segunda-feira, 16 de novembro de 2009

MAIS DOIS TEXTOS SOBRE A FACE OCULTA




UM, SOBRE SANTOS SILVA

Estava certo, eu e todos os que me acompanharam, nas considerações sobre Santos Silva a propósito da sua intervenção na SIC-N, na sexta-feira passada. Ele não é digno de ser ouvido. Iniciou a entrevista com uma mentira grosseira. Daquelas em que um Ministro da propaganda minimamente respeitador da inteligência dos ouvintes não teria incorrido. Dizer que o Primeiro-ministro estava a ser escutado há 4 meses e que havia 50 cassetes gravadas com conversas de Sócrates é uma falsidade despudorada. Já toda a gente sabia que era mentira. Mas para não haja qualquer espécie de dúvidas, aí está o comunicado do Procurador-geral da República a repor a verdade dos factos.
Agora, o que ninguém tem culpa – repito o que já disse – é que Sócrates fale amiudadas vezes com pessoas sob investigação…
E Santos Silva, se fosse mais inteligente e menos arrogante, até se deveria ter dado por muito feliz por a notícia das conversas de Sócrates com Vara e o processo “Face Oculta” só terem chegado ao conhecimento público muito depois de 27 de Setembro…


OUTRO, SOBRE A “EMBRULHADA” EM QUE SE METEU O PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA

Segundo foi comunicado pelos media e oficialmente confirmado, algumas das conversa de Sócrates com Vara, interceptadas no contexto do processo “Face Oculta”, indiciavam, de acordo com o parecer das autoridades de investigação, a prática de crime de “atentado ao estado de direito”, na modalidade de “manipulação da comunicação social”. Em consequência desse juízo, foram extraídas certidões e remetidas, para os devidos efeitos, ao Procurador-geral da República. Ainda segundo o que foi veiculado pelos media e igualmente confirmado pelas entidades judiciais envolvidas, o Procurador-geral da República terá enviado essas certidões ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para validação, tendo este ordenado a sua destruição por as considerar nulas e de nenhum efeito.
Há manifestamente a propósito do regime de intersecção de conversações e comunicações em que intervenham o PR, o PAR e o PM (doravante denominadas “entidades protegidas”) uma enorme confusão.
Como já neste blogue tivemos oportunidade de esclarecer (ver “Até onde vai juridicamente a protecção do PM?”), o Procurador-geral da República não tem, nestas situações, que enviar ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça as certidões para validação. As ceridões são válidas. Logo, o que o Procurador-geral da República tem que fazer, neste caso como em qualquer outro, é um juízo sobre a consistência dos indícios para, em conformidade, decidir se deve ou não ordenar a abertura de um novo processo.
Se a sua decisão for negativa, como parece ter sido, deve pura e simplesmente mandar destruir as certidões e as respectivas gravações, a menos que as mesmas sejam relevantes para o apuramento da verdade no processo em que foram recolhidas. Se, pelo contrário, o PGR concordar com a consistência dos indícios, deverá ordenar a abertura de um novo processo e, caso pretenda manter o novo suspeito “sob escuta”, deverá ainda solicitar a respectiva autorização ao Presidente STJ, visto trata-se de uma “entidade protegida”, sujeita a regime especial. O Presidente do STJ, informado documentalmente da razão das suspeitas, decidirá se autoriza ou não a intersecção das conversações e comunicações em que intervenha o novo suspeito. Se, segundo o seu juízo, devidamente fundamentado, a resposta for negativa, o processo poderá e até deverá prosseguirá à mesma na PGR, desde que haja bons indícios de que a prova dos factos se conseguirá fazer por outros meios (é indiscutivelmente assim se o suspeito for o Primeiro Ministro, se for o PR ou o PAR será preciso atender ao disposto na Constituição).
Como já disse no post citado só este pode ser o sentido da lei. Porque, embora o legislador tivesse tido o propósito de defender as três entidades referidas de intersecções de conversas ou de comunicações autorizadas por um juiz de primeira instância, esta protecção não pode ser levada ao exagero de se considerarem nulas todas as comunicações ou conversações em que intervenham aquelas entidades. Sob pena de, se assim se procedesse, se estar a violar um princípio, e os interesses que ele defende, muito mais importante que a salvaguarda daquelas entidades – o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Se estas intersecções fossem sempre nulas (ou até inexistentes, como outros defendem) estar-se-ia, umas vezes, a privilegiar injustificadamente, em relação a qualquer outra pessoa, o “alvo” das investigações pelo facto de ter estabelecido contactos com uma “entidade protegida”; outras vezes, a proteger a entidade sujeita a regime especial, num contexto que nada tem a ver com a razão de ser da protecção de que beneficia, a ponto de se criar com tal regime uma situação de relativa impunidade, igualmente contrária ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Portanto, no caso em apreço, o Procurador-geral da República não tinha nada que enviar as certidões ao Presidente do STJ para validação. As certidões resultam da intercepção, validamente autorizada, de conversações e comunicações em que interveio o “alvo” da investigação. Tais intercepções não podem ficar sujeitas ao regime especial pelo facto de nelas intervir alguma das “entidades protegidas”, se das conversações ou comunicações interceptadas resultar a sua relevância para a descoberta da verdade ou indícios da prática de crime por parte de alguma das “entidades protegidas”, enquanto interlocutora do “alvo” das investigações.
Estender a protecção de modo a englobar estas situações corresponderia a negar o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, o que, sem qualquer espécie de dúvida, tornaria essa interpretação da norma inconstitucional. Ou, caso se pretenda dizer de outra maneira, tornaria inconstitucional a norma que fosse entendida e aplicada com essa amplitude.
No primeiro caso, a desigualdade resultaria do facto de o “alvo” ficar claramente beneficiado em relação a qualquer outra pessoa pelo facto de ter tido conversas comprometedoras com uma das “entidades protegidas”, sujeitas a regime especial. No segundo caso, a desigualdade seria ainda mais flagrante, já que perante indícios seguros da prática de crime, o suspeito beneficiaria de um regime de relativa impunidade, pelo simples facto de ser quem é!
A interpretação aqui perfilhada é única que permite manter a coerência, a legalidade do sistema e os princípios fundamentais do Estado de Direito, na medida em que ela faz cessar a protecção de que beneficiam as entidades sujeitas a regime especial onde deixa de existir a sua razão de ser. Nenhuma outra interpretação é aceitável.
Por isso, também se não compreende o despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Conselheiro Noronha do Nascimento, que considerou nulas as certidões e ordenou a destruição das gravações. Como acima se explicou, quem decide sob a consistência dos indícios constantes das transcrições para efeitos de abertura de novo processo é, em última instância, o Procurador-geral da República. Ao Presidente do STJ apenas lhe compete, se para tanto for solicitado, autorizar ou não a intersecção de conversações ou comunicações que tenham como alvo uma das “entidades protegidas” sujeitas a regime especial.
Se as certidões e as transcrições que as consubstanciam fossem inexistentes, como alguns chegaram a dizer, ou nulas, como outros disseram, elas não tinham que ser enviadas ao Presidente do STJ, já que nem o Presidente do STJ, nem ninguém, pode retroactivamente tornar existente o que juridicamente não existe, nem tão-pouco o Presidente do STJ, nem ninguém, (salvo, em alguns casos, o legislador) pode convalidar retroactivamente um acto nulo. O envio das certidões ao Presidente do STJ só faz sentido no contexto de um pedido de intersecção de conversações e comunicações que tenha como “alvo” uma das “entidades protegidas” sujeitas a regime especial, servindo as certidões como elemento esclarecedor da decisão do Presidente do STJ sobre autorização ou denegação da intercepção futura.
Fora deste contexto, o envio das certidões é incompreensível. Admitir o envio de certidões nulas ou inexistentes, como elemento esclarecedor da decisão do Presidente do STJ sobre o pedido de autorização de intersecção futura de comunicações ou conversações de uma “entidade” protegida, é absurdo e ilógico, porque o Presidente do STJ não pode ser esclarecido com base em actos juridicamente inexistentes ou nulos! Portanto, a lei só é coerente com o sistema jurídico em que se insere, se for interpretada e aplicada com o sentido que aqui lhe atribuímos.
Qualquer dos outros dois entendimentos, levaria, o primeiro, à violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, e o segundo, que parece ter sido o do PGR, ao absurdo de solicitar ao Presidente do STJ que se pronuncie sobre actos nulos ou inexistentes ou que tome como base da sua decisão actos nulos ou inexistentes!
É Igualmente insustentável considerar as certidões puramente ineficazes, fazendo depender a sua eficácia de uma posterior aprovação do Presidente do STJ, já que não é esse, claramente, o sentido da lei. O sentido da lei é inequivocamente outro: as escutas não autorizadas por quem não tem competência para o efeito são nulas em todo o domínio de aplicação da lei. Como o domínio de aplicação da lei cessa, onde cessar a razão de ser da protecção por ela concedida – o que acontece nos dois casos supra referidos – as escutas são normalmente relevantes e válidas, nos termos acima expostos.
Em conclusão: a intersecção de comunicações ou conversações que tenham como “alvo”, devidamente autorizado, um cidadão comum em que intervenham “entidades protegidas” são válidas e juridicamente eficazes sempre que sejam relevantes para a descoberta da verdade no processo sob investigação ou desde que contenham indícios do envolvimento das “entidades protegidas” na prática de factos ilícitos criminalmente puníveis.

3 comentários:

Anónimo disse...

Perfeito!
(escrevi muito mais, mas apaguei. Este comentário minimalista diz tudo .... e parabéns.... com referência a 15/11).
E.D.

Jurista disse...

O Correia Pinto foi um dos mais brilhantes alunos do séc. XX da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (melhor dizendo:d'A FACULDADE DE DIREITO), de onde foi expulso pelo fascismo.
Este seu post seria seguramente subscrito, se vivo fosse, pelo grande MANUEL DE ANDRADE, a quem ele, tal como a Homero, Platão, Pessoa, Eça e outros prsta justa homenagem na coluna esquerda do blogue.

Jurista

Anónimo disse...

Não sou Jurista nem tão pouco, tenho estudos superiores, mas sou uma cidadã interessada na verdade e queria que o meu País fosse governado por Gente de Bem. Parabens por me trazer todas as manhãs alguma coisa que valha apena ler. Obrigado.