A TENTATIVA DE DESVALORIZAÇÃO DO VOTO IRLANDÊS
Para quem siga a política internacional com algum espírito crítico, o que se está a passar com as reacções oficiais ao referendo da Irlanda não constitui motivo de espanto, por mais reprovável que seja a conduta daqueles que desprezam o voto popular.
Na verdade, a maior parte dos governantes da UE têm da democracia um conceito muito próprio. Deixando de parte as posições caseiras tomadas em bicos de pés por governantes que gostam de mostrar à Europa a sua “raça”, aquilo a que nós frequentemente assistimos é a uma grande dualidade de critérios sobre tudo o que tem a ver com democracia. A título de exemplo: os EUA e o RU desencadeiam uma guerra de agressão - que é um crime, mesmo que não seja com propósitos anexionistas- e após algumas críticas iniciais, muito ditadas por força da gigantesca contestação popular, a situação tende a ser esquecida e passa a ser “um problema nosso” a resolução do imenso imbróglio em que se meteram. A Rússia reage forte na Chechénia – que faz parte integrante da Federação Russa - contra os movimentos separatistas, e essa reacção, além de ser objecto de viva reprovação, passa a ser indício seguro de que a Rússia não respeita os direitos humanos, nem as liberdades democráticas, sendo, por isso, necessário tomar providências contra ela, isto é, alargar a NATO até às suas fronteiras.
A França vota contra a Constituição Europeia e logo depois a Holanda também. Todos aceitaram que a Constituição estava formalmente morta, embora depois a tentassem ressuscitar com outro nome. A Irlanda vota contra o Tratado de Lisboa, que tem de ser aprovado por todos os EM para entrar em vigor, e o que se ouve dizer é que as ratificações devem continuar e que o não da Irlanda é assunto que ela terá de resolver.
Bem podem estes iluminados dirigentes europeus continuar a supor que a construção da Europa se pode fazer sem os cidadãos, já que mais tarde ou mais cedo acabarão por ser confrontados com “as duras réplicas da história”.
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