UMA BARBARIDADE JURÍDICA
Eu bem não queria abordar aqui assuntos ligados futebol. Mas este assunto – a decisão, ontem tornada pública, do Conselho de Justiça da FPF – não é apenas um assunto de futebol, é um assunto jurídico estreitamente relacionado com a crise da Justiça e com a crise mais geral da sociedade portuguesa.
A primeira reacção que qualquer jurista minimamente informado tem relativamente a uma decisão como a que o Conselho de Justiça proferiu é de estupefacção. Como é possível que um órgão jurisdicional habitado por juristas profira uma decisão daquela natureza?
A questão é muito simples e toda a gente a perceberá se for bem explicada.
Os jogadores do Porto, mais concretamente, dois jogadores do Porto, agrediram no túnel do Estádio da Luz agentes de segurança (denominados stewards) de uma empresa privada encarregados, por regulamento desportivo (e seguramente também por norma estadual), de garantir a segurança no recinto desportivo.
Nesta prática neoliberal que nos envolve (e nos consome) permite-se que estas funções antes exclusivamente desempenhadas por agentes de autoridade pública sejam agora também desempenhadas por empresas de segurança privadas. Evidentemente, que eu sou contra, mas quem manda não é.
A Liga de Futebol Profissional tem um regulamento disciplinar aprovado pelos clubes. Nem todos os clubes votaram a favor do regulamento, alguns abstiveram-se. O FCP votou a favor. Isto não tem qualquer relevância jurídica, mas ajuda a perceber o contexto.
Nesse regulamento, a Liga começa por fazer uma definição dos conceitos que mais frequentemente vai utilizar ao longo do seu extenso articulado. Define comissão disciplinar, clubes, dirigentes e agentes.
Na definição de agentes engloba:
“Os dirigentes e funcionários dos clubes, jogadores, treinadores, auxiliares-técnicos, árbitros e árbitros assistentes, observadores dos árbitros e delegados da Liga, médicos, massagistas e, em geral, todos os sujeitos que participem nas competições profissionais organizadas pela Liga ou que desenvolvam actividade, desempenhem funções ou exerçam cargos no âmbito dessas competições”.
Depois, lá mais para a frente, tipifica as faltas de todos os intervenientes desportivos e as sanções que lhes correspondem.
No que respeita aos jogadores, considera a existência de faltas muito graves, graves e leves.
As infracções disciplinares muito graves consistem em actos de corrupção (descritos no regulamento) e em agressões contra: a) a equipa de arbitragem; b) pessoas singulares ou colectivas, ou respectivos órgãos, integrados na FPF, individualmente ou por representação orgânica, por virtude do exercício das suas funções; c) delegados e outros intervenientes no jogo com direito de acesso ou permanência no recinto desportivo.
Há ainda outros comportamentos passíveis de ser qualificados como infracções muito graves, mas, como não pressupõem actos de agressão, não tem para o efeito em causa qualquer relevância.
As infracções disciplinares graves consistem em agressões contra: a) delegados ou outros intervenientes no jogo com direito de acesso ou permanência no recinto desportivo; b) contra outros jogadores; c) contra o público.
Depois há ainda um conjunto de infracções englobadas nesta categoria de faltas, como incitamento à violência, uso de expressões ou gestos ameaçadores, etc., que, por não estarem directamente relacionadas com agressões, também não têm para o efeito em vista qualquer relevância.
Das várias categorias de pessoas acima referidas susceptíveis de serem agredidas, imediatamente se percebe que há duas dessas categorias que o regulamento não define: o público e os jogadores. Tenha sido por incúria normativa de quem aprovou o regulamento, tenha sido por se tratar de conceitos de óbvia compreensão, a verdade é que o regulamento os não define.
A Comissão Disciplinar da Liga, baseada no conceito de “agente” definido no artigo 1.º do regulamento, considerou os ditos stewards intervenientes no jogo com direito de acesso ou permanência no recinto desportivo por entender que se tratava de “sujeitos que desenvolvem uma actividade” ou “desempenham funções no âmbito da competição” em questão e aplicou-lhes a pena mínima para as agressões provadas.
O que fez o acórdão do Conselho de Justiça? O acórdão do Conselho de Justiça, fazendo tábua rasa da definição de agente consagrada no artigo 1.º do regulamento, considerou que os stewards não eram “intervenientes no jogo com direito de acesso ou permanência no recinto desportivo” – segundo o CJ, apenas integram este conceito os treinadores, os médicos, os massagistas e as restantes pessoas ligadas às equipas (?), os directores de campo, directores de segurança e o delegado da Liga” – e, assim, diz o CJ, não lhe restou outra alternativa que fosse equipará-los ao público “igualmente com direito de acesso ou permanência no recinto desportivo”.
Isto é uma barbaridade jurídica apenas ao alcance de algumas mentes doentias! É óbvio que os stewards, os polícias, os bombeiros são, no contexto da economia jurídica do regulamento, “agentes” que desenvolvem uma actividade ou desempenham funções no âmbito das competições desportivas e por isso mesmo “intervenientes no jogo”, tanto como o director de segurança ou o director de campo, ou as tais pessoas ligadas às equipas, com direito de acesso e permanência no recinto desportivo. O que eles não são em nenhuma circunstância é “público”, porque eles não estão no recinto desportivo como espectadores de uma competição desportiva, mas no desempenho de uma função de segurança ligada ao jogo. Aliás, como pode o “público” aceder aos locais onde por direito próprio estão os stewards, os polícias e os bombeiros? Se são público como se compreende que não sejam severamente punidos os clubes que os admitem nas zonas reservados onde o público não pode estar?
Insisto, isto é uma barbaridade apenas possível numa sociedade que já atingiu um apreciável nível de desagregação moral como infelizmente acontece com a sociedade portuguesa.
Se o Conselho de Justiça da FPF entende que os stewards não são “agentes” "intervenientes no jogo”, apesar do disposto no artigo 1.º do regulamento, a única decisão que pode tomar é não punir os jogadores do Porto por não estar prevista no regulamento nenhum tipo de falta disciplinar resultante de agressão praticada sobre aquela categoria de pessoas. Não há aqui outra forma de resolver o assunto juridicamente! Mas o CJ não teve coragem para proferir tal decisão. Actou com covardia intelectual! Porque sabe perfeitamente que os stewards não são público e que as agressões não podiam ficar impunes. E então procurou pela via da decisão que tomou põr em xeque a Comissão Disciplinar da Liga (apesar do que hipocritamente diz dela) sem se "suicidar"a si próprio. E como no futebol infelizmente vale tudo, o CJ conta com isso para se desresponsabilizar.
Evidentemente que este acórdão é inconstitucional e seria obviamente anulado se alguém com legitimidade para recorrer quisesse arrostar com as consequências desportivas de uma tal conduta.
Finalmente, da decisão da Comissão Disciplinar da Liga não resultam quaisquer consequências desportivas ou civis. Qualquer hipotético pedido de indemnização baseado na decisão contrária do CJ não tem qualquer viabilidade jurídica.