir da experiência histórica da Grande Depressão, apresentou uma teoria bem
diferente da de Keynes e também da de Hayek, para combater a depressão. Diz
Friedman que se a oferta de moeda tivesse sido aumentada cautelosamente, em vez
de contraída excessivamente, e as taxas de juro tivessem baixado, a Grande
Depressão teria sido evitada ou teria durado muito menos. Friedman não era,
portanto, um grande admirador de Hayek no plano económico, embora tivesse sido no
plano político, pelo menos até certa altura.
Acontece, porém, que o monetarismo (de Milton Friedman) não
evitou a crise financeira de 2008, nem as suas mais dramáticas sequelas,
voltando tudo de novo ao princípio. Como sair da crise, afinal? Com Keynes ou
com Hayek?
É neste contexto que os representantes das grandes
organizações económicas internacionais apelam na Europa a “medidas de
crescimento”. Que medidas de crescimento são estas? E assim voltámos, para
finalizar, à questão das palavras enganosas. Seria ilusório supor que aquelas
personalidades vieram pedir a Paris e principalmente a Berlim a aplicação de
medidas keynesianas em grande escala para sair da crise. Nada disso. Eles estão longe de acreditar que será pelo
incremento da despesa pública, nomeadamente das grandes obras públicas, que se
combate a crise. A tese deles, tanto quanto se percebe, é “moderar Hayek” (evitando
deixar cair tudo o que não tem força para se aguentar) e aproveitar alguma da
experiência de Friedman. Ou seja, reduzir os impostos, não apenas das empresas,
mas dos cidadãos em geral, principalmente dos mais ricos (como estímulo
económico) e reduzir a despesa social (libertando, assim, recursos – é a
terminologia deles – para a economia privada). Este o conceito de “medidas de
crescimento” daqueles notáveis representantes. Para já a conversa é
propositadamente ambígua e politicamente apelativa, mas quando atrás deles vierem
os “homens de fato preto”, para pôr em prática as tais medidas, ver-se-á que
será igualmente à custa do Estado Social que se vai tentar sair da crise. E ai
certamente que alguém ficará a ganhar e muito!
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