OU A DIFICULDADE EM LIDAR COM CERTOS MECANISMOS DA DEMOCRACIA
Cavaco Silva tem vindo a expressar publicamente algumas preocupações que suscitam natural apreensão.
Primeiro, a propósito do complicado processo que levou à aprovação do Estatuto dos Açores, atacou frontalmente a Assembleia da República por esta ter mantido, no essencial, as disposições legais que lhe haviam merecido uma veemente discordância e não se coibiu de qualificar esse comportamento da AR de lesivo para a “qualidade da nossa democracia”.
Cavaco pode invocar o que entender em defesa da posição que perfilhara, mas o que não pode é pôr em causa a qualidade da nossa democracia num caso em que as instituições funcionaram regularmente segundo o procedimento de funcionamento que ele mesmo entendeu dever accionar. As instituições poderiam ter funcionado segundo outro modelo, porventura com um resultado diferente, mas funcionaram de acordo com o modelo escolhido por Cavaco. E esse modelo levou a uma derrota da posição presidencial. A qualidade da nossa democracia exige que Cavaco aceite o resultado e passe à frente.
Depois, na abertura do ano judicial, Cavaco, não obstante tudo o que afecta a justiça portuguesa nas suas múltiplas vertentes, resolveu falar preocupadamente sobre a "qualidade da nossa legislação". Percebeu-se, dias mais tarde, que estava a referir-se à lei do divórcio, que também vetara e que a AR posteriormente reconfirmara e, provavelmente, à lei da interrupção voluntária da gravidez, da qual discordara sem contudo a vetar atento o procedimento que estava na origem da sua aprovação.
A qualidade da legislação é uma preocupação sabiamente manifestada por Montesquieu na sua luta por um governo moderado contra o despotismo. É dessa mesma natureza a preocupação de Cavaco Silva? Deixando de lado o passado remoto, e mesmo o mais recente já em regime democrático, parece excessivo assacar à qualidade da legislação os problemas da nossa justiça, nomeadamente quando essa acusação parece versar mais sobre o conteúdo da lei do que propriamente sobre a sua formulação. É evidente que uma lei ambígua, excessivamente vaga ou que consagre amplos poderes discricionários é sempre uma má lei, porque, em última instância, ele fere o princípio da igualdade, logo a essência da democracia.
Neste sentido, as críticas são bem-vindas, embora o limitado papel que o PR tem no processo legislativo (veto, envio para o TC e promulgação) lhe permita pôr cobro a muitas dessas anomalias. Menos aceitável será o ressentimento do PR relativamente a leis que não estabeleceram o regime legal que gostaria de ver consagrado. Uma leitura mais atenta de Montesquieu permitir-lhe-ia chegar à conclusão de que, isso sim, prejudicaria a qualidade da nossa democracia.
Finalmente, não se compreende o que Cavaco Silva quis dizer quando afirmou que o Freeport era um "assunto de Estado". Para quem diz ter tanta cautela com as palavras, esta é uma daquelas afirmações que confunde e baralha muito mais do que esclarece. De qualquer maneira, parece ter ficado claro que o PR não defende o PM, sequer sob o plano dos princípios.
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