sexta-feira, 5 de março de 2010

"UMA SENTENÇA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO"



RESPOSTA A UM COMENTÁRIO


O comentário de HY ao post “Uma sentença do Tribunal Constitucional alemão” merece uma resposta autónoma.
De há 15 anos para cá, três acórdãos do TC alemão sobre assuntos comunitários merecem uma leitura política pela importância de que se revestem.
O primeiro é o que se pronuncia sobre a criação da moeda única - União monetária, aquando da ratificação do Tratado de Maastricht; o segundo sobre o Tratado de Lisboa e agora este, comentado no post acima referido, sobre a directiva de armazenamento de dados.
Numa primeira fase, antes de Maastricht, o TC alemão nunca deixou de afirmar a supremacia do Lei Fundamental alemã sobre o direito comunitário e fazia-o de acordo com a conhecida fórmula de que tal jurisprudência seria de manter enquanto nos tratados constitutivos não houvesse garantias seguras de respeito pelos direitos fundamentais.
Com Maastricht deu-se um passo, mas o TC alemão não desarmou: a exigência que antes levantava relativamente aos direitos fundamentais passou a formulá-la relativamente à moeda única (só estão transferidas as competências soberanas que constam do Tratado nos termos nele previstos …e dos “pactos” posteriormente acordados). Por outras palavras, a criação da moeda única não era independente do Pacto de Estabilidade e Crescimento (que, como se sabe, não é nenhum pacto), logo seria controlado tudo o que sobre esta matéria viesse de Bruxelas, para impedir qualquer tentativa de usurpação de poderes soberanos…muito ao gosto da política de pequenos passos das instituições comunitárias.
As consequências deste acórdão ficaram em “banho-maria” durante bastante tempo, por várias razões: primeiro porque não era politicamente o tempo certo para “mexer” muito naquelas questões (é preciso não esquecer que o “euro” é de certa forma o tributo que os alemães tiveram de pagar pela reunificação) e depois porque os social-democratas no poder impediram que Bruxelas levantasse contra a Alemanha (e por arrastamento contra a França) qualquer tipo de procedimento por défice excessivo, tendo com este comportamento retirado força a qualquer veleidade interna de controlo mais apertado do regime da moeda única.
Mas o assunto não ficou esquecido e a prova de que não ficou esquecido é que o ano passado foram aprovadas duas emendas constitucionais na Alemanha, para as quais já aqui chamei várias vezes a atenção, mas sobre as cujas nunca ouvi nenhum comentário político oficial, oficioso ou particular, que impõe à Federação a paridade das contas públicas com um défice máximo de 0,65% e aos Länders o défice zero! Esta alteração constitucional, embora não entre imediatamente em vigor, constituiu, como se verá, um marco sobre entendimento que a Alemanha tem do euro!
No que respeita ao acórdão sobre o Tratado de Lisboa, o TC para permitir a sua ratificação exigiu a prévia promulgação de leis que continuassem a garantir a soberania do povo alemão no quadro do processo normativo comunitário. Ver sobre o assunto post de 7 de Agosto de 2009.
Neste último acórdão (armazenamento de dados), o TC reiniciou uma prática que tinha aparentemente abandonado: controlar internamente o respeito pelos direitos fundamentais nos diplomas aprovados por Bruxelas, embora tudo tenha sido feito sob a capa de controlo de um diploma normativo interno: o diploma por via do qual se fez a transposição da directiva. Mas isto não passa de um subterfúgio, porque o que na realidade está em causa é a constitucionalidade da directiva. Se Bruxelas quer que a directiva se aplique na Alemanha (e vamos ver o que sucede noutros Estados), tal como foi aprovada, vai ter que a rever. É disso que se trata e não de outra coisa.
Não adianta estar com subterfúgios jurídicos que apenas servem para encobrir a realidade: alguém tem dúvidas de que, se em vez de uma directiva (que, por acaso, até é de aplicação directa) estivesse em causa um regulamento, a decisão final (obviamente, com argumentação formal diferente) do TC seria rigorosamente a mesma?
De facto, o que está em questão, tanto na defesa dos direitos liberdades e garantias fundamentais, como no controlo do uso rigoroso dos poderes soberanos transferidos, é a incapacidade (ou a inexistência de vontade política) de o sistema internamente pôr cobro a abusos e violações.
No actual estádio de “construção” da União Europeia – que passa por uma “desconstrução” selectiva - somente os tribunais dos Estados-Membros estão em condições de desempenhar esta tarefa…e quanto mais eles ameaçarem que a vão desempenhar, menos violações haverá.
Há aqui duas forças de sentido diferente que se chocam, sem que por enquanto do choque resulte muita poeira. Por um lado, a tendência natural da organização, dos seus órgãos e agentes para aprofundar a integração; do outro lado, a vontade cada vez mais manifesta de as grandes potências acentuarem a vertente intergovernamental do conjunto. A questão não é jurídica, é política: o direito não tem autonomia ou tem uma autonomia muito, muito, relativa (os italianos de esquerda é que supuseram que poderiam fazer um uso alternativo do direito…e isso deu no que se viu e vê).
Para terminar, independentemente de concordar ou não com as decisões, o que me encanta no TC alemão é a inteligente leitura política que ele, em cada momento, de acordo com a "vontade popular dominante", sabe fazer das situações que lhe são apresentadas para obtenção de uma resposta jurídica.

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