terça-feira, 2 de março de 2010

UMA DECISÃO INCOMPREENSÍVEL- III


SOBRE A PUBLICIDADE DOS DESPACHOS DO PGR QUE ENVOLVEM O PM - REPOSTA A UM COMENTÁRIO


(Para compreender este post deve ser lido o anterior)

A primeira grande dúvida que interessa esclarecer é se existe ou não (ou se existiu) um processo de inquérito que tenha (ou tenha tido) por objecto a averiguação de actos praticados pelo PM susceptíveis de constituírem indícios da prática do crime de “Atentado ao Estado de direito”.
A minha resposta, face ao que se conhece, é a de que tal processo nunca existiu. O processo de inquérito que existe diz respeito à investigação de outros crimes, na averiguação dos quais se encontrou fortuitamente matéria susceptível de indiciar a prática de um crime praticado por pessoa que, inclusive, nada tinha a ver com os crimes que estavam sendo investigados.
Se a colheita desta indiciação respeitasse a uma pessoa comum e o modo como os indícios foram obtidos não estivesse sujeito a um regime especial, estou certo de que não haveria qualquer espécie de dúvida sobre como proceder.
Tais indícios teriam sido comunicados ao magistrado do Ministério Público competente para presidir à direcção do inquérito que, depois da sua análise, abriria ou não um inquérito, consoante o juízo sobre os factos tidos por indiciários. Em princípio, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de um inquérito. O arquivamento, se vier a ocorrer, acontecerá em consequência do que se apurou no inquérito (melhor: do que se não apurou) e não antes. E esse arquivamento pode sempre ser revisto se novos indícios atestarem com força probatória suficiente num sentido diferente.
Para os não juristas: o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes, bem como a sua responsabilidade, e a descoberta e a recolha de provas com vista à acusação ou não. A entidade competente para realizar o inquérito é o Ministério Público, cabendo ao juiz de instrução as intervenções destinadas a assegurar o cumprimento os direitos, liberdades e garantias, nos termos previstos na lei processual penal.
Então, perguntar-se-á: por que não se abriu imediatamente um inquérito com base no auto de notícia que chegou ao Ministério Público e por que se passaram as coisas de modo tão radicalmente diferente neste caso? Por que razão os alegados indícios da prática de crime de "atentado ao Estado de direito" alegadamente resultantes de actos praticados pelo PM não deram de imediato lugar à abertura de um inquérito? Aparentemente, por três razões muito simples.
Em primeiro lugar, porque o PM, por crimes praticados no exercício da função, está sujeito a um regime especial.
Em segundo lugar, porque aqueles indícios foram acidentalmente colhidos em intercepções de conversações ou comunicações que tinham como alvo outras pessoas. E a prova obtida por este meio, para ser válida, tem de se conformar com o regime especial previsto na lei .
E, em terceiro lugar, porque a intercepção, gravação e transcrição de conversações ou comunicações em que intervenha o PM estão sujeitas a um regime ainda mais especial do que estabelecido na lei para o comum das pessoas.
Logo, é normal, perante este condicionalismo, que o auto de notícia (é assim que se chama?) remetido ao PGR carecesse de uma avaliação prévia determinante da decisão da abertura ou não de um inquérito.
Essa avaliação deveria de imediato ter ponderado a determinação da entidade competente para dirigir o inquérito que tivesse como suspeito (futuro arguido) a pessoa em causa, bem como a determinação da entidade que poderia ter que desempenhar as funções de juiz de instrução.
Deveria depois decidir, em geral, sobre a validade de indícios colhidos fortuitamente em “escutas” que tenham como alvo outras pessoas, e, sendo positiva a resposta, se o tipo legal de crime indiciado pelas escutas é compatível com aquele tipo de prova.
Esta avaliação prévia constitui aquilo a que um jurista medianamente informado chamaria a “pré-compreensão” do caso decidendo (do mesmo modo que cada época histórica só está verdadeiramente habilitada a resolver as questões que saiba equacionar devidamente, também o jurista só será capaz de resolver correctamente as questões que tenha equacionado adequadamente, “vendo” por antecipação, no emaranhado das normas jurídicas existentes, o modo como as vai tratar).
Porém, do ponto de vista prático, a primeira questão que o PGR deveria ter solucionado era a seguinte: podem constituir indícios da prática de um crime actos do PM cuja prova resulte da intercepção fortuita de comunicações ou conversações que tenham como alvo outras pessoas? Sendo da competência do Presidente do STJ autorizar a intercepção de comunicações ou conversações em que intervenha o PM, admito (embora não concorde) que o PGR, antes da prática de qualquer outro acto, tivesse colocado esta singela questão àquela entidade.
E, em princípio, o PSTJ só tinha duas respostas: ou as considerava válidas e explicava porquê; ou não as considerava válidas e igualmente fundamentava a decisão. Tanto num caso como noutro a decisão seria puramente formal. A sua resposta nada teria a ver com o conteúdo das conversas ou comunicações interceptadas, mas com a modo como essas intercepções foram obtidas.
Se a resposta do PSTJ fosse negativa, obviamente não haveria qualquer inquérito, pelo menos com base naqueles indícios, e não parece que dela pudesse haver qualquer recurso. Mas, mesmo que a decisão fosse recorrível, o prazo para o interpor já há muito decorreu. Logo, insisto, não há nenhuma razão que juridicamente possa fundamentar o secretismo deste despacho!
O assunto “morreria” ali porque juridicamente deixaria de haver indícios. Mas também deixaria de os haver materialmente, em virtude de o PSTJ ter ordenado a destruição das escutas.
Perante este quadro não faz qualquer sentido afirmar que o posterior despacho do PGR é um simples despacho de arquivamento proferido num processo de inquérito, susceptível de ser revisto, face a outros desenvolvimentos do inquérito. Que inquérito, se não existe inquérito nenhum? E reabrir o quê? Se o inquérito nunca chegou a ser aberto e a matéria sobre que recaiu o despacho já foi eliminada do mundo jurídico (nulidade) e deixou inclusive de ter existência física (destruição)?
Como se sabe (ou supõe saber-se pelo que os intervenientes vão dizendo em entrevistas e comunicados), o PGR começou por afirmar que não havia nas comunicações interceptadas indícios de crime, tendo-as enviado posteriormente ao PSTJ para este decidir se eram válidas. Seguidamente a esta decisão proferiu novo despacho (ou novos despachos) aparentemente justificativos da não abertura de qualquer inquérito.
Dificilmente se compreende esta argumentação. Eu, pelo menos, não compreendo. O PGR não tem que formular nenhum juízo valorativo sobre os indícios antes de saber se eles são válidos. Se tem dúvidas sobre a sua validade, primeiro resolve esta questão e depois actua em função da resposta.
A questão complica-se ainda um pouco mais, porque, ao que parece, segundo entrevista concedida à RTP pelo Presidente do STJ, o juízo deste sobre a validade das escutas não foi meramente formal: atendeu ao seu conteúdo e ao prazo dentro do qual elas lhe foram submetidas. Ou seja, assumiu-se como juiz de instrução (que eu entendo, nestes casos, ele não ser). E foi da ponderação destes factores que tomou a decisão de as considerar inválidas, ordenando a sua destruição. Logo, também nesta configuração dos factos não haveria matéria para abrir qualquer inquérito, tendo o posterior despacho do PGR por objectivo encerrar definitivamente o assunto, pelas razões acima explicitadas. Então, que segredo, que inquérito (inexistente) pode justificar o secretismo do despacho? E como pode, também neste caso, o processo ser reaberto se ele nunca foi aberto? Na verdade, tanto quanto se sabe, tudo andou à volta da resolução de uma questão prévia: a validade ou a invalidade das escutas.
É esta confusão de procedimentos e de planos que as pessoas normais não compreendem e menos ainda compreendem quando lhes dizem que os despachos não podem ser conhecidos.
A função dos juristas é esclarecer as coisas e não complicá-las, explicando-as de modo a que toda a gente as possa perceber. Mais: as soluções que os juristas têm por obrigação alcançar são as que vão ao encontro dos grandes princípios estruturantes do Estado democrático e que por via delas os confirmam. E não o contrário: procurar soluções que vão de encontro aos grandes princípios democráticos e que por via delas os infirmam. Essa é a função anti-democrática do direito. É perversa a função de um direito que apenas procura falsas excepções para se subtrair ao império da democracia. A outra é a função de um jurista democrático, de um jurista que sabe que a jurisprudência e acção dos magistrados em geral só verdadeiramente se legitimam pela coerência e pela transparência das suas decisões.
Um jurista democrático nunca deve trilhar outro caminho.
A minha convicção pessoal – e até por isso não descansarei de lutar pela publicidade dos despachos – é a de que (independentemente de outras razões) houve asneiras em série no tratamento deste caso, sendo porventura essa também uma das razões pela qual os despachos se não publicam! Não vou dizer que são asneiras de “cabo de esquadra”…porque um GNR, com os conhecimentos que tem, teria actuado certamente com mais acerto.

3 comentários:

VM disse...

Estes 2 posts são exemplo de como, sem exibir o génio com que esgrime o "florete dos conceitos de direito", Correia Pinto sempre cumpriu o dever que os juristas têm de "esclarecer as coisas e não complicá-las, explicando-as de modo a que toda a gente as possa perceber" ...
...tendo sempre presente que "as soluções que os juristas têm por obrigação alcançar são as que vão ao encontro dos grandes princípios estruturantes do Estado democrático e que por via delas os confirmam. E não o contrário: procurar soluções que vão de encontro aos grandes princípios democráticos e que por via delas os infirmam. Essa é a função anti-democrática do direito", que ele sempre visceralmente recusou...
... o que - apesar de ser, de longe, o mais brilhante jovem docente da Faculdade de Direito de Coimbra - lhe valeu a expulsão da mesma pelo fascismo.
VM

jvcosta disse...

Este post lembra-me uma época da minha vida em que aprendi muito, a conhecer gente "estranha" que me ensinou coisas que compensaram dois anos de disrupção da minha vida.
Médico naval miliciano na Pedra do Feitiço, naquele pedaço de mundo espantoso que é o rio Zaire, entretinha-me muito em conversas com o Alexandre, soba do vizinho povo Kissakala. Conversas especialmente notáveis quando eu o ia amarufando (perguntem a um angolano o que é o marufo). Um dia, comentei, "Alexandre, és mesmo um filósofo". Para minha surpresa, riu-se despregadamente, tendo eu de lhe perguntar "mas sabes o que quer dizer filósofo?". "Claro, nosso médico, é quando o padre fala prá gente e a gente entende".
O que é que isto tem a ver com este post? :-)

Anónimo disse...

Gostei!Estava à espera que o JOS viesse a jogo, mas ainda não veio.
Com a admiração
J.