A CRUA REALIDADE E A DEMAGOGIA
Conhecem-se agora melhor os contornos do famoso “acordo histórico”, a que no domingo passado chegaram, em Bruxelas, os Ministros da Economia e das Finanças, para criação de um “Mecanismo Europeu de Estabilização”. Saudado por alguma imprensa como um novo “salto na integração europeia” ou pela ingénua “esquerda” do PS como o aprofundamento da “solidariedade europeia”, o mecanismo de estabilização não passa de um instrumento destinado a assegurar a defesa do capital financeiro com todas as prerrogativas e prepotências com que hoje actua no mundo, nomeadamente nos seus campos de eleição: os Estados Unidos da América e a União Europeia.
De facto, não há qualquer solidariedade europeia, como o exemplo da Grécia dramaticamente confirmou, nem qualquer aprofundamento da integração, já que o dito mecanismo não tem em vista resolver nenhum dos graves problemas estruturais com que a UE se defronta, antes os agravará e muito – como já se está a ver e se verá muito melhor daqui a uns meses – mas apenas e só garantir a solvência e a voracidade do sistema financeiro.
Durante muitos meses os espoliadores supuseram que poderiam conviver e tirar amplo partido da situação grega, por um lado, porque a dimensão da sua economia parecia não ameaçar a estabilidade do conjunto e, por outro, porque a pressão especulativa exercida sobre ela ia permitindo num curto espaço de tempo duplicar, triplicar, os lucros.
A partir de determinada altura viu-se que a extensão da crise a outros países, a começar por Portugal, poderia atingir muito rapidamente uma massa crítica incontrolável susceptível de afectar economias intermédias em risco, como a Espanha, ou até mesmo grandes economias, como a Itália.
Se tal acontecesse – e nem era preciso que a crise chegasse à Itália, bastava a Espanha - seria o colapso do sistema financeiro euro-americano. Um colapso sem qualquer paralelo com o sofrido em 2008. Agora ninguém escaparia. Certamente que a economia real e as pessoas no seu conjunto sofreriam graves inconvenientes, mas como adiante se verá não foram as pessoas nem a economia real que motivaram a criação do tal mecanismo e das medidas ilegais que na mesma altura foram aprovadas para limitar a soberania económica dos países mais fracos. O que motivou a União Europeia foi a defesa do sistema financeiro internacional tal como existe.
De facto, não há uma única palavra sobre a regulação do dito sistema! Como se sabe, até a regulação dos hedges fund, que qualquer vigarista comum aprovaria, foi rejeitada com a desculpa de que Gordon Brown (mais um “socialista”!) não queria incomodar a City em período eleitoral.
Depois não há uma única palavra nem uma só medida sobre as duas mais graves questões que afectam a maior parte dos países da UE: o emprego e a competitividade das economias mais débeis no contexto de um espaço económico com uma moeda única forte e níveis de desenvolvimento económico muito desiguais. Nada! O que há é a certeza de que o capital financeiro e especulativo pode continuar a actuar à margem de qualquer regulamentação que tem desde já assegurada a retribuição da sua acção saqueadora!
Quem ligar o que domingo foi acordado (ilegalmente) em Bruxelas com a doutrina que resulta do acórdão do Tribunal Constitucional Alemão, à sombra do qual Merkel se tem acoitado durante a crise grega, que limitava a acção de Bruxelas estritamente ao estabelecido no Tratado de Lisboa, não permitindo qualquer actuação ultra vires, a ponto de ser o Parlamento alemão que agora controla a legislação comunitária, não pode deixar de considerar espantoso que para defesa do capital financeiro e especulativo se tenha permitido uma tão extraordinária excepção àquele princípio…apenas justificável porque ela vai aplicar-se, na prática, somente aos endividados Estados do Sul!
Para que se compreenda melhor em que consiste o dito acordo, nada como descrevê-lo nas suas linhas gerais.
Começa por se afirmar que é criado o tal Mecanismo de Estabilização Financeira que juntamente com o FMI mobilizará 750 mil milhões de euros para “ajudar” os países em dificuldades. E como se processa a ajuda? A ajuda processa-se do seguinte modo: é Bruxelas que estabelece os critérios a que devem obedecer os PEC e os orçamentos nacionais. A partir de agora os PEC e os orçamentos nacionais serão submetidos a Bruxelas, ao que parece ao Conselho, para aprovação e confirmação de que foram elaborados segundo as directivas anteriormente estabelecidas. Estas medidas serão ainda de aplicação mais restrita aos países da zona euro. A isto se chama “reforço da coordenação económica”!
Ou seja, trata-se de um controlo macroeconómico ilegal nos seus meios que despreza por completo o crescimento, que aposta em políticas recessivas para assegurar o pagamento da dívida, que omite completamente a questão do emprego – aliás, estas consequências estão intimamente ligadas – e que não avança com uma única ideia para melhorar a competitividade das economias mais fracas.
O lema da União Europeia é, cada vez mais, o seguinte: flexibilizar os mercados, “recuperar” a competitividade e reformar o Estado Providência. Numa palavra deixar o capital completamente à solta, como senhor absoluto dos nossos destinos, e acabar com tudo o que no Estado não sejam o controlo financeiro e as funções policiais.
As consequências desta crise vão ser muito diferentes das de 29. Agora ficará tudo pior e capitalismo ainda mais selvagem do que já era. Tudo isto é motivo para outra reflexão, mas a primeira e óbvia conclusão que se pode começar a tirar é que o voto perdeu sentido e a que a democracia representativa, mesmo com todas as grandes limitações com que tem funcionado desde que foi implantada no século XVIII nos Estados Unidos da América, esgotou as possibilidades da sua defesa no quadro dos procedimentos tradicionais de legitimação. Doravante terá de ser por outra via…
2 comentários:
"por outra via", expressão com que termina este post e o anterior, o que é que significa concretamente? Revolução popular, luta armada ??? !!!
Mantendo a esquerda entre aspas, substitui ridícula por ingénua por me parecer que se ajusta melhor àquilo que eu queria dizer.
CP
Enviar um comentário