UM SAQUE GIGANTESCO, EM PREPARAÇÃO EM BRUXELAS, ESTÁ EM VIAS DE CONSUMAR-SE
Em Portugal anda meio-mundo entretido com minudências – Estatuto dos Açores, Freeport, deduções à colecta ou abatimentos à matéria colectável, programa não sei quê do PSD, etc. – quando os problemas de fundo são muito outros e não têm solução à vista ou têm a pior das soluções. Os dois grandes problemas do nosso tempo são: Como garantir o emprego e como tornar operacional o sistema financeiro?
Quanto ao emprego, apenas uma certeza: nenhum capitalista à superfície da terra investe para criar empregos; o capital investe para maximizar os lucros e quanto menos puder gastar em salários tanto melhor, como por todo o lado se viu nestes últimos 30 anos; quanto ao sistema financeiro, outra certeza: a crise está longe de estar debelada e há várias instituições financeiras de dimensão mundial à beira do abismo, como, de resto, Obama recentemente confirmou.
Das duas certezas antes enunciadas resulta uma terceira: vai ser necessário mudar de paradigma para sair desta crise.
Comecemos pelo sistema financeiro e tomemos por referência o americano, dada a impossibilidade de se raciocinar sobre o português em virtude da sua conhecida opacidade, sequer desvendada pelas autoridades reguladoras. As coisas por cá, todavia, não andarão muito longe do que se passa por lá, salvaguardadas as devidas proporções.
Vejamos como se pretende resolver na Europa a crise financeira, depois de constatada a relativa ineficácia das medidas até agora tomadas. De facto, a retracção do crédito em consequência da solvência do sistema bancário, já que é disso que verdadeiramente se trata e não de um qualquer conjuntural problema de liquidez, tem levado a que dos dois lados do Atlântico, porventura mais na Europa do que na América, haja quem volte a insistir numa solução semelhante ao plano Bush, agora acrescida da “invenção” dos Bad Banks.
Os dois grandes argumentos ideológicos que subjazem às propostas da criação dos Bad Banks, que hoje estiveram em discussão preliminar em Bruxelas, são o primado da propriedade privada (o nosso sistema financeiro assenta em accionistas privados e é administrado por instituições privadas) e o princípio de que o Estado é, por definição, um mau gestor.
Que os princípios acima enumerados são puramente ideológicos no verdadeiro sentido do conceito, é algo que a seguir se demonstrará sem qualquer dificuldade.
De facto, se os bancos têm “activos” que nada ou pouco valem, se precisam de capital que eles próprios não estão em condições de angariar, se somente o Estado os pode recapitalizar mediante injecções de dinheiro que terão de ir muito para além do valor representado pela actual composição do capital accionista (a preços de mercado) para terem qualquer efeito útil, é evidente que esta operação, para não se transformar num gigantesco saque aos contribuintes, terá necessariamente de traduzir-se na apropriação dos bancos pelo Estado.
E também aqui é fácil explicar porquê. Os bancos têm escriturado nos seus balanços activos por um preço francamente superior ao seu real valor de mercado. Se os bancos tivessem de pôr à venda esses activos, eles valeriam muito menos e muitos deles nem sequer valeriam nada. Portanto, se o Estado entrar com dinheiro para tornar o banco solvente deverá, pelas próprias leis do mercado, tornar-se dono do banco ou, na hipótese mais favorável para os bancos, tornar-se no accionista dominante. Actuando assim, o Estado não faz mais do que, em condições normais, faria qualquer investidor privado a quem o Banco fosse pedir para participar num aumento de capital.
O segundo princípio que tenta evitar esta conclusão, o de que o Estado é por definição um mau gestor e os privados são, pela sua própria natureza, bons, é igualmente contrariado pelos factos, sem qualquer possibilidade de ser desmentido por mais eloquente que seja a retórica que o conteste. Que excelência de gestão demonstrou uma gestão que acumulou perdas gigantescas durante os últimos anos? Que com base em resultados puramente fictícios distribuiu lucros e benesses gigantescos que tempos depois se verificou não existirem? É esta gestão de excelência que se quer manter à custa de milhares de milhões extorquidos aos contribuintes?
Intoxicados por anos de cultura neoliberal hegemónica, os partidos de centro e centro esquerda oriundos da social-democracia hipotecaram primeiramente os seus programas de governo e a sua visão do mundo ao pensamento neoliberal, que fielmente serviram. E hoje preparam-se para restaurar o capital financeiro, industrial e o mais que se verá à custa do trabalho colectivo, por via de um saque de proporções gigantescas que, a ser concretizado, superará, a preços correntes, o que teve lugar na Rússia de Yeltsin após a desagregação da União Soviética.
Na verdade, a cimeira extraordinária a realizar, em Bruxelas, provavelmente em 26 e 27 de Fevereiro, convocada a pedido de Sarkozy e Merkel para ”resolver o problema dos activos tóxicos”, propõe-se adoptar alguns princípios que apontam inequivocamente para uma restauração do sistema financeiro neoliberal à custa de um colossal encargo lançado sobre as gerações futuras. É esse o verdadeiro significado dos Bad Banks e são essas as consequências da sua criação.
Simultaneamente, uma campanha demagógica de grandes proporções será lançada à escala europeia. Primeiramente, insistir-se-á sem cessar na ideia de que este é o único meio de fazer o crédito fluir. Depois, tentar-se-á fazer passar a ideia de que os activos que o Estado venha a adquirir ou garantir (e que, como já foi dito, não valem nada) podem, uma vez superada a crise, transformar-se numa fonte de lucro. Finalmente, virá dizer-se que aos executivos dos bancos “desintoxicados” serão impostas limitações salariais e outras mordomias (como se tal medida não pudesse ter já sido tomada relativamente à maioria dos bancos!).
Portanto, para que não haja dúvidas: o que o ECO-FIN discutiu hoje em Bruxelas e aquilo que em fins de Fevereiro será discutido na cimeira extraordinária é o preço pelo qual os Estados vão adquirir “activos” que se fossem postos no mercado não valeriam nada ou valeriam muito pouco! E o que os Estados vão acordar pagar (ou, noutros casos, garantir) por esses “activos” será algo de muito semelhante ao preço por que eles estão contabilizados no balanço dos bancos ou que tinham antes da crise, como também é defendido.
Repare-se que uma vez adoptado o princípio dos Bad Banks como solução não haverá, dentro dela, outra forma de actuar que não a indicada, já que somente uma solução alternativa, radicalmente oposta àquela, seria capaz de resolver o problema da solvência do sistema bancário sem os gigantescos encargos que aquela acarreta.
Ou seja, preparamo-nos para assistir passivamente a um dos mais grandiosos saques da história moderna, que apenas poderá ter alguma comparação com as gigantescas espoliações coloniais inglesas da primeira metade do século passado! E isto não incomoda ninguém. Quando menos se esperar desembarcam em Lisboa, com a solução no bolso, os governantes que participarem na cimeira de 27 de Fevereiro!
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