DUAS OU TRÊS NOTAS QUE AJUDAM A CLARIFICAR AS COISAS
O problema da corrupção nas democracias dos nossos tempos está ligado a dois factores que se têm revelado incontornáveis: um é o poder discricionário da administração, o outro é a tomada do aparelho de Estado pelos aparelhos partidários.
O poder discricionário é o tumor maligno da democracia. Isto de quem manda poder, em execução da lei, dizer sim ou não, sendo juridicamente válida qualquer das decisões, faz com que o titular de um poder discricionário seja alguém que, nas sociedades mercantilistas em que vivemos, tenha algo para vender. E quem tem algo para vender, mais tarde ou mais cedo, vai pôr o bem no mercado. Tudo depende do preço. O problema poderia ser consideravelmente atenuado, se os tribunais perfilhassem uma interpretação mais lata do seu poder de sindicância dos actos praticados ao abrigo daquele poder à semelhança do que já ocorre em países democraticamente mais avançados. Hipótese para já pouco provável, até pela a oposição que estas teses levantam os próprios juristas que apoiam os partidos da “governabilidade”, como eles gostam de dizer…
O outro problema, intrinsecamente ligado a este, é a tomada do Estado, a todos os níveis – administração directa e indirecta; administração central, local e regional; administração autónoma bem como a actividade empresarial – pelos aparelhos partidários. Digam o que disserem, mas as pessoas que estão de passagem pela administração, em lugares de responsabilidade, bem como as que sobem nas respectivas carreiras encostadas aos partidos a que pertencem, criam uma mentalidade e são portadores de uma ética (ou de falta dela) que nada tem a ver com uma administração constituída por profissionais, fundada no mérito e portadora de um alto sentido de defesa do interesse público. Qualidades que hoje, por corrupção material e moral, estão em vias de desaparecer da nossa administração.
A Justiça, um dos pilares fundamentais do Estado de direito democrático, é o sector que até hoje tem sabido resistir melhor a esta praga dos nossos tempos. Padece de outros males, igualmente graves do ponto de vista dos resultados esperados, mas corrigíveis com outras políticas e outros critérios de exigência, resultantes de factores muito diversos daqueles que minam, pela via da corrupção, as instituições democráticas. Importante também é que os magistrados não se deixem partidarizar no sentido vulgar e corrupto de termo, que não tem nada a ver, antes pelo contrário, com a exigência de um alto nível de consciência política.
Vem estas considerações a propósito dos recentes desenvolvimentos do caso Freeport. Já aqui falámos noutra ocasião sobre pressões, dos vários tipos de pressões e da capacidade para lhes resistir. Não constitui um passo seguro na luta contra a corrupção a invocação de pressões que se não traduzam em verdadeiras coações ou chantagens exercidas sobre quem tem por missão desempenhar uma tarefa que não agrada ao agente pressionador. Não é aconselhável trilhar essa via. A melhor resposta a qualquer pressão, quando ela realmente existe, é o desempenho competente do trabalho que se tem a cargo.
Também não ajuda nada a luta contra a corrupção a atitude que o governo do Partido Socialista, a sua maioria parlamentar ou as suas extensões autárquicas têm tido relativamente a alguns assuntos candentes da vida pública portuguesa.
Em primeiro lugar, a escolha de uma pessoa condenada por corrupção, embora sem trânsito em julgado da sentença, para presidir a uma empresa intermunicipal, seja o lugar ocupado por rotatividade ou não, não constitui um precedente de que alguém em democracia se possa orgulhar.
Também não atesta a favor do partido que governa a recusa da equiparação do crime de corrupção por acto lícito ao crime de corrupção por acto ilícito. Se se quisesse manter a distinção, ela deveria figurar no código penal no sentido exactamente inverso ao que hoje tem: punir mais severamente a corrupção por acto lícito e alargar o respectivo prazo de prescrição. A corrupção por acto lícito tem sempre, ou quase sempre, por base um acto discricionário e é por isso mesmo muito mais difícil de investigar do que o crime de corrupção por acto ilícito.
Do mesmo modo, não assegura nenhum pergaminho na luta contra a corrupção ao partido do governo a recusa em considerar o crime de “enriquecimento ilícito”. Constitui uma fraca desculpa a que se baseia no argumento de que a consagração de tal tipo legal de crime pressupõe uma inversão do ónus da prova.
Finalmente, o Partido Socialista já deveria ter solicitado, sugerido, recomendado, aconselhado (deixo o verbo à escolha do leitor) ao seu Secretário Geral e actual Primeiro Ministro a prestação de declarações no processo Freeport.
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