MAIS UM, AGORA PARA WASHINGTON!
Alguns se recordarão que há cerca de três anos o Ministério dos Negócios Estrangeiros pôs abruptamente termo a cerca de três dezenas de contratos e comissões de serviço de adidos e conselheiros em serviço junto de diversas embaixadas, com o argumento, então apresentado por Freitas do Amaral, de austeridade orçamental.
Rapidamente se percebeu, tanto durante o mandato de Freitas, como principalmente do do seu sucessor e actual titular, que tal argumento não passava de um pretexto para sanear um conjunto de pessoas que ao Ministério não convinha manter nas funções que então desempenhavam. Prova disso é o facto de a tal lei anunciada por Freitas para regular em novos termos as futuras contratações nunca ter sido aprovada e a circunstância de o decurso do tempo se ter encarregado de demonstrar que novas contratações para os mesmos e outros lugares se terem continuado a fazer a um ritmo nunca antes visto, de tal modo que hoje elas mais que triplicam os saneamentos de há três anos.
A análise destas nomeações para os quatro cantos do mundo, embora com especial incidência em Bruxelas, constitui o exemplo mais acabado do modo como hoje em Portugal os governantes exercem os poderes discricionários que a lei lhes confere e como interpretam o interesse público que aqueles poderem têm em vista prosseguir. Os casos mais escandalosos têm sido aqui denunciados, embora verdadeiramente todos sejam escandalosos, porque em todos eles se trata de usar os poderes públicos e os recursos públicos sem a devida fundamentação. Quem tiver em seu poder a extensa lista das nomeações efectuadas estará particularmente à vontade para falar sobre este assunto…
Acontece que, dentre as pessoas que há três anos mais se destacaram no trabalho de intoxicação dos media, tentando fazer passar a mensagem de que a acção de Freitas do Amaral era verdadeiramente democrática e profilática na medida em que visava a transparência do sistema e o saneamento das finanças públicas, conta-se o seu porta-voz de então, o sr. Carneiro Jacinto.
Vale a pena perder algum tempo na análise do curriculum deste cavalheiro para se compreender melhor, não a sua personalidade, mas como actua, no quadro deste governo e noutros da mesma cor, o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Pois bem, este sr. foi porta-voz de Mário Soares, como PM (1983/85) e como PR (1986/89), tendo sido exonerado destas últimas funções antes do termo do primeiro mandato presidencial por factos que ele, melhor do que ninguém, poderá explicar. Ou, se as explicações do próprio não foram suficientes, sê-lo-ão certamente as do Chefe da Casa Civil ou do Chefe de Gabinete do Presidente.
Como prémio, foi depois colocado na embaixada de Portugal em Washington, com a categoria de conselheiro de imprensa, onde esteve durante alguns anos (1995/98). Entretanto, Pina Moura, Ministro da Economia de Guterres, nomeou-o administrador do ICEP, onde, a fazer fé nos textos de então, passou a desempenhar funções com a categoria de “doutor”.
Com esta mesma categoria, que consta de alguns anuários do MNE (nos anuários do MNE os dados biográficos são fornecidos pelos próprios), foi colocado na embaixada de Portugal em Paris como conselheiro de imprensa (2001). É durante este período que os anuários do MNE referem entre os seus dados biográficos a licenciatura em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (não, não é pela Independente…é pela Clássica!). Depois de vários anos em Paris, António Monteiro, então Embaixador na capital francesa, entretanto empossado Ministro, requisitou-o, em Outubro de 2004, para desempenhar as funções de porta-voz dos serviços centrais do MNE. Freitas do Amaral, no governo Sócrates, herdou-o e manteve-o com gáudio e pompa no desempenho dessas mesmas funções, onde chegou a ter uma visibilidade nunca antes atribuída a um lugar daquela natureza.
Acontece que os diplomatas em posto ou equiparados quando requisitados para desempenhar funções em Lisboa passam a receber pelo vencimento de origem, ficando automaticamente suspenso o abono de representação. O vencimento de origem do sr. Carneiro Jacinto, agora dr., era muito baixo e terá sido certamente esse facto que levou, já durante o mandato de Freitas, o ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros, Martins da Cruz, a perguntar na imprensa qual era o vencimento por que estava a ser pago o sr. Carneiro Jacinto. Perante tão incómoda pergunta, Freitas do Amaral lavrou um despacho atribuindo-lhe, com efeitos retroactivos a 12 de Março de 2005 (data da tomada de posse do governo) a remuneração mensal de 4.432 euros!
Então, o sr. Carneiro Jacinto, que pelo anuário desse ano já não era outra vez dr., num “gesto largo, liberal e moscovita” pediu a exoneração do cargo que já não ocupava há cerca de dois anos, para se manter apenas como porta-voz de Freitas do Amaral. E o Ministro num “gesto largo e transbordante” pagou-lhe, pelos vencimentos de Paris, o pré-aviso a que ele não tinha direito…por ter sido exonerado a seu pedido! E no lugar de Lisboa ficou enquanto Freitas do Amaral foi ministro.
Pois é esse mesmo cavalheiro, agora novamente apenas sr. Carneiro Jacinto, que Luis Amado, Ministro dos Negócios Estrangeiros, certamente ao abrigo de um programa de contenção orçamental, acabou de contratar para desempenhar as funções de conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal em Washington! Grande Ministério e grande Ministro!
Relembro a Democracia Ateniense, relembro Tucídedes e a oração fúnebre de Péricles, no livro II da História da Guerra do Peloponeso, quando, na exaltação das virtudes atenienses, disse:
“A nossa constituição não copia as leis dos Estados vizinhos. Bem pelo contrário, somos mais um modelo para os outros que imitadores de costumes alheios. A nossa administração favorece a maioria do povo e não uma restrita minoria. É por isso que lhe chamamos democracia. Quando temos de recorrer às leis, verificamos que elas conferem a todos o mesmo nível de justiça, no respeito pelas suas diferenças. A progressão na vida pública depende do mérito e das capacidades de cada um, sem olhar à sua origem social. Se um homem possui aptidões para servir o Estado, não é a obscuridade da sua condição social que o impede o fazer (….) Mas toda a liberdade de que gozamos não faz de nós cidadãos sem leis. Contra este receio a salvaguarda encontra-se na nossa educação, que nos leva a obedecer aos magistrados e ao cumprimento das leis, particularmente as que respeitam à protecção dos oprimidos, sejam elas leis escritas ou pertençam aquela outra categoria que, não estando escritas, não podem sem vergonha ser violadas”.
Relembro também Montesquieu e as virtudes republicanas tão magistralmente descritas no “Espírito das leis”.
Mas vem-me também recorrentemente à ideia o Código Penal, no Título V, dos Crimes contra o Estado, nomeadamente os descritos no capítulo IV, dos Crimes cometidos no exercício de funções públicas, e interrogo-me se, além dos tipificados (corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de autoridade, etc.), não se deveria ir muito mais longe na defesa do interesse público.