O APELO DE JERÓNIMO DE SOUSA
Perguntado a propósito do Estatuto Político-Administrativo dos Açores se concordava com a posição do Presidente da República, Jerónimo de Sousa, para sublinhar a convergência estratégica entre aquele e o Governo, disse que em seu entender o Presidente da República intervinha de menos, citando uma série de diplomas relativamente aos quais o PR, segundo o entendimento do PCP, deveria ter intervindo.
Esta afirmação de Jerónimo de Sousa tem de ser entendida no seu devido contexto. Assim, em primeiro lugar, ele pretendeu sublinhar a tal convergência estratégica entre o PR e o Governo em tudo que realmente é essencial para a governação do país; em segundo lugar, Jerónimo de Sousa só estará realmente de acordo com uma maior intervenção do PR se ela for no sentido das propostas defendidas pelo PCP.
Mesmo assim entendida, a afirmação encerra perigos e Jerónimo de Sousa, que é um homem prudente e cauto, que sempre actua com grande sentido das responsabilidades, tendo por isso colhido a simpatia dos portugueses muito para além da base eleitoral do PCP, deveria ser o primeiro a tê-los em conta.
Na verdade, o sistema constitucional português assenta num equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania que, uma vez alterado pela prática de um deles, nomeadamente do órgão unipessoal, levaria rapidamente à subversão do sistema. O sistema semi-presidencialista, que é o nosso, assenta num equilíbrio que tem por base o cumprimento rigoroso dos poderes constitucionalmente atribuídos aos diversos intervenientes.
Assim, o Governo responde perante o Parlamento e perante o Presidente da República; todavia, este só excepcionalmente o pode demitir ”quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições”, enquanto a Assembleia da República demite o Governo se rejeitar o seu programa, se não aprovar uma moção de confiança e, ainda, se aprovar uma moção de censura por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. O modo como o Governo responde perante os dois órgãos de soberania acima referidos reforça inequivocamente a componente parlamentar do sistema.
Por outro lado, o Presidente da República, observados certos limite temporais, pode dissolver a Assembleia da República, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nela representados. Este é um poder extraordinário, que deve ser exercido com a máxima prudência, pois, apesar de juridicamente não ter outros limites que os acima referidos, o seu exercício imprudente deixa o PR politicamente muito fragilizado, se as novas eleições confirmarem a composição maioritária da assembleia dissolvida.
Depois, contrariamente ao que acontece nos regimes presidencialistas, o Presidente da República não pode ser destituído pela Assembleia da República. Apenas a condenação pelo Supremo Tribunal de Justiça por crimes cometidos no exercício das funções implica a destituição do cargo.
Fora destes poderes, o Presidente da República pode dirigir mensagens à Assembleia da República e reunir-se regularmente com o Primeiro-Ministro, para este lhe dar conta da actividade governativa (soft power, em ambos os casos); além dos poderes específicos em matéria de relações internacionais e de defesa, o PR pode ainda submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, preventiva ou sucessivamente, os diplomas que exijam a sua promulgação e vetar qualquer decreto aprovado pela Assembleia da República que lhe seja submetido para ser promulgado como lei, bem como qualquer decreto do Governo enviado para promulgação.
É exactamente a propósito deste poder de veto do Presidente da República que as palavras de Jerónimo de Sousa ganham uma particular importância. Embora se possa defender que o direito de veto não é incondicionado, já que o seu exercício tem de ser entendido no quadro constitucional como um todo, e embora também se saiba que o seu exercício é na generalidade dos casos superável, sempre que a base parlamentar que apoia o Governo disponha de uma maioria absoluta, a verdade é que o seu uso imoderado, com o objectivo de fazer vergar o Governo (qualquer Governo) às opções políticas do Presidente da República, é um perigo que não pode descartar-se, principalmente se o Governo em exercício apenas dispuser de uma maioria relativa no Parlamento.
Por isso qualquer apelo a uma maior intervenção presidencial é de rejeitar. Além de que, objectivamente, ela implica um maior poder de um órgão unipessoal, que é sempre um mal em si.
Mesmo que se entenda que o apelo a uma maior intervenção presidencial poderia levar a uma situação de conflito, geradora de um novo estádio das relações institucionais, também com esse entendimento o apelo não seria apropriado. Conhecemos as virtualidades do conflito nas lutas políticas e sociais. Pelo menos, desde Maquiavel. Contra a tradição aristotélica e escolástica, Maquiavel foi o primeiro pensador político a reconhecer ao conflito um papel positivo. Depois, Marx teorizou amplamente o conflito, atribuindo-lhe um papel decisivo no progresso da humanidade. A verdade é que o conflito, para ser virtuoso, tem de gerar um novo equilíbrio mais vantajoso que o anteriormente existente. Todavia, para que isso aconteça é necessário que uma das partes no conflito defenda inequivocamente os seus interesses. E que interesses são defendidos pela parte que Jerónimo de Sousa representa num conflito entre o actual Presidente da República e o Governo?