PODE O BCE ACTUAR DE
OUTRO MODO?
Apesar de o euro ter sido uma invenção dos franceses, a tal
invenção por via da qual pretendiam pôr termo à hegemonia do marco no Mercado Comum
Europeu, acabaram por ser os alemães a moldar juridicamente a natureza do novo
banco central – o Banco Central Europeu – tentando fazer dele uma réplica
perfeita do Bundesbank.
A argumentação política deles é conhecida: os alemães
continuam muito traumatizados pela memória da hiperinflação de 1923 e do que
depois da Segunda Guerra lhes custou “construir” uma moeda forte e segura. Por isso
só aceitavam desfazer-se da que tinham se fosse para a trocar por uma mais ou
menos igual – isto é, um banco central independente que tivesse como objectivo
manter a estabilidade dos preços. Juridicamente, o acórdão do Tribunal Constitucional
que apreciou a constitucionalidade do Tratado de Maastricht incidiu muito sobre
a questão da moeda. A soberania cedida pela Alemanha num assunto tão relevante como
a emissão de moeda pressupõe o cumprimento por parte das instituições
comunitárias dos estritos termos em que ela é cedida, por outras palavras, o
estatuto do BCE e o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Por força daquele acórdão, a Alemanha reservava-se o direito de
recusar a aplicação de normas comunitárias que não respeitassem aqueles
princípios, o que não deixa de ser curioso depois da evolução que já tinha
havido em matéria de controlo do direito comunitário pelo direito interno. E
mais uma vez lá vinha o argumento do confisco ou da expropriação sem lei prévia
que defina as condições em que ela terá lugar como é exigido pela Lei
Fundamental da Alemanha. Segundo o Tribunal, o desrespeito pelos limites estabelecidos no PEC e o
não cumprimento do Estatuto do BCE levaria à inflação, que corresponde a um
confisco ou a uma expropriação sem indemnização, qualquer um deles proibidos
pela constituição alemã.
Estes raciocínios dos juristas são de facto espantosos. Sem
entrar em linha de conta com o facto de a Alemanha ter sido, juntamente com a
França, a primeira a violar o PEC, sem que dessa violação tivessem decorrido
quaisquer consequências, importa dizer que o estatuto do BCE não lhe impõe
apenas a obrigação de manter a estabilidade dos preços. Diz também que que o
BCE deve, sem prejuízo daquele objectivo, apoiar as políticas económicas gerais
da Comunidade.
De facto, os franceses quando se aperceberam que o euro
estava a ser moldado sobre o marco tentaram dar alguma concretização prática à
outra ideia de banco central, oposta à defendida pela Alemanha, que aponta para
um controlo político do banco emissor, ou seja, um controlo político sobre a emissão
de moeda. Não conseguiram, mas conseguiram introduzir como princípio
subordinado o apoio às políticas económicas gerais da Comunidade. Portanto, se
não houver qualquer risco de inflação, como manifestamente não há numa situação
como a presente, que até pode invocar como lugar paralelo a dos Estados Unidos
onde a Reserva Federal tem “despejado” biliões de dólares sem qualquer surto
inflacionista, não se vê por que razão deva o BCE continuar exclusivamente
focado num perigo que não existe – a inflação – e desprezar um perigo que
realmente existe – a falta de crescimento e o desemprego. Ainda está na memória
de todos a “barbaridade” cometida por Jean-Claude Trichet, curiosamente um francês,
de subir a taxa de juro no auge da crise financeira americana!
Na verdade, o apoio do BCE às políticas económicas gerais da
Comunidade não pode ser entendido como um poder discricionário do Conselho de
Governadores, mas como uma obrigação resultante do Tratado.
Por outro lado, é verdade que o estatuto do BCE lhe proíbe a
aquisição directa de títulos da dívida pública emitidos pelos Estados. Mas não
há nada no dito estatuto que o proíba de comprar esses títulos no mercado
secundário. É uma regra elementar da interpretação jurídica não fazer
interpretações extensivas das proibições. Aliás, não há semelhança entre as duas
operações: a aquisição no mercado secundário protege a dita independência do
banco diferentemente do que poderia acontecer numa compra directa, decorrente de uma
relação bilateral entre o Estado emissor e o banco central; além de que a aquisição
no mercado secundário, dentro da lógica do capitalismo e da tal independência
do banco central, objectiva muito mais a operação e torna-a mais transparente e
publicitada do que uma compra directa. Portanto, são operações diferentes.
A independência do Banco Central tem de servir a estabilidade
dos preços mas estando assegurada esta tem apoiar as políticas gerais da
Comunidade e não as deste ou daquele país. Pouco interessa para este efeito a
interpretação que os alemães fazem do estatuto do banco, o banco central é que
tem de fazer a interpretação dos seus poderes no quadro do tratado e do
interesse geral dos seus membros, ou seja, da Comunidade como um todo. Não
seguir uma determinada política porque ela não convém economicamente à Alemanha
é desvirtuar completamente a sua função, instrumentalizando-a ao serviço de um
país. Aliás, os tratados constitutivos da actual União Europeia dizem expressamente
que esta União deve fomentar a coesão económica, social e territorial bem como
a solidariedade entre os seus membros. Isto para não falar no papel que o BCE
deve necessariamente desempenhar com vista ao aperfeiçoamento de um modelo de
união monetária que nasceu torto, ou se se preferir, imperfeito.
Em conclusão: não faltam argumentos jurídicos para
fundamentar uma outra actuação do BCE. O que falta é força e vontade política
para a impor.
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