TERÁ O LEGISLADOR CORAGEM PARA ESCLARECER AS DÚVIDAS QUE RESTAM?O Procurador Geral da República no comunicado de 23 de Novembro afirmou que não existem indícios incriminatórios contra o Primeiro Ministro ou qualquer outra pessoa mencionada nas certidões remetidas pelo Juiz de instrução criminal de Aveiro, extraídas a partir das escutas efectuadas no âmbito do processo “Face Oculta”, nas quais acidental e fortuitamente interveio José Sócrates, em consequência das suas conversas telefónicas com Armando Vara, um dos “alvos” daquelas escutas. Consequentemente, ordenou o arquivamento de todos os elementos respeitantes a este assunto.
Até aqui nada a opor, nem quanto ao procedimento do PGR, nem quanto à sua decisão. Se o Procurador Geral da República entende que não há indícios de crime, não deve promover procedimento criminal. Também nada a opor quanto ao fundo de decisão, já que se trata de uma decisão da sua exclusiva competência, devendo, por isso, aceitar-se. E nem sequer é passível de crítica, porque não conhecendo nós os referidos elementos, como, em princípio, nenhum outro comentador os conhece, não seria admissível adiantar qualquer opinião crítica sobre uma matéria relativamente à qual se desconhece por completo a factualidade em que se baseia.
Por outro lado, o Procurador Geral da República no comunicado acima referido dá ainda a entender, ou, de certo forma, confirma, que as escutas em que interveio o Primeiro-Ministro também não têm relevância para o processo em que foram recolhidas.
Até aqui tudo bem. Segundo a tese defendida neste blogue, as conversações ou comunicações interceptadas em que intervenha o Primeiro Ministro são nulas se forem irrelevantes para o processo em que foram recolhidas ou se não contiveram indícios incriminatórios relativamente à pessoa cuja conversação ou comunicação foi fortuitamente interceptada.
A dúvida surge a seguir: por que envia o PRG ao Presidente do STJ as certidões, e os documentam que as fundamentam, se não tem dúvidas quando à inexistência de indícios incriminatórios? Da leitura dos documentos que vieram a público parece depreender-se que a intenção do PGR, ao solicitar a intervenção do Presidente do STJ, visa obter deste um juízo sobre a validade das escutas.
Parece, todavia, evidente que o Presidente do STJ não pode pronunciar-se sobre tais actos, já que a sua competência se confina à autorização para a intercepção de conversações ou comunicações em que intervenha o PM e à destruição das mesmas, nos termos dos artigos 187 a 190.º do CPP. Esta autorização não é, porém, necessária (aliás, dificilmente poderia sê-lo), no caso de as conversações ou comunicações terem sido interceptadas no âmbito de um processo em que estavam regularmente autorizadas, desde que sejam relevantes para o processo sob investigação ou quando contiverem indícios incriminatórios relativamente à entidade fortuitamente interceptada.
Daqui resulta que o Presidente do STJ ou intervém previamente à gravação das escutas, concedendo ou denegando a respectiva autorização, ou não tem mais espaços para intervir, uma vez que os problemas ou questões que a partir daí eventualmente se venham a levantar, por haver escutas interceptada sem a sua autorização prévia, já não são da sua competência e têm de resolver-se noutros locais e por outras entidades.
Por outro lado, a competência prevista na lei quanto à destruição das conversações ou comunicações interceptadas respeita, como não poderia deixar de ser, às intercepções por ele autorizadas e nos casos em que possa ter lugar a sua destruição, nos termos do n.º 6 do artigo 186.º do CPP. Para os leigos: o Presidente do STJ deve, nas conversações ou comunicações cuja intercepção tenha sido por ele autorizada, ordenar a sua destruição nos mesmos termos em que o juiz de instrução criminal está obrigado a fazê-lo, quando o “alvo” for um qualquer cidadão. Este dispositivo da norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º é pouco coerente com o disposto no CPP, porque quem deveria ordenar a destruição daqueles materiais era o juiz instrução criminal do Supremo responsável pelos actos jurisdicionais referidos no n.º 7 daquele artigo 11.º. Mas enfim…
Em qualquer caso, ou seja, mesmo que a intervenção do Presidente do STJ fosse juridicamente correcta – e não é – nunca ele poderia “anular” as escutas ou as certidões que nelas se fundamentam, como tem sido propalado pelos jornais e outros meios de comunicação. O Presidente do STJ não tem competência para “anular” as certidões, porque, como muito bem se sabe, somente os tribunais podem anular actos. De resto, não é isso o que consta do despacho do Presidente do STJ, nem tão-pouco é isso que lhe é solicitado pelo PGR, como a seguir veremos.
Antes, diga-se ainda que, quando muito, o que o Presidente do STJ poderia fazer era revogar o acto do Juiz de Instrução de Aveiro, se estivesse em relação a ele, no acto em causa, numa posição de superioridade hierárquica, o que manifestamente também não é o caso.
Pelos comunicados da PGR, percebe-se claramente que o que se solicita ao Presidente do STJ é que se pronuncie sobre a “validade dos actos processuais relativos à intercepção, gravação e transcrição” das conversações em que interveio o Primeiro Ministro.
Sabe-se, também, pelos referidos comunicados, respectivamente de 14 e 23 de Novembro, que o Presidente do STJ, respondendo àquela solicitação, “julgou nulo o despacho do Juiz de Instrução de Aveiro que autorizou e validou a extracção de cópias das gravações relativas aos produtos em causa e não validou a gravação de tais produtos, ordenando a destruição de todos os suportes a eles respeitantes”.
Não sabemos se existe aqui um excesso de linguagem ou se o comunicado usa as palavras apropriadas para exprimir a ideia que estava na mente de quem o escreveu, mas seja uma ou outra a situação, o certo é que o Presidente do STJ não tem competência para intervir naqueles actos, seja como entidade hierarquicamente superior ao Juiz de Instrução Criminal de Aveiro, seja como órgão jurisdicional de recurso. Embora a qualificação jurídica usada pelo Presidente do STJ esteja correcta – de facto, no contexto que resulta da decisão do PGR, os actos são nulos e como tal podem ser declarados –, ela de nada vale se o Juiz de Aveiro com ela não concordar. Neste caso, sempre se terá que recorrer ao tribunal competente para se saber se os actos em questão são ou não válidos.
Do mesmo modo que o Presidente do STJ não pode “anular” as escutas, também a sua posterior intervenção as não poderá “validar”, já que nem a validade nem a invalidade das comunicações fortuitamente interceptadas a uma das entidades previstas no artigo 11.º, 2, b) do CPP, depende da intervenção daquele magistrado. Depende do facto de o acto em questão estar ou não estar no âmbito de aplicação da norma que permite ao juiz de instrução ordenar as escutas. Se está, o acto é válido; se não está, o acto é nulo. E sendo nulo ou válido não precisa a intervenção de nenhuma outra entidade para o “validar” ou “anular”. Ele é válido ou nulo por si. E se por acaso for inválido nenhuma intervenção posterior o poderá tornar válido, da mesma forma que, se for válido, nenhuma intervenção posterior o poderá declarar nulo!
No entanto, é preciso distinguir entre os actos indiciadores da prática de crime por parte da entidade fortuitamente interceptada e os actos em que essa mesma entidade intervém e possam ser relevantes para o processo. Relativamente aos primeiros, a questão “morre” com a decisão do PGR. Se o PGR entende que não há indícios e, consequentemente, não promove o procedimento criminal, o Juiz de Instrução de Aveiro, pense ele o que pensar, nada pode fazer; já quanto aos factos eventualmente relevantes para o processo, a decisão do PGR de os considerar irrelevantes para tal efeito pode deparar-se com a oposição do Juiz de Instrução Criminal, de os quer manter no processo, por os considerar relevantes. Neste caso, o caminho a seguir é o recurso para o tribunal competente daquela decisão.
Verdadeiramente, quem decide, em primeira instância, da validade ou nulidade das escutas é o PGR quando aprecia se há ou não indícios incriminatórios da entidade fortuitamente interceptada e o juiz de instrução quando decide se tais intercepções são ou não relevantes para o processo em que foram recolhidas. Em ambos os casos haverá, a seu tempo, recurso das respectivas decisões. Só que tal recurso terá sempre de ser interposto no tribunal competente, não cabendo em nenhum caso ao presidente do STJ, nessas qualidade, decidir dele.
Como já noutro lugar dissemos, a remessa ao Presidente do STJ das certidões e dos factos (escutas) que as fundamentam só faria sentido no contexto de um pedido de intercepção de uma das entidades referidas no artigo acima citado motivado pela suspeita da existência da prática de factos ilícitos criminalmente puníveis, baseada na intercepção fortuita de conversações ou comunicações devidamente autorizadas. O envio deste material serviria para ajudar o Presidente do STJ a tomar a decisão de autorizar ou não a intercepção solicitada.
Em conclusão: Entre a tese de
Costa Andrade que considera sempre válidas as comunicações fortuitamente interceptadas em que intervenha uma das entidades referidas no artigo 11. º do CPP e a de
Fernanda Palma, que as considera sempre nulas, nós preferimos uma tese intermédia que atenda ao âmbito aparentemente conflituante dos artigos 11.º e 187.º do CPP, de modo a que cada uma das normas possa aplicar-se sem conflituar uma com a outra.
De facto, a tese de Costa Andrade levaria à completa irrelevância do artigo 11.º sempre que uma das entidades nele referidas não fosse o “alvo das escutas”; e a tese de Fernanda Palma levaria à irrelevância do artigo 187.º sempre que a pessoa fortuitamente interceptada fosse uma das entidades referidas no artigo 11.º.
Dito de outro modo, a tese de Fernanda Palma e de todos aqueles que defendem a nulidade de todas as escutas em que intervenha uma das entidades referidas naquele artigo 11.º, não previamente autorizadas pelo Presidente do STJ, levaria na prática à nulidade de todas as escutas em que uma daquelas entidades interviesse como interlocutor do “alvo”, pois não é nada concebível que, nas diversas investigações em curso com recurso ao procedimento das escutas, se vá preventivamente solicitar ao Presidente do STJ autorização para interceptar uma eventual conversação do “alvo” com o PR, o PAR ou o PM. Ora, esta consequência seria juridicamente inaceitável, pela desigualdade de tratamento em que colocaria o “alvo” das escutas, consoante a qualidade do seu interlocutor. O que nuns casos poderia ser uma grande vantagem, sempre que a referida escuta constituísse um meio de prova da acusação, noutros, uma desvantagem, sempre que os materiais interceptados constituissem relevantes elementos de defesa do suspeito. Na generalidade dos casos, a vantagem tenderia a ser bem superior à desvantagem, já que colocaria aqueles que têm relações com as mais altas instâncias do poder numa posição processualmente mais favorável que a da generalidade das pessoas. Estas situações são inaceitáveis e repudiadas pela sociedade, não podendo de forma alguma os juristas ser-lhes insensíveis, continuando a tratar o direito como algo que nada tem a ver com o sentimento comum das pessoas.
Por outro lado, não atender a indícios criminais decorrentes das intercepções fortuitas de conversações ou comunicações deixaria sem consequência jurídica o conhecimento desses indícios, sempre que das intercepções decorressem elementos probatórios ou indiciários relativamente a ilícitos criminais praticados pela entidade fortuitamente interceptada. Esta tese leva, portanto, a consequências juridicamente inaceitáveis, violadoras de princípios e normas fundadoras do próprio sistema jurídico.
Como a norma do artigo 11.º do CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, deu lugar a esta grande polémica em curso, com relevância prática nos processos sob investigação, o legislador deveria aclarar o sentido da norma de acordo com uma interpretação razoável e juridicamente aceitável. Não está necessariamente em causa a existência de um regime especial, o que está em causa é a extensão desse regime e a razoabilidade da sua aplicação a certas situações. Isto, supondo que o legislador histórico está de boa fé; se não estiver, competirá a quem interpreta a lei e, principalmente, a quem a aplica fazer o papel que o legislador recusa assumir: considerar que as leis provêm de um legislador razoável, que racionalmente busca as melhores soluções no quadro do sistema jurídico em que se integram.
Outra matéria que interessa esclarecer, já que está deficientemente regulada na lei, é a articulação da intervenção do Presidente do STJ, nos termos da alínea b), 2, do artigo 11.º, com a da línea a) do n.º 3 e n.º 7 do mesmo artigo.
Do ponto de vista jurídico, é assim, ou deveria ter sido assim, que as coisas se passaram. Do ponto de vista político, como já se viu, a conversa é outra. A existência de duas decisões contraditórias, tendo por base factos que são do desconhecimento público, levam a que a suspeita de protecção do Primeiro Ministro se mantenha na mente de muita gente. Certamente que o PM prestaria um grande serviço à transparência política e à credibilidade da justiça se tornasse públicas as suas conversas com Vara…