AS CERTEZAS E AS DÚVIDAS
Sabe-se que é um exagero afirmar que os europeus rejeitam o Tratado de Lisboa. Mas com esta afirmação pretende-se, por um lado, questionar a legitimidade das ratificações fundadas em mandatos representativos incondicionados, baseados na soberania parlamentar de base partidária e, por outro, combater a conjura pactuada entre os representantes indirectos daquela legitimidade com vista a deixar completamente à margem deste processo a intervenção directa do povo. Pretende-se ainda, com base nos resultados dos referendos francês e holandês, e na escassíssima participação dos referendos espanhol e luxemburguês, realizados para aprovação da Constituição Europeia, no essencial idêntica ao actual tratado, fazer uma inferência relativamente ao que poderia acontecer caso ocorresse uma consulta em todo o espaço comunitário. Inferência tanto mais legítima, quanto é ter certo ter a dita consulta sido expressamente banida por conluio entre os assinantes do tratado, mesmo com prejuízo da palavra já dada por alguns nesse sentido.
Dito isto, penso que o Tratado de Lisboa, para além dos fundamentos de rejeição marcadamente ideológicos, é recusado por muita gente, em praticamente todos os países, por duas importantes razões: a primeira, porque as pessoas têm medo, principalmente em tempos de crise, de perderem o que têm (nos planos económico, social e até político); a segunda, porque as pessoas, principalmente as que mais sofrem a crise, acham que o tratado não somente não resolve os problemas com que se debatem, como, pelo contrário, é uma das causas da crise.
E a verdade é que todos os fundamentos de rejeição são, quase diríamos, racionalmente aceitáveis. Desde logo, os ideológicos, que são fundamentalmente de três tipos.
Em primeiro lugar, os soberanistas. É uma evidência que o Tratado de Lisboa, mais até do que os anteriores, implica uma substancial transferência de poderes soberanos. Todos aqueles para quem a soberania nacional é um valor indiscutível e intransferível tenderão a rejeitá-lo. Com esta afirmação não se pretende fazer uma valoração deste fenómeno, mas tão-somente apresentá-lo como facto, despido de qualquer valoração.
Em segundo lugar, a falta de democratidade e de transparência no processo de construção europeia. Aqui, a história fala por si: cada “aprofundamento” do processo de integração tem sido decidido completamente à revelia da vontade popular. Desde a negociação do Acto Único, passando pela de Maastricht até à da Constituição Europeia e à do Tratado de Lisboa, que se tornou claro que o que se passa em Bruxelas só é verdadeiramente do conhecimento dos negociadores e dos que acompanham de perto as negociações. Nenhuma das grandes alterações ocorridas no processo de construção europeia foi objecto de um verdadeiro debate, mas apenas de glosas à volta de um facto já consumado. Nem mesmo a democracia representativa de base parlamentar desempenhou neste processo qualquer papel de intervenção relevante. Sempre que foi chamada a intervir, foi apenas para coonestar o facto consumado, de acordo com a lógica política cada vez mais em voga de serem os Governos a controlar os Parlamentos, ou as maiorias parlamentares, e não o contrário.
Finalmente, há os que rejeitam o modelo de construção europeia por entenderam que, no essencial, se trata de um grande espaço de expansão do capital, que passou a actuar sem as peias nem os constrangimentos com que se deparava no plano nacional e sem qualquer contrapartida no plano social, onde cada um continua a tratar de si, com tantas mais dificuldades, quanto mais fraco é.
Além destes fundamentos, intervêm também, embora com muita mais força, os outros dois já indicados.
Na verdade, é cada vez mais notório que cidadãos de muitos Estados da União Europeia, nomeadamente dos Estados com melhor nível de vida, têm medo de perderem o que têm por causa do processo de construção europeia. Os cidadãos dos Estados onde estão fortemente implantados modelos sociais, laboriosamente conquistados ao longo de décadas de lutas, pactuados ou impostos ao grande capital, temem que as desvirtuações desse modelo, já em curso, tendam a agravar-se e responsabilizam por isso a construção europeia.
Os cidadãos que diariamente ouvem nas televisões ou lêem nos jornais, aqueles que, em nome da competitividade do capital, advogam a reforma do modelo social através de amplos recortes ou mesmo a sua extinção, tendem, por isso, a rejeitar o modelo.
Assim como igualmente o rejeitam aqueles cidadãos que se apercebem do papel desempenhado pelos representantes da UE num forum tão importante como o da OMC. Realmente temem que este forum, que deveria ser o lugar adequado para a regulação do comércio internacional, seja por parte daqueles representantes usado para defender a sua desregulação em áreas que claramente os prejudicam.
Assim como temem pela subsistência dos seus direitos no futuro quando se inteiram da nova modalidade de aprovação de tratados internacionais por parte da UE. Ou ainda quando perdem autonomia política em matéria fiscal.
Enfim, são muitas as razões que levam os cidadãos, nesta fase, a dizer não a um processo tão pouco transparente e tão pouco democrático como o da construção europeia. Além de que, por todo o lado, há a sensação de que na União Europeia, ao contrário do que se passa internamente, não há recurso das decisões tomadas. Uma vez pactuada uma política, os cidadãos não têm meios para a alterar. Internamente, as coisas não se passam assim. Se há um governo que impõe políticas rejeitadas pela vontade popular, essas políticas serão substituídas com a eleição de um novo governo. Na União Europeia, por manifesto défice democrático, nada institucionalmente se pode fazer contra o que não se concorda.
Por outro lado, os cidadãos dos países que mais sofrem com a crise acham que o Tratado não só não resolve nenhum dos problemas que os afligem, como, pelo contrário, é uma das causas da crise.
Este sentimento está patente não apenas na impotência com que os governos dos estados economicamente mais fracos assistem á propagação dos efeitos da crise, como principalmente na indiferença com que Bruxelas a encara. A Comissão Europeia dominada ideologicamente pelas ideias neo-liberais assiste à crise financeira, alimentar e energética como um simples episódio da lógica de mercado. O próprio Banco Central Europeu, enredado nas políticas monetaristas que durante cerca de duas décadas campearam sem problemas de maior na Europa, vê-se agora a braços com um dilema de que dificilmente poderá sair nos quadros da ortodoxia que o domina. Sobe ou anuncia que vai subir as taxas de juro para controlar a inflação, ditada em grande medida pelo aumento do preço das matérias-primas e do dinheiro, e corre simultaneamente o risco de lançar a economia na estagnação ou mesmo na recessão por falta de recursos financeiros. Ou não sobe a taxa de juros e corre o rico de não controlar a inflação. Enfim, tudo problemas que as pessoas mais afectadas imputam ao modelo de construção europeia, tendendo, por isso, a rejeitá-lo.
Se a crise persistir, a União Europeia será primeira a pagar a factura, antes de mais por não ter uma base democrática sólida em que se apoiar.
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