QUE MUDANÇAS COM A NOVA ADMINISTRAÇÃO?
Desde Reagan, salvo os 4 anos de Bush pai, que a política externa americana apresenta características muito comuns, independentemente de a administração ser republicana ou democrática. As diferenças porventura existentes são mais tributárias do contexto internacional em cada momento existente do que propriamente dos princípios que a informam.
A política realista que atingiu o seu auge com Nixon/Kissinger foi, a partir de Reagan, substituída pelo pensamento neoconservador que prescreve princípios completamente diferentes dos até então seguidos. Bush pai, formado na velha escola realista da política externa americana, apesar de ter sido Vice-presidente de Reagan durante oito anos, manteve-se sempre mais perto dos velhos princípios do que do novo pensamento que começava a dominar, das universidades à administração, a vida política e intelectual americana. O fim da guerra fria, na América muito associado à política de Reagan, permitiu uma expansão sem precedentes do pensamento neoconservador.
O pensamento neoconservador está, contudo, longe de ser uma novidade, embora tenha adquirido um novo fulgor na década de 80 e se tenha depois consolidado doutrinalmente na década seguinte.
A sua génese é normalmente associada ao grupo de intelectuais judeus que na segunda metade dos anos 30 até ao começo de 40 frequentou o City College of New York (CCNY). É um grupo constituído por Irving Kristol, Daniel Bell, Seymour Martin Lipset, Irving Howe, Nathan Glazer, Philip Selznick e Daniel Patrick Moynihan. Trata-se de gente oriunda da classe trabalhadora, ligadas a meios de imigração recente, que frequentavam o CCNY por não terem dinheiro para estudar nas escolas de elite americanas. É gente, nos seus primórdios de esquerda, ligada ou próxima do trotskismo, que, por oposição ao estalinismo, evoluiu para um anticomunismo militante e mais tarde para uma contundente oposição aos meios liberais americanos de esquerda que encaravam com alguma simpatia os objectivos de uma sociedade mais igualitária construída com o apoio do Estado.
Nem todos os membros do grupo evoluíram da mesma maneira ou até no mesmo sentido. Há quem tenha ficado ligado ao Partido democrático, como Daniel Moynihan, e outros, poucos, mantiveram-se numa posição centrista, como Bell e Glazer, embora a maioria tenha caminhado abertamente para a direita. Foi a estes que mais tarde se juntaram novos pensadores, como Leo Strauss, judeu alemão emigrado para os EUA na década de 30 e Albert Wohlstetter, professor de nomes ilustres que mais tarde trabalharam na administração de Georges W. Bush. Mas é já na década de 90 que o filho de Irving Kristol, William Kristol e Robert Kagan, acabarão por dar um contributo muito importante para uma certa coesão do pensamento neoconservador tal com hoje se encontra estruturado.
São quatro as principais ideias norteadoras do pensamento neoconservador:
Em primeiro lugar, a ideia de que a natureza interna do regime influencia decisivamente o seu comportamento externo; se, por um lado, tal ideia significa que um regime não democrático, segundo o ponto de vista americano, acabará sempre por reflectir na sua politica externa a essência do regime, ela significa também, por outro lado, que a política externa das democracias deverá reflectir os valores das sociedades abertas que elas constituem;
Em segundo lugar, a ideia de que o poder americano tem sido e pode ser usado para servir fins morais; os Estados Unidos como potência mundial dominante têm de permanecer envolvidos na política internacional e o seu poder deve e pode ser usado para atingir objectivos morais;
Em terceiro lugar, a ideia de que são de rejeitar todos os projectos de “engenharia social” ou de construção social; esta ideia que tem a sua génese na rejeição do estalinismo estendeu-se depois a todo e qualquer tipo de engenharia social, desde os programas de Combate à Pobreza e a “Grande Sociedade” de Lyndon Johnson, até aos estados de bem-estar social europeus, tanto de origem democrata-cristão, como social-democrata;
Em quarto lugar, a ideia de rejeição, ou, pelo menos, um grande cepticismo em relação à eficácia e legitimidade do direito internacional e das instituições internacionais como instrumentos adequados a garantirem a segurança e a justiça; dai a desconfiança com que encaram as Nações Unidas, o multilateralismo e outras formas de cooperação multilateral, desde que estas se mostrem renitentes ou resistentes a abandonar os velhos princípios.
O conhecimento de tantos episódios da história recente dispensa exemplificações. E tais episódios, como a intervenção da NATO na Jugoslávia, Kosovo incluído, não são exclusivos da administração Bush nem de outros republicanos. Por outro lado, aquando da guerra do Iraque, ficou também claro para os ideólogos da Casa Branca, que a NATO, enquanto aliança militar dominada pelos Estados Unidos, só interessaria como organização multilateral se desse plena satisfação àqueles princípios.
Se igualmente nos recordarmos da concordância (expressa em palavras) de Guterres com a “hegemonia benevolente” ou benigna dos Estados Unidos, ou das declarações de outros socialistas, como Ana Gomes, que abertamente reclamam a intervenção da União Europeia por “razões humanitárias”, isto é, morais, nesta ou naquela parte do mundo ou a sua colaboração na mudança de regimes, ficamos com uma ideia bem aproximada da capacidade de penetração do pensamento neoconservador em muitos daqueles que se consideravam opositores de Bush.
O grande desafio da nova administração americana estará na sua capacidade para romper com o pensamento neoconservador na política externa americana. Tal objectivo constituirá, ninguém duvide, uma ingente tarefa. Há, todavia, alguns sinais positivos que o futuro se encarregará ou não de confirmar. De todos, o mais significativo, é alocução dirigida ao Irão, na qual expressamente se assume que a América não pretende mudar o regime. Ponto de vista absolutamente inaceitável para os neoconservadores. Também os recentes desenvolvimentos quanto à Rússia, que os neoconservadores, como R. Kagan, consideram um regime não democrático, vão no mesmo sentido, embora sejam menos significativos.
A continuação do alargamento da NATO a leste, a questão da Geórgia e da Ucrânia, o escudo anti-míssil na Polónia e a base de radares na República checa serão outros tantos temas que permitirão aferir do alcance das mudanças na administração americana.
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