E AGORA HÁ QUE ACTUAR
Submetido, como toda a gente, neste último fim-de-semana, a intensa propaganda, muita desinformação e pouco realismo, fiquei, não digo atordoado, mas sem vontade de escrever, tantas e tais eram as indignações suscitadas pelo que ia ouvindo naqueles dias em que os nossos atlantistas da Guerra Fria tiveram um “banquete” como há muito se não servia.
Mas ainda não é tempo de falar da NATO e do seu novo conceito estratégico, do Afeganistão, do escudo antimíssil e da parceria com a Rússia. É preciso deixar assentar a poeira levantada por tantas e tão ilustres comitivas e ficar atento ao que se vai passa em Washington, em Moscovo e no Afeganistão. Daqui a algum tempo teremos indicações mais correctas e interpretações muito mais fiáveis sobre o que se passou e o que se não passou na Cimeira de Lisboa. Pode até acontecer que somente daqui a dois anos as coisas comecem a ficar claras.
Também não adianta tomar a nuvem por Juno e fazer de conta que a Cimeira foi uma grande vitória da diplomacia portuguesa. Tal como num casamento ou noutra qualquer importante festividade convém não confundir a organização da festa com o evento em si. É que há quem tenha muito jeito para fazer festas e nenhuma aptidão para tratar dos eventos que realmente interessam.
Tudo isto vem a propósito da crise que inexoravelmente vai continuar. Crise agravada pelo aumento da pressão especulativa sobre a dívida de que a Irlanda está sendo a actual vítima, com a suspeita (quase certeza) de que outras se seguirão (Portugal, Espanha, Itália, por esta ordem), se não forem – e provavelmente não serão - rapidamente tomadas medidas que ponham por termo a esta escalada de efeitos múltiplos. Crise, de resto, agravada por um governo muito identificado com as políticas que apenas a podem potenciar.
De facto, a actual crise da dívida começando por ser um vasto movimento destinado a garantir a posição dos bancos à custa dos contribuintes, com ganhos especulativos potenciados pela situação económica dos países deficitários, tornou-se também, nos seus desenvolvimentos, numa excelente oportunidade para o capital e os seus ideólogos imporem, no plano social, um regresso às sociedades capitalistas anteriores à primeira Guerra Mundial. A crise está sendo ideologicamente aproveitada interna e externamente para eliminar o estado social nas suas áreas mais sensíveis: saúde, educação e segurança social.
Internamente tal objectivo é muito visível no modo como são conduzidas a política económico-financeira e a política externa portuguesa no quadro da União Europeia, tanto no plano estritamente político, como no económico-financeiro.
De facto, pelas manifestações vindas a público dos primeiros responsáveis por estas políticas percebe-se que a posição deles se identifica com as premissas que contextualizam a acção do “inimigo”. E como as batalhas que estão em curso jamais poderão ser ganhas se travada no campo do “inimigo”, isto é, com recurso à lógica por ele imposta, impõe-se uma alteração substancial das políticas que tem vindo a ser seguidas.
Discutir se isso se resolve com a simples substituição dos seus protagonistas, embora seja uma evidência, acaba por ser uma questão pouco importante, se tal substituição não implicar uma radical alteração das respectivas políticas e uma acção política muito perseverante conduzida simultaneamente em dois planos: uma, no
plano A, no quadro da União Europeia, com vista à conjugação de esforços e vontades tendentes a pôr em pratica um verdadeiro governo económico da União no qual participem democraticamente todos os Estados; outra, no
plano B, destinada a intensificar, com total independência e tanto quanto possível fora dos constrangimentos impostos por Bruxelas, a diversificação das relações de Portugal com outros países, nomeadamente aqueles que possam constituir uma âncora segura para relacionamentos mais estreitos no quadro de novas relações especiais.
No
plano A, Portugal, em vez de estupidamente se estar a esgotar em esforços inúteis – e às vezes até hipócritas – destinados a demonstrar que não é a Grécia, ou que a sua situação é muito diferente da da Irlanda, deve – como
aqui tem sido repetidamente aconselhado desde há mais de seis meses – assumir sem reservas a existência de um grave problema estrutural da zona euro – e da própria União Europeia – que afecta de maneira muito desigual os diversos países que a compõem, sem a solução do qual não há políticas que possam pôr termo aos desequilíbrios existentes.
Obviamente, que esta alteração qualitativa da política externa portuguesa, além de precisar de intérpretes à medida da sua exigência, precisa também de conjugar esforços junto de países com os mesmos ou idênticos problemas que, pela própria força das circunstâncias, tenham condições para perceber que somente afrontando os poderes “
político-fácticos” que governam a União, com vista a uma alteração das actuais políticas, se tornará possível encontrar um caminho para a reconstituição de uma União Europeia mais homogénea e equilibrada.
No plano psicológico, é da máxima importância partir para esta verdadeira campanha contra a “
germanização” da União Europeia sem sentimentos de culpa, nem complexos de inferioridade, não apenas por louváveis sentimentos de auto-estima e amor-próprio, mas também porque é preciso compreender que, consciente ou inconscientemente, há uma apreciável dose de
bluff na posição da Alemanha, secundada por esse político medíocre que é Sarkozy. De facto, a Alemanha tem feito imposições atrás de imposições, escudadas na força da sua economia e amplamente facilitadas pelo extraordinário superávide comercial de que beneficia no seu relacionamento com os parceiros europeus, sem que ninguém verdadeiramente se lhe tenha oposto – salvo pontualmente J. C. Trichet nos casos extremos de dogmatismo monetarista. Todavia, se o euro soçobrar – e isso acontecerá fatalmente se três ou quatro países o abandonarem (quem sabe, apenas um) – a União Europeia acabará também por se desagregar. E a Alemanha terá muito mais a perder do que qualquer outro país com a desagregação da Europa.
Portanto, uma política concertada de oposição aos poderes
político-fácticos dominantes, de que a Alemanha é o principal intérprete, não é uma utopia, nem um sonho sem sentido, é uma possibilidade bem real, desde que bem conduzida.
Uma vez ganha a Espanha – que está prestes a ser seriamente atacada – para este movimento, tudo se tornaria mais fácil, embora tenha de reconhecer-se que a Espanha por motivos históricos difíceis de erradicar tenha sempre muita dificuldade em reconhecer as suas fragilidades.
Portanto, para combater a crise, o primeiro combate a travar não é cá dentro, mas lá fora, em Bruxelas, digamos assim por conveniência de expressão e simbolismo político, embora toda a gente hoje saiba que Bruxelas, como centro de poder, já conta muito pouco ou quase nada. O poder, principalmente depois do tratado de Lisboa e das vicissitudes que acompanharam a sua negociação, deslocou-se quase completamente, ou mesmo completamente, para o eixo franco-alemão e seus fiéis acólitos, no qual a França, por ineptidão de Sarkozy, desempenha o papel de “idiota útil”, com eventual participação do Reino Unido, sempre que, pelo menos, seja necessário assegurar a sua abstenção.
Quando há muitos meses atrás, no dealbar da crise grega, aqui repetidamente alertávamos para a necessidade de concertar políticas entre os países mais afectados pelo défice e pela dívida tais avisos não tinham qualquer eco tal a força do individualismo reinante entre os Estados Membros da União Europeia e dos seus dirigentes. É certo que hoje já há muita gente a dizer aquilo que desde o princípio era óbvio, ou seja, que somente uma acção diplomática conjugada entre os vários países em crise poderá contribuir para alterar o status quo e fazer recuar a Alemanha. Infelizmente, os nossos governantes continuam a actuar politicamente dentro do terreno demarcado pelo “inimigo”, quer repetindo cá dentro o que ele impõe ou tenta impor de fora (como a constitucionalização dos limites do défice ou da dívida; ou as sanções automáticas ou não para os países incumpridores, etc.) ou ainda repetindo imbecilmente aquilo que já se tornou um refrão sem sentido: “
Nós não somos a Grécia”; ou, mais recentemente, “
Nós não somos a Irlanda”; a Espanha a dizer: “
Nós não somos a Irlanda, nem a Grécia” e amanhã, certamente, a acrescentar: “
Nós também não somos Portugal” e outras afirmações semelhantes.
A Alemanha e outros (que com ela estreita e subservientemente colaboram) terão de perceber – e só uma diplomacia à beira do abismo os fará perceber – que os défices e as dívidas dos países endividados não resultam dos “vícios” de quem se endivida, ou da falta de trabalho ou de outras pretensas razões morais com que tentam escudar a posição que defendem. Resultam de “vícios” estruturais ligados à constituição da zona euro que, além de não dispor de verdadeiros de verdadeiros instrumentos destinados a esbater as diferenças de competitividade entre os respectivos parceiros, permite que políticas altamente restritivas de contracção da procura interna dos países mais competitivos se reflictam catastroficamente na economia dos países mais frágeis. Por outro lado, é impensável manter a concepção que presidiu à constituição do BCE, ou, no mínimo manter inalteradas as suas políticas, moldada na concepção do banco central da potência economicamente dominante (Bundesbank), só a ela servindo, com total desprezo pela situação económica, nomeadamente do crescimento e do emprego, dos demais países.
As consequências – que estão à vista de todos – da construção da União Europeia e do modo como está estruturada União Económica e Monetária constituem uma inevitabilidade que nenhum governo, no actual quadro normativo vigente, poderá evitar.
O desenvolvimento do
plano B fica para outra ocasião…