quinta-feira, 4 de março de 2010

UMA SENTENÇA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO



E LÁ VÃO ELES TER QUE MUDAR OS MANUAIS…

O Tribunal Constitucional alemão acaba de proferir uma sentença a todos os títulos notável: declarou nulas as disposições de uma lei do Parlamento alemão, aprovada em cumprimento de uma directiva comunitária, que obrigava as empresas de telecomunicações a guardar durante seis meses todos os contactos telefónicos, mensagens electrónicas e ligações à internet.
Mais de trinta e cinco mil pessoas juntaram-se na Alemanha para interpor um recurso contra a dita lei – o maior de toda a história do Tribunal Constitucional alemão. Fundamento: a lei tal como está redigida permite uma intromissão irrestrita na vida privada das pessoas, criando nos cidadãos um ambiente de ameaça susceptível de causar dano aos seus direitos fundamentais.
O Tribunal deixou claro que a directiva tal como foi aprovada por Bruxelas não poderá ser transposta para a ordem jurídica alemã. O Tribunal não põe completamente de parte a possibilidade de na Alemanha poder haver um armazenamento de dados electrónicos, mas, para que tal aconteça, a lei que regular esta matéria terá de obedecer às exigências da Lei Fundamental, decorrentes do regime dos direitos fundamentais, que impõem condições estritas .
Assim, os dados armazenados terão de estar sujeito a supervisão e o utente tem estar claramente informado dos dados que se registam. Além disso, as autoridades não podem ter acesso a toda a informação guardada. Por fim, o Tribunal ordenou a eliminação de todos os dados guardados…E obviamente as empresas de telecomunicações preparam-se para pedir ao governo uma indemnização por todos os investimentos que tiveram de fazer para dar cumprimento à lei agora anulada.
Esta decisão do TC alemão é, como se disse, notável a vários títulos.
Em primeiro lugar, repõe de forma muito clara a doutrina da fiscalização nacional da constitucionalidade de normas aprovadas em obediência a directivas comunitárias estritas, como era o caso.
Em segundo lugar, o TC alemão não prescinde da defesa dos direitos fundamentais, considerando nulas as normas que os atingem ou ameacem qualquer que seja a sua fonte, o que, obviamente, levanta a questão da fiscalização nacional da constitucionalidade dos regulamentos comunitários.
Em terceiro lugar, esta decisão põe a nu o défice democrático do processo normativo comunitário, nomeadamente a incapacidade de, dentro do sistema, assegurar de forma clara o cumprimento dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
Depois de toda a doutrinação em sentido contrário que a maior parte dos nossos juristas havia elaborado sobre estas matérias e até das “metamorfoses” por que alguns passaram, sem esquecer o tal “salto qualitativo” que para muitos deles representou o Tratado de Lisboa em matéria de direitos, liberdades e garantias, esta sentença do TC alemão constitui um profundo revés que, como de costume, vai obrigar a rever alguns manuais…
Para os não juristas: diferença entre regulamento e directiva comunitária.
O regulamento tem carácter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e aplica-se directamente no território dos Estados-Membros; a directiva, pelo contrário, apenas obriga os Estados-Membros a alcançar os resultados nelas prescritos. Acontece, porém, que é cada vez maior o número de directivas que vão muito para além da fixação de resultados e estabelecem elas próprias regimes normativos pormenorizados, defendendo uma parte dos juristas que, nestes casos, elas são imediatamente aplicáveis, independentemente de aprovação do acto normativo que as transponha para o direito interno.

3 comentários:

Anónimo disse...

De um leigo:

Aprecio, embora me escapem, naturalmente aspectos importantes, a qualidade que os "posts" deixam transparecer. No entanto, sobre o fundo desta questão, penso, permita-me, que a barreira jurídico-constitucional será inevitavelmente removida se as garantias em causa forem obstáculo ao regular funcionamento das sociedades tal qual estão organizadas. O que eu quero dizer é, por exemplo, isto: imaginemos que se verifica um recrudescimento sério dos actos, que com estas medidas se pretenderiam evitar, que ponham em causa sectores básicos, ainda como exemplo o transporte aéreo ou e marítimo, mas a sério (ou à séria como dizem os nossos comentadores de TV).Não serão precisos muitos nem muito mortíferos, basta que se instale uma desconfiança profunda e, em simultâneo, a convicção de que se poderiam evitar ou reduzir drasticamente se fossem implementadas essas medidas. Desconfiança que levasse, por exemplo, os EUA a tomar e "exigir" medidas desta natureza aos "sócios", como poderia manter-se a tal barreira de garantias individuais?

JMCPinto disse...

Resposta ao comentário:
Trata-se de uma questão de equilíbrio. O regime que vigorava, depois dos atentados de Londres e de Madrid, muito por força também da "pressão" americana, era, como se diz no texto, irrestrito. E, nestas coisas, a tentação para o abuso é sempre muito grande. Para garantir a segurança das pessoas instalava-se a insegurança nas pessoas. A sua privacidade podia ser violada com toda a facilidade e isso, como disse o TC, criava nelas um justo receio de ameaça aos seus direitos.
O TC não elimina a hipótese de haver armazenamento de dados. Mas com garantias.
Depois é preciso dizer que a sentença resolve uma questão político-filosófica importante: vamos alterar as nossas concepções fundamentais face às ameaças externas dos que perfilham concepções diferentes? O acórdão responde inequivocamente a esta questão: não, não vamos. Vamos lutar mantendo os nossos princípios e com respeito por eles. Ou seja, rejeição completa das teses de Bush/Cheney que na Europa acabam sempre por se intalar um pouco à sucapa. Não apenas neste caso, mas em muitos outros.
Finalmente, há as implicações comunitárias destes acórdão. Ele reflecte inequivocamente uma visão bem diferente da Europa da que havia na útima década do século passado. Mas isso já nós sabíamos e o próprio TC alemão já o tinha anunciado aquando da apreciação do Tatado de Lisboa.
Por cá é que há quem não veja bem as coisas...mas essa é outra questão.
Obrigsdo pelo comentário e pelas questões levantadas que têm toda a pertinência
CP

HY disse...

JMCPinto disse; "esta decisão põe a nu o défice democrático do processo normativo comunitário, nomeadamente a incapacidade de, dentro do sistema, assegurar de forma clara o cumprimento dos direitos, liberdades e garantias fundamentais".

Uma pergunta: quando o Tribunal Constitucional português anula uma lei da AR por a considerar inconstitucional, isso também põe a nu "o défice democrático do processo normativo"" português e a "incapacidade do sistema nacional etc, etc? Pergunta idêntica vale para todos os outros Estados Membros da UE onde existe controlo judicial da constitucionalidade das leis...ou esta é uma "tara" exclusiva da UE? Ou será que prova apenas que o sistema constitucional destinado a proteger os Direitos Fundamentais (DFs) funciona e bem?

Há de facto - embora menos com o Tratado de Lisboa, é verdade - um défice democrático na UE, mas ele não reside aí...não vale a pena deitar abaixo tudo o que a UE representa, caro JMCPinto...e sim, o TL não será perfeito, mas melhorou bastante a protecção dos direitos fundamentais a nível da UE, queira o JMCPinto ou não.

Aliás, este caso nada prova a esse respeito: não li o acórdão, mas o Tribunal Constitucional Alemão (BVG) pronunciou-se, pelo que JMCPinto diz, sobre a lei alemã de transposição, o que é perfeitamente normal e nunca foi posta em causa em nenhum Estado Membro nem em Bruxelas, que eu saiba. Não se pronunciou sobre a directiva directamente. Porque o local adequado para o fazer é o Tribunal de Justiça do Luxemburgo. Até hoje, nada nos indica que este será menos exigente em matéria de protecção dos DFs do que o BVG ou qualquer outro tribunal constitucional nacional. E o TL veio dar-lhe ainda mais instrumentos para ser ainda mais rigoroso, se possível, na defesa dos DFS de todos os cidadãos que vivem na Europa.