JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS ENTREVISTA GÜNTER GRASS

ALGUMAS VERDADES SEMPRE SILENCIADAS

José Rodrigo dos Santos que a fortuna encontrou de serviço na RTP na noite em que se iniciou a operação “Tempestade no Deserto” não mais deixou de brilhar depois dessa data. Vinte anos volvidos, ele é a justo título considerado um dos profissionais mais competentes dos nossos audiovisuais. À sua actividade de jornalista alia uma carreira universitária com vários trabalhos publicados e vários títulos académicos entretanto alcançados, além de uma actividade de escritor com assinalável êxito de vendas dentro e fora do país.
Para além de apresentador do telejornal das oito, tenho-o encontrado de madrugada, porventura em repetição, na RTP N, num interessante programa chamado “Conversas de escritores”.
Ontem, a conversa foi com Günter Grass. Como não podia deixar de ser ela andou à volta da obra do grande escritor alemão e, falando-se desta, tem necessariamente de falar-se do nacional-socialismo, da II Guerra Mundial e também da revelação feita por Grass, há quatro anos, no livro autobiográfico, “Descascando a Cebola”, sobre a sua participação nas SS.
Grass nasceu em 1927. Tinha seis anos quando Hitler chegou ao poder e doze quando a guerra começou. Quando se alistou nas SS contava dezassete anos. Depois de muito ter escrito sobre a Guerra e a Alemanha nazi, Grass deu a conhecer, com grande escândalo público, a sua participação na tropa de elite do regime nazi, estreitamente ligada ao que de mais condenável se passou durante o período hitleriano, nomeadamente o extermínio do povo judaico.
As explicações de Günter Grass para factos da sua vida passada podem não ser as mais convincentes, porventura por não serem as mais verdadeiras, mas não creio que essa omissão e as explicações que acompanharam a sua revelação justifiquem críticas tão contundentes como as que então se ouviram, principalmente por terem abstraído quase por completo da contextualização da conduta e das circunstâncias que a rodearam, avaliando com parâmetros de hoje circunstâncias e comportamentos ocorridos em tempos muito diferentes.
Quanto ao mais, Grass respondeu com serenidade e saber às muitas perguntas que JRS lhe foi colocando ao longo da entrevista, sempre conduzida em alemão, sem simultaneamente deixar de questionar o seu interlocutor sobre factos igualmente graves da história de outros povos, sistematicamente omitidos ou mesmo enaltecidos.
Grass fala dos crimes de guerra cometidos pelos Aliados, da longa e triste história do colonialismo europeu, porventura na raiz de muitos dos problemas com que o mundo hoje se defronta, das atrocidades cometidas pelos exércitos napoleónicos desde a Península Ibérica até Moscovo, enfim, de todo este imenso rosário de crimes que o mundo ocidental omite ou, pior ainda, glorifica.
Não se trata de atenuar a gravidade dos crimes nazis, muito menos menosprezar a “originalidade” de alguns deles ou sequer de os comparar com os praticados noutras latitudes. O que está em causa é a pretensa superioridade moral de quem se arvora em juiz implacável de comportamentos alheios e hipocritamente silencia os seus próprios crimes ou os glorifica como feitos dignos de figurar nos mais brilhantes anais da história pátria.
E esta é uma questão mais grave do que se supõe, principalmente à medida que vão desaparecendo os que participaram ou viveram a guerra e com eles se esbatendo a pouco e pouco a transmissão viva de uma memória que cada vez mais só pode ser encontrada nos testemunhos impessoais com que normalmente se faz a história. E então, passado esse tempo, é natural que os alemães se perguntem por que têm eles que suportar colectivamente uma culpa e uma expiação que a nenhum outro povo é exigida…